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The Roman influence on Sado

Creiro (Arrábida)

Creiro (Arrábida):

um estabelecimento de produção de preparados de peixe da Época Romana
Carlos Tavares da Silva* e Antónia Coelho-Soares*

 * Centro de Estudos Arqueológicos, Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (Associação de Municípios da Região de Setúbal) cea.maeds@amrs.pt 

Resumo

O estabelecimento romano de produção de preparados piscícolas do Creiro, servido pelo fundeadouro da baía do Portinho da Arrábida, era constituído por diversas unidades fabris, das quais se escavou a G12. Desde 1987, tem sido objeto de escavações promovidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS). Estas deram a conhecer a planta completa de uma unidade fabril murada (G12) que incluía oficina de salgas (F14), “armazéns”, edifício provavelmente habitacional e balneário. 

Foram identificadas duas fases de laboração separadas por período de abandono. A primeira abrange a 2.ª metade do século I e o século II. A segunda fase de produção, presumivelmente da 2.ª metade do século IV e 1.º quartel do século V, reutilizou somente parte da Oficina F14, que já se encontrava em mau estado de conservação. Após o abandono da Fábrica G12, o local continuou a ser ocupado ao longo do século V, e os tanques de salga da Oficina F14 foram então reutilizados como vazadouro de lixos domésticos. 

 Abstract 

The Roman fish-processing factory of Creiro, directly connected with the small fishing harbour of Portinho da Arrábida, was integrated into the large navigable Sado estuary. It was located in perfect maritime relationship with the amphorae kilns and salt wetland, of the inner estuary, and with the Sado harbour complex. Creiro was made up of several fish-salting factories. In this paper the G12 factory will be presented. 

Since 1987, the site has been excavated by the Museum of Archaeology and Ethnography of the District of Setúbal (MAEDS). Those archaeological works revealed a complete plan of a walled factory (G12), which included the fish-salting workshop (F14), a row of warehouses, residential properties and bath houses. 

Two major phases of activity have been identified in the G12 fish processing unity separated by a phase of abandonment. The oldest remains of a fish products industry dates from the 2nd half of the 1st and 2nd centuries AD. The 2nd phase of activity occurred during the 2nd half of the 4th century and in the 1st quarter of the 5th. But in that period only some fish-salting tanks of the workshop F14 were used. After the abandonment of the G12 factory, the site remained occupied during the 5th century, and the salting tanks of the workshop F14 were reused as a dump of household waste. 

Fig. 1- Localização do sítio arqueológico do Creiro na Carta Militar Portuguesa. 

Fig. 2 – Vista do sul da baía do Portinho da Arrábida, indicando-se a localização do sítio arqueológico do Creiro (elipse de cor branca). 

1. Introdução

As escavações arqueológicas efetuadas no Creiro desde 1987 1, promovidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), permitiram identificar a planta completa de uma fábrica de preparados piscícolas da Época Romana. Além da oficina de produção de salgas e molhos de peixe, constituída por conjunto de tanques de salga, que designaremos por Oficina F14 (dada a conhecer em Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987), foi construído, claramente associado a ela, um recinto murado que integrava compartimentos de armazenagem e provavelmente habitacionais, organizados em torno de um pátio, bem como um balneário. No exterior deste recinto, surgiram: um poço, aqueduto (?) e cisterna, e, contíguas ao muro sul do mesmo recinto, estruturas pertencentes a outra oficina de produção de salgas (Oficina K10). 

1 Realizaram-se por iniciativa do Parque Natural da Arrábida e foram coordenadas por Carlos Tavares da Silva e Antónia Coelho-Soares, coadjuvados por Júlio Costa e Jorge Domingos Costa, do MAEDS. Optou-se prioritariamente pela escavação em área, removendo a camada superficial (C.1) e, deste modo, pondo a descoberto o topo das principais estruturas arquitetónicas; em um segundo momento procedeu-se ao aprofundamento estratigraficamente orientado, escavando-se integralmente a oficina de produção de salgas F14, o balneário e o “Armazém” A2. A metodologia utilizada, bem como a quadrícula adotada foram as definidas aquando da primeira campanha (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987). 

O arqueossítio do Creiro ocupa pequena rechã (Figs. 1–3) com a cota de 25–30 m, formada por argilas do Paleogénico indiferenciado (Carta Geológica de Portugal, esc. 1:50 000, folha 38B-Setúbal), situada no sopé da encosta sul da Serra da Arrábida. Esta rechã é sobranceira ao troço oriental da praia do Portinho; é limitada a este e a oeste por vales por onde correm linhas de água e onde, localizada a oeste, existe importante nascente de água doce (Fonte da Paciência); as suas vertentes, onde afloram troços de muros atribuíveis à Época Romana, encontram-se muito erodidas e ravinadas. A zona central da jazida arqueológica possui as seguintes coordenadas: 38° 28’ 53.50’’N; 8° 58’ 36.48’’W. 

O estabelecimento da Época Romana abrangeria, pois, área superior à da atual rechã. É muito provável que essa ocupação não se restringisse à parte superior da mesma: ter-se-ia talvez estendido pela encosta até à praia, vencendo um desnível de aproximadamente 15 m. De facto, pelo teor da nota recolhida nos documentos inéditos deixados por A. I. Marques da Costa sobre o Creiro e na qual este arqueólogo alude a “alguns tanques de alvenaria em ruínas, forrados de uma camada de argamassa signina, [visíveis] na margem esquerda de uma linha de água que desce da Serra da Arrábida até ao mar, próximo deste e a leste do Portinho” (Tavares da Silva & Cabrita, 1964, p. 69), somos levados a pensar que tais testemunhos arquitetónicos se situariam no sopé sudoeste daquela rechã, no ponto onde o vale que a limita a poente encontra a praia. 

A riqueza piscícola, designadamente em sardinha, da costa meridional da Arrábida, as excelentes condições naturais de fundeadouro da abrigada enseada do Portinho e a existência de nascente de água doce teriam representado os principais factores responsáveis pela escolha do Creiro para a implantação de um núcleo fabril de produção de preparados de peixe. A própria enseada do Portinho oferecia, até há poucas décadas, excepcional riqueza e diversidade faunística em resultado principalmente do seu fundo se encontrar revestido por Zoostera. Além de moluscos e crustáceos, eram comuns peixes como a raia (género Raja), a enguia (Anguilla anguilla), o bodião (Lobrus bergylta e Symphodus melops), e nela entravam cardumes de peixe-rei (Atherina presbyter) e de juvenis de cavala (Scomber scombrus) e sardinha (Sardina pilchardus) 2

2 Informação pessoal do Dr. Miguel Henriques, coordenador do Museu Oceanográfico do Parque Natural da Arrábida, instalado na Fortaleza de Santa Maria, Portinho da Arrábida. 

2. Organização do espaço edificado. Estruturas arquitetónicas

A fábrica de produção de preparados piscícolas do Creiro que as nossas escavações puseram a descoberto será designada por Fábrica G12 (Fig. 4). Durante o Alto Império teria possuído planta retangular com a área estimada de ca. 730 m2. Era limitada a norte pelo muro (m.) 2 (Fig. 5) da Oficina F14 e, imediatamente a leste desta, pelo m. 25, ao longo do qual foi construído o Edifício H, formado por compartimentos (H1-H3, H6 e H7) de planta retangular; a nascente, pelo m. 26a, que representa o limite oriental de fiada de seis compartimentos (A1-A6) que designámos por “Armazéns”; a sul, pelo m. 27, onde se abria a entrada principal que dava acesso direto a um amplo pátio em torno do qual se organizavam as diversas instalações da fábrica. 

Fig. 4 – Creiro, 2015. Planta geral da área escavada. Levantamento de Jorge Domingos Costa e Júlio Costa. 

Fig. 5 – Creiro, 2015. Planta esquemática da área escavada, com a designação das unidades e elementos arquitetónicos. 

Em período indeterminado, o muro que, por hipótese, encerrava a Fábrica G12 a oeste teria sido destruído em grande parte (resta-nos o m. 1 da Oficina F14) para a construção de um balneário, cuja orientação geral difere completamente da das unidades arquitetónicas atrás referidas. 

A entrada principal da Fábrica G12 (Figs. 12 e 13), que se abria a meio do m. 27, com 2,35 m de largura, possuía uma soleira constituída por blocos aparelhados, lajiformes e paralelepipédicos, de biocalcarenito, o maior com 0,8 x 0,5 x 0,2 m e o menor com 0,35 x 0,25 x 0,2 m. Esta soleira vencia um desnível de 0,2 m e possuía a largura de 0,8 m. A entrada principal era, exteriormente, enquadrada por dois pilares de secção retangular (0,9 x 0,65 m), rebocados com argamassa de cal e areia, que suportariam um telheiro. Além deste vão, identificámos outros de acesso à Fábrica G12: no mesmo muro (27), 2,9 m para oeste da entrada principal, abria-se um vão com 1,2 m de largura que apresentava soleira provida, no exterior, de três degraus; no m. 26a, próximo do canto NE da fábrica, existiu, na fase inicial de construção, uma entrada com 1,45 m de largura, encerrada em fase tardia. 

No exterior da Fábrica G12, identificámos um poço (a NE), um aqueduto (?) e uma cisterna (a SW). 

Também no exterior, foi construído (a SE), no canto formado pelo m. 26b com o m. 27 o que, no atual estado da investigação sobre o Creiro, admitimos tratar-se de outra oficina de produção de preparados de peixe que designaremos por Oficina K10 (Fig. 13) e integraria outra fábrica. 

Fig. 6 – Creiro, 2015. Vista de nordeste da Oficina F14. Em último plano, a baía do Portinho da Arrábida. 

2.1. Oficina F14

Situada no limite norte da Fábrica G12, a Oficina F14 (Figs. 6 e 7) foi edificada sobre parte de um presumível aqueduto. 

A descrição pormenorizada desta oficina foi já publicada (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987), pelo que aludiremos apenas a alguns aspetos que consideramos mais relevantes. 

Trata-se de um edifício de planta retangular (13 x 4,8 m), completamente murado, integrando onze tanques e um pátio aberto a sul através de vão com 1,4 m de largura. 

Os tanques distribuem-se por dois grandes grupos morfo-funcionais. O numericamente mais importante é o dos destinados à produção de salgas e/ou molhos de peixe (Tanques 1–5, 7–10), sendo quatro de planta subquadrangular (Tanques 1–3 e 7) e cinco sub-retangulares (Tanques 4, 5, 8, 9 e 10) (Quadro 1). As paredes e o fundo foram revestidos por uma espécie de “opus signinum” desprovido de cerâmica, ou seja, constituído por cal, areia e cascalho anguloso. Internamente, a junção das paredes entre si formam cantos arredondados, de tal modo que o Tanque 10 possui planta quase ovalada. A ligação das paredes com o fundo faz-se através de meia-cana saliente. 

O outro grupo morfo-funcional está representado pelos Tanques 6 e 11 que correspondem à 1.ª fase de remodelação da oficina; nestes, o pavimento do pátio da oficina foi reutilizado como fundo; os muros (ms. 22–24) então edificados, também revestidos por argamassa de cal, areia e cascalho anguloso, assentaram sobre o pavimento do pátio e adossaram-se à superfície rebocada das paredes dos tanques de salga, por conseguinte preexistentes. 

Os Tanques 6 e 11, o primeiro de planta subquadrangular e o segundo sub-retangular, são menos profundos que os destinados à produção de salga e o seu fundo menos impermeável que o destes; teriam desempenhado funções diferentes, podendo ter sido utilizados como reservatórios de sal. 

O pátio apresentava inicialmente planta em S, mas, logo que na 1.ª fase de remodelação o seu braço este foi ocupado pelo Tanque 6, ficou reduzido a uma planta em L. O pavimento é formado por calhaus sub-rolados que chegam a atingir 0,05 m de eixo maior, de calcário, ou, mais raramente, de brecha da Arrábida, argamassados com cal e areia. No braço oeste existe uma depressão em calote, com 0,5 m de diâmetro, revestida por opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. Esta estrutura corresponde, por certo, a 2.ª fase de remodelação ocorrida na Fase II do funcionamento da Fábrica G12. Pertencente à mesma fase de remodelação, foi identificada no quadrado G14(g), sobre o topo destruído do muro que limita a Oficina F14 a sul, uma outra estrutura também em calote e igualmente revestida por opus signinum muito rico em cerâmica. A sua atribuição à 2.ª fase de remodelação, Fase II de utilização da fábrica, baseia-se nos factos de ter assentado no topo já muito destruído do muro sul (m. 4) da Oficina F14; de ter, em parte, coberto derrubes do mesmo muro; e de ser revestida por opus signinum muito rico em fragmentos de cerâmica (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6). 

Quadro 1 – Creiro, 2015. Oficina F14. Dimensões dos tanques utilizados na produção de preparados de peixe. 

Fig. 7 – Creiro, 2015. Planta da Oficina F14. 

Fig. 8 – Creiro, 2015. Oficina F14. Corte nos Tanques 1 a 5. 

Fig. 9 – Creiro, 2015. Planta do Edifício H e de troço de aqueduto (?) situado imediatamente a norte. 

2.2. Edifício H

Situada no limite norte da Fábrica G12, a Oficina F14 (Figs. 6 e 7) foi edificada sobre parte de um presumível aqueduto. 

A descrição pormenorizada desta oficina foi já publicada (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987), pelo que aludiremos apenas a alguns aspetos que consideramos mais relevantes. 

Trata-se de um edifício de planta retangular (13 x 4,8 m), completamente murado, integrando onze tanques e um pátio aberto a sul através de vão com 1,4 m de largura. 

Os tanques distribuem-se por dois grandes grupos morfo-funcionais. O numericamente mais importante é o dos destinados à produção de salgas e/ou molhos de peixe (Tanques 1–5, 7–10), sendo quatro de planta subquadrangular (Tanques 1–3 e 7) e cinco sub-retangulares (Tanques 4, 5, 8, 9 e 10) (Quadro 1). As paredes e o fundo foram revestidos por uma espécie de “opus signinum” desprovido de cerâmica, ou seja, constituído por cal, areia e cascalho anguloso. Internamente, a junção das paredes entre si formam cantos arredondados, de tal modo que o Tanque 10 possui planta quase ovalada. A ligação das paredes com o fundo faz-se através de meia-cana saliente. 

O outro grupo morfo-funcional está representado pelos Tanques 6 e 11 que correspondem à 1.ª fase de remodelação da oficina; nestes, o pavimento do pátio da oficina foi reutilizado como fundo; os muros (ms. 22–24) então edificados, também revestidos por argamassa de cal, areia e cascalho anguloso, assentaram sobre o pavimento do pátio e adossaram-se à superfície rebocada das paredes dos tanques de salga, por conseguinte preexistentes. 

Os Tanques 6 e 11, o primeiro de planta subquadrangular e o segundo sub-retangular, são menos profundos que os destinados à produção de salga e o seu fundo menos impermeável que o destes; teriam desempenhado funções diferentes, podendo ter sido utilizados como reservatórios de sal. 

O pátio apresentava inicialmente planta em S, mas, logo que na 1.ª fase de remodelação o seu braço este foi ocupado pelo Tanque 6, ficou reduzido a uma planta em L. O pavimento é formado por calhaus sub-rolados que chegam a atingir 0,05 m de eixo maior, de calcário, ou, mais raramente, de brecha da Arrábida, argamassados com cal e areia. No braço oeste existe uma depressão em calote, com 0,5 m de diâmetro, revestida por opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. Esta estrutura corresponde, por certo, a 2.ª fase de remodelação ocorrida na Fase II do funcionamento da Fábrica G12. Pertencente à mesma fase de remodelação, foi identificada no quadrado G14(g), sobre o topo destruído do muro que limita a Oficina F14 a sul, uma outra estrutura também em calote e igualmente revestida por opus signinum muito rico em cerâmica. A sua atribuição à 2.ª fase de remodelação, Fase II de utilização da fábrica, baseia-se nos factos de ter assentado no topo já muito destruído do muro sul (m. 4) da Oficina F14; de ter, em parte, coberto derrubes do mesmo muro; e de ser revestida por opus signinum muito rico em fragmentos de cerâmica (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6). 

2.3. “Armazéns”

Os seis compartimentos (A1-A6) que designámos por “Armazéns” (Figs. 10 e 11) possuem planta retangular e dimensões muito semelhantes entre si: o comprimento oscila entre 4,3m e 4,6 m e a largura entre 1,9 m e 2,6 m. Este conjunto arquitetónico é limitado a nascente pelo m. 26a (0,55 m de espessura), cuja extremidade sul se adossou ao m. 27 e cujo prolongamento para sul é o m. 26b, muros que pertencem à Oficina K10; a sul, pelo m. 27 (0,55 m de espessura); a oeste pelo m. 31 (0,55 m de espessura) e a norte pelo m. 30 (0,55 m de espessura). Os ms. 26a, 30, 31 bem como os que separam os compartimentos oferecem aparelho idêntico ao dos muros do Edifício H e diferente do dos ms. 26b e 27 (da Oficina K10), cujos paramentos são constituídos por blocos de maiores dimensões semi-aparelhados e, em geral, sem blocos mais pequenos entre eles. 

Os “armazéns” comunicam diretamente com o pátio da Fábrica G12 através de vãos abertos no m. 31. 

Somente o “Armazém” 2 foi objeto de escavação em profundidade, verificando-se que  o que resta das suas paredes conserva uma altura compreendida entre 0,10 m (m. 31) e 0,5 m (m. 26a). O pavimento era constituído por camada (ca. 0,05 m de espessura) de blocos com ca. 0,05 m de dimensão máxima ligados por argila. 

O topo do edifício dos “armazéns” separava-se dos Compartimentos H4 (3,6 m x 2,5 m) e H5 (2,4 m x 2,15 m), construídos ao longo do m. 25, por um corredor (1,5 m de largura) de orientação E-W, que, numa primeira fase, abria para o exterior da Fábrica G12 por vão (1,5 m de largura) existente no m. 26a. Este vão foi encerrado em época tardia. O corredor infletia ortogonalmente para sul no Q. I-J/15, indo desembocar no pátio da Fábrica G12. 

Fig. 12 – Creiro, 2015.

Entrada da Fábrica G12, vista de sul:

1– Soleira;

2 – Base de pilares que suportariam um telheiro;

3 – Pátio central. 

Fig. 10 – Creiro, 2015. Aspeto da Fábrica G12. Fotografia obtida de sudeste. 1 – Pátio central; 2 – “armazéns”. 

Fig. 11 – Creiro, 2015. Planta do poço e da área dos “armazéns”. 

2.4. Oficina K10

A Oficina K10 (Fig. 13), muito incompletamente escavada em área, e sem qualquer intervenção arqueológica em profundidade, integraria uma outra fábrica de produção de preparados de peixe, cuja construção foi anterior à da Fábrica

G12, pois, como vimos anteriormente, além das diferenças de aparelho, a extremidade sul do m. 26a (pertencente à Fábrica G12) adossou-se ao m. 27. Este muro tornou-se comum a ambas as fábricas quando da construção da G12. A Oficina K10 é limitada a norte pelo m. 27, a este pelo m. 26b e a oeste pelo m. 55; o muro sul não foi ainda posto a descoberto. 

Organizar-se-ia a partir de um pátio limitado a este pelo m. 26b e possuía tanques subquadrangulares (2,4 x 2,1 m), e retangulares, compridos e estreitos (5,3 x 1,2 m e 4,9 x 1,2 m). 

Fig. 13 – Creiro, 2015. Planta da área da entrada da Fábrica G12 e da Oficina K10. 

2.5. Balneário

A planta do balneário (Fig. 14) apresenta-se incompleta: encontra-se destruído a sul do hipocaustum, em resultado da erosão e da implantação recente de construções clandestinas. Compreende um vestíbulo/apodyterium (B1), uma sala de planta circular (B2), que poderia funcionar igualmente como apodyterium; um frigidarium (B3) com tina forrada a mármore; três compartimentos aquecidos providos de hipocaustum (B4, B5 e B6) e compartimento de apoio à fornalha (B7). 

Os muros do balneário, incluindo os do hipocaustum (com excepção dos do Compartimento B2) oferecem aparelho que obedece ao mesmo modelo: blocos pétreos semi-aparelhados, paramentos regulares e argamassa de cal e areia. 

O vestíbulo (B1) é uma comprida e estreita sala de planta em L (6,6 x 2,6/3,6 m), de orientação NW-SE que comunica com o exterior através de um vão aberto na sua parede SE (m. 61). É pavimentado a opus signinum pouco consistente e rico em fragmentos de cerâmica. Adossado às paredes NE (m. 62) e NW (m. 63) existe um banco constituído por taipa forrada superiormente por tijoleiras e, lateralmente, por reboco de cal e areia. 

Junto do muro SE (m. 61) surgiu, sobre o pavimento, uma acumulação de pequenos (20 x 25 x 20 mm) fragmentos de cerâmica de construção que se destinariam à preparação de opus signinum. 

O vestíbulo comunica a NE com o Compartimento B2, talvez utilizado também como apodyterium, através de um vão com 0,1m de largura, provido de soleira de calcário bem aparelhado e com orifício para encaixe do gonzo da porta. Esta sala tem planta circular (5,4 m de diâmetro interno); a parede que a limita é formada por blocos de calcário mal aparelhados ligados por argila e revestida internamente por reboco de cal e areia; o pavimento é de opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. 

A partir do vestíbulo tem-se ainda acesso ao frigidarium (B3) através de vão (0,85 m de largura) aberto no m. 69. Este compartimento, com 4,8 m por 3,6 m, possui pavimento de opus signinum com fragmentos de cerâmica de reduzidas dimensões. Na base das paredes, no contacto com o pavimento, existe meia-cana saliente de opus signinum. No lado SE tinha-se acesso, através de dois degraus, a uma tina de planta retangular (1,5 x 1,75 m, internamente) revestida por placas de mármore assentes sobre camada de argamassa que, por sua vez, cobre um revestimento de opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. Estão bem patentes duas fases de construção. Assim, os seus muros SE (m. 65) e SW (m. 66) apresentam a seguinte estrutura (do exterior para o interior da tina): muros primitivos, com espessuras de 0,6 m, constituídos por blocos de calcário mal aparelhados ligados por argamassa de cal e areia; reboco de cal e areia com 15 mm de espessura que revestia esses muros; blocos de calcário não aparelhados e ligados por argamassa (espessura 0,13 m); revestimento de opus signinum (0,04 m de espessura), contendo numerosos fragmentos de cerâmica; camada de argamassa sobre a qual assentaram as placas de mármore que, na última fase, revestiram o interior da tina. 

Fig. 14 – Creiro, 2015. Planta do Balneário. 

Fig. 15 – Creiro, 2015. Balneário. Aspeto do hipocaustum (Compartimento B5). Fotografia obtida de noroeste, a partir do interior do Compartimento B7 (sala de apoio à fornalha). 

O frigidarium comunica, por dois vãos abertos na sua parede NW (m. 70), com a zona aquecida do balneário, de que restam três salas (B4, B5 e B6). Estas abrangiam a área total de 34 m2 e reduzem-se ao hipocaustum (Fig. 15), que possuía pavimento de tijoleira. As suspensurae, já desaparecidas, eram suportadas, no Compartimento B5, por pilares de tijolo, de secção retangular (0,35 x 0,20 m) e quadrangular (0,20 m de lado), organizados em cinco fiadas de orientação NE-SW com quatro pilares cada uma; e nos Compartimentos B4 e B6 por estruturas, também de tijolo, em arco. 

O Compartimento B7 correspondia ao praefurnium. De planta retangular (3,9 x 2,9 m), o seu pavimento é constituído pela rocha cortada e afeiçoada e encontra-se ao nível do pavimento  do hipocaustum; comunica com o B6 através de fornalha de cano simples (Reis, 2004, Fig. 9), com 1,8 m de comprimento por 0,85 m de largura, de cobertura em arco de tijolo. 

Acedia-se ao Compartimento B7 por escada de alvenaria adossada à superfície interna da parede NE (m. 69), que venceria um desnível de 1,1m; conservou-se o degrau inferior, assente sobre um embasamento de planta retangular (1,83 x 0,66 m) e 0,45 m de altura, construído com blocos pétreos não aparelhados e fragmentos de tijoleira ligados por argila. 

As paredes deste compartimento conservam a altura de 1,98 m e têm 0,45 m de espessura. Na parede SE (m. 73), comum ao Compartimento B5, existe uma abertura muito destruída, detetando-se os restos de um arco de tijolo, por onde o ar quente do praefurnium passaria para o hipocaustum daquele compartimento. 

No exterior do balneário, confinando com o seu lado NW (m. 72), à cota de 9,09 m (o pavimento do frigidarium tem de cota 7,76 m e o piso do hipocaustum, ca. 6.6 m), e na direcção da fornalha, registou-se a base do que poderia ter sido um reservatório de água; de planta trapezoidal (2,5 m de comprimento conservado por 1,70/1 m de largura), era revestido por opus signinum, contendo numerosos fragmentos de cerâmica. Este revestimento formava três camadas sobrepostas. 

Fig. 16 – Creiro, 2015. Balneário. Escavação na área do Compartimento B1: Conduta α (1), cortada, em momento de época indeterminada, pela Conduta λ (3); 2 – Conduta β. 

Fig. 17 – Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B1: 1– Conduta α, conservando o arco da abóbada subjacente ao Compartimento B3; 2 – Conduta λ. 

2.6. Sistema hidráulico

No exterior da Fábrica G12, próximo do seu canto NE (Q. J16), surgiu a boca de um poço (não escavado em profundidade), circular, com 1,8 m de diâmetro interno e muro (0,55 m de espessura) de blocos não aparelhados, de calcário e biocalcarenito, ligados por argila. Ao lado oriental deste muro adossa-se uma estrutura de planta trapezoidal, incompletamente escavada em superfície e profundidade, com 1,8 m de comprimento atual e 1/1,2 m de largura, que pode ter sido um tanque ou a abertura do acesso ao poço se este for de mergulho (Fig. 11). 

A l,6 m do poço, para oeste, existe uma estrutura retangular, comprida e estreita (6,6 m de comprimento por 0,85 m de largura interna) limitada por muros de blocos de calcário e biocalcarenito unidos por cal e areia e de aparelho semelhante ao dos muros 26b e 27. Esta estrutura prolonga-se para oeste, sem aparentes soluções de continuidade, por extradorso de abóbada de berço construída com pequenos blocos ligados por abundante argamassa; tem ca. 1m de largura e estende-se por 7,2 m até atingir o muro nascente (m. 3) da Oficina F14, sob a qual continua para oeste. Estaremos perante o aqueduto que conduzia a água do poço para a cisterna? Seria anterior à implantação da Fábrica G12, visto ter sido coberto pela Oficina F14 e (parcialmente) pelo m. 25 que limita a fábrica a norte. É muito possível que este presumível aqueduto se prolongue pela conduta identificada em 1987 através de profundo rombo no pavimento do braço oeste do pátio da Oficina F14. Verificámos então tratar-se do troço de uma canalização, de direção NE-SW, com 0,5 m de largura e 0,6 m de altura que, passando sob aquela oficina, prosseguia para além dela a partir do seu canto SW (Q. E13). O fundo e a parte inferior das paredes (até à altura de 0,35 m) eram revestidos por “opus signinum” sem fragmentos de cerâmica. Possuía meia cana saliente na ligação do fundo com as paredes (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, p. 228). 

Nos Qs. E/13-12, ao escavarmos em profundidade o Compartimento B1 do balneário, pusemos a descoberto três condutas, que designámos por Alfa, Beta e Gama (Figs. 14, 16 e 17). A primeira, que canalizava água para a cisterna, passava sob os Compartimentos B1 e B3 do balneário e talvez fizesse parte do sistema hidráulico a que teria pertencido a estrutura abobadada anteriormente referida bem como a conduta observada em 1987 (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 227–228). Observámo-la numa extensão de 0,8 m (orientação N-S). Com 1 m de altura e 0,4 m de largura interna, possui as paredes (0,65 m de altura) constituídas por blocos em geral com 0,1 m de dimensão máxima, não aparelhados e ligados por argamassa de cal e areia; o fundo, revestido por “opus signinum”, sem cerâmica; meias-canas salientes na ligação das paredes com o fundo; abóbada de tijolo (só observada sob o frigidarium, já que na área do vestíbulo foi totalmente destruída). Esta conduta teria sido desativada, se não antes, pelo menos quando da construção da Conduta γ, que a cortou transversalmente (Fig. 17). 

De secção interna retangular (0,27/0,35 m de largura; 0,1 m de altura), a Conduta β (Fig. 16) foi construída com tijoleiras que formam o fundo, as paredes e a cobertura. Observámo-la numa extensão de 1,55 (orientação NW-SE). 

A Conduta γ tem, igualmente, secção interna retangular (0,18 m de largura e 0,1 m de altura) e é constituída também por tijoleiras. O troço posto a descoberto, de orientação W-E, desembocava na Conduta β (Fig. 16). 

As Condutas β e γ poderiam ter servido para escoar as águas do balneário. 

A cisterna situa-se imediatamente a sul do Compartimento B3 do balneário. Não foi objeto de qualquer escavação arqueológica. Localizada no cimo da encosta que desce para a praia, a erosão que sobre ela tem atuado pôs parcialmente a descoberto os seus muros laterais Estes conservam ainda, nas suas extremidades setentrionais, restos do arranque de abóbada; eram revestidos por “opus signinum” sem fragmentos de cerâmica, mas sim com pequenos calhaus rolados (dimensão máxima inferior a 1 cm). 

3. Contextos estratigráficos e cronologia

Durante a 2.ª metade do século I e no século II, a Oficina F14 teria funcionado de modo pleno. Em momento indeterminado deste último século, pelo menos parte dos tanques (os 6 e 7 comprovadamente) são desativados, bem como o “Armazém” 2 (o único até agora integralmente escavado). Encerra-se, assim, a primeira fase do funcionamento da Fábrica G12. 

A desativação da Oficina F14, no século II, parece-nos plausível se atendermos à quase ausência de ânforas piscícolas cronologicamente situadas entre as primeiras décadas do século III e meados do séculos IV, como a Almagro 50 ou a Almagro 51c, var. B. Teria provavelmente voltado a funcionar durante o Baixo Império, talvez a partir de meados do século IV. A construção de uma cuvette de limpeza do pátio, em opus signinum rico em fragmentos de cerâmica, e de uma outra igualmente de opus signinum do mesmo tipo, que foi assentar sobre o topo do m. 4, já então arruinado, bem como sobre parte dos derrubes do mesmo muro (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6), testemunham a laboração desta oficina durante o Baixo Império. O seu definitivo encerramento teria ocorrido na passagem do século IV para o V, se aceitarmos esta cronologia para a presença em nível de abandono e derrube de telhado do Tanque 3 (C.4) da forma Hayes 73 A (Silva, 2010), após o que, e ao longo do século V, alguns tanques, ao mesmo tempo que entram em ruinas, são reutilizados como vazadouro de lixos domésticos (Fase IIB). 

3.1. Oficina F14

Elementos relativos à cronologia da plena atividade e dos primeiros derrubes da Oficina F14 foram já apresentados em Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987. 

Contexto A (Quadro 2). – Os Tanques 6 e 7 teriam sido definitivamente desativados no final da Fase I. Com efeito, formou-se em ambos, sobre o fundo, um nível de abandono (C.3), de areia argilosa castanho-avermelhada, embalando, no primeiro, terra sigillata hispânica, forma Drag. 27, de variante integrável na época de Trajano (Bustamante, 2013, p. 97, Fig. 55), e ânfora Dressel 14 de produção regional, e, no Tanque 7, terra sigillata sudgálica, forma Drag. 18B (Genin, 2007, p. 323), datada por esta autora de 20/30 a 112/120; terra sigillata hispânica, formas Drag.15/17, variante C de Bustamante, que surge na Época Flávia e se desenvolve amplamente durante o século II (Bustamante, 2013, p. 84, Fig. 39), e Drag. 27 (Fig. 23, n.os 1 e 2). 

Sobre essa camada de abandono, repousava um nível com numerosos imbrices, correspondente ao derrube do telhado, sobreposto por blocos de calcário resultantes da queda da parte superior das paredes dos tanques (Fig. 18). 

Quadro 2 – Creiro, 2015. Contextos arqueológicos considerados no presente estudo. 

Fig. 18 – Creiro, 2015. Oficina F14. Tanque 7. Perfil oeste do enchimento. A C.3 (publicada em 1987 como C.2), era um nível de abandono e continha terra sigillata sudgálica, na forma Drag, 18, e hispânica, nas formas Drag. 15/17 e 27. 

Fig. 19 – Creiro, 2015. Oficina F14. Tanque 3. Perfil norte do enchimento. A C.4, nível de derrube de telhado de imbrices, continha terra sigillata africana D, Hayes 73A. 

Contexto D. – Os Tanques 1 e 3 (Fig. 19) possuíam, assente no fundo (que se encontrava bem conservado), nível de derrube do telhado. Esta camada continha terra sigillata africana D, forma Hayes 73A (Camada 4 do Tanque 3 – Fig. 24, n.º 3) e ânforas Almagro 51c, var. C (Fig. 27, n.º 1) e Sado 2 (C. 2 do Tanque 1), datadas na olaria do Pinheiro, a primeira da 2.ª metade do século IV e do século V, e a Sado 2 dos finais do século IV e século V (Mayet & Tavares da Silva, 1998). A forma Hayes 73A de terra sigillata africana D é datada por Hayes (1972, p. 124) de 420 a 475, mas, como nota A. P. Magalhães da Silva (2010, p. 60) tem integrado contextos dos finais do século IV, prolongando-se pelo século seguinte. Assim, a cronologia do final da atividade produtiva da Oficina F14, e se atendermos, como veremos seguidamente, à sequência geral aí observada, poderá situar-se entre os finais do século IV e o 1.º quartel do século V. 

Contexto E (Quadro 2). – Os Tanques 2 (Fig. 20) e 4 apresentavam sobre o fundo, em geral mal conservado, nível formado por derrubes e pela acumulação de lixos domésticos que continham os seguintes materiais datantes: terra sigillata africana D, formas Hayes 61B, 76 e 91B (Fig. 24, n.os 1, 4 e 6); ânforas de fabrico regional, das formas Almagro 51c, var. C (Fig. 27, n.os 2–3), Almagro 51 a–b (Fig. 27, n.os 4–5), Sado 1, var. B (Fig. 27, n.º 6) e Sado 2 (Fig. 27, n.º 7); ânforas das formas Keay XXVII B (Fig. 27, n.º 8) e Keay XXXV B (Fig. 27, n.º 9). 

A terra sigillata africana representada nestas lixeiras indica uma cronologia centrada no intervalo compreendido entre o 2.º e o 3.º quartéis do século V: Bonifay (2004, pp. 171, 179) data a Hayes 61B de 400–450 e a Hayes 91B de meados do século V; a Hayes 76 é datada por Hayes (1972, p. 125) de ca. 425–475. No que se refere à cronologia das ânforas, na olaria do Pinheiro, as formas Sado 1, var. B, Almagro 51c, var. C, Almagro 51 a–b e Sado 2, embora remontem a sua origem, na mesma olaria, as duas primeiras à 2.ª metade do século IV e as duas últimas aos finais do mesmo século, prolongam-se plenamente pelo século V (Mayet & Tavares da Silva, 1998). Por outro lado, as ânforas Keay XXVII B e Keay XXXV B são características do século V: a XXVIIB da primeira metade e a XXXV B dos dois primeiros terços desse século (Bonifay, 2004, pp. 132, 135). 

Como atrás dissemos, a Oficina F14, uma vez abandonada, transformou-se em depósito de lixos domésticos (Contexto E), em uso, provavelmente, até ao 3.º quartel do século V. Deste modo, consideramos que com a desativação da Oficina F14, a Fábrica G12, no seu conjunto, perdeu igualmente a valência produtiva associada aos preparados piscícolas, mas o espaço continuou a ser habitado com carácter doméstico e agropastoril (atenda-se à presença, neste horizonte, de Bos taurus, de acordo com estudo arqueozoológico da autoria de Cleia Detry), ao longo do século V (Fase IIB). 

Fig. 20 – Creiro, 2015. Oficina F14. Tanque 2. Perfil oeste do enchimento. A C.2 era um nível de derrubes e lixeira, contendo terra sigillata africana D nas formas Hayes 61B, 76 e 91B; ânforas Almagro 51c, variante C; Almagro 51 a–b; Sado 1, variante B; Sado 2; Keay XXVIIB e Keay XXXVB e abundante cerâmica comum. 

Fig. 21 – Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B1. Perfil noroeste dos Qs. E12-E13. A C.3, nível de derrube de paredes e telhado de imbrices, continha ânfora Almagro 51C e assentava no pavimento (C.4) do compartimento. A C.6 era uma formação coluvionar e continha terra sigillata africana A, Hayes 14 B; ânforas Beltrán II e Dressel 14, variantes B e C; repousava sobre o substrato geológico (C. 7). 

3.2. “Armazém” 2

Contexto B (Quadro 2). – O “Armazém” 2 foi, até ao presente, o único escavado em profundidade.

Sob a C.1, aflorou um nível de derrube de telhado, com numerosos fragmentos de imbrices (C. 2A) e escassos artefactos datantes: terra sigillata hispânica atribuível à forma Drag. 15/17. Esta camada repousava em um nível de abandono (C. 2B), assente no pavimento do compartimento, que continha terra sigillata hispânica (forma indeterminada) e ânfora Dressel 28 (Fig. 23, n.º 12), de pasta francamente micácea e acastanhada, não tendo sido certamente produzida no Baixo Sado. Esta ânfora, relativamente rara em jazidas portuguesas (Banha & Arsénio, 1998, pp. 170–171; Almeida & alii, 2014, Fig. 2), foi produzida na Tarraconense, na Bética e em França entre o final do século I a.C. e a primeira metade do século II (Peacock & Williams, 1986, pp. 149–150); na olaria do Pinheiro, ocorre em contexto do final do século II/inícios do século III, associada à Dressel 14 tardia e à Almagro 51c, var. A (Mayet & Tavares da Silva, 1998). 

A função como armazém deste compartimento está documentada pela exumação na C. 2B de pesos de rede (em chumbo — Fig. 23, n.º 14 —, cerâmica — Fig. 23, n.º 13 — e em concha de Glycimeris glycimeris perfurada no vértice) e de numerosos e grandes fragmentos de duas talhas (Fig. 23, n.º 10) que, pelas suas dimensões, deveriam, quando inteiras, ocupar grande parte da área do armazém. 

O “Armazém” 2 teria sido abandonado (definitivamente) em momento indeterminado do século II. 

3.3. Balneário

Contexto C (Quadro 2). – O pavimento do Compartimento B1 (vestibulum/apodyterium) assentava sobre camada (C. 5), talvez de enchimento e regularização que foi colmatar a vala aberta para receber a Conduta β (Fig. 21). Este nível revelou-se infértil quanto a artefactos datantes. Já a camada imediatamente subjacente (C. 6), de origem coluvionar, continha artefactos exclusivamente do Alto Império, em que a cronologia dos mais recentes — 2.ª metade do século II (terra sigillata africana A, forma Hayes 14B — Fig. 23, n.º 3 —, associada a ânfora Dressel 14, var. C, de fabrico regional, Fig. 23, n.º 11) — representa o terminus post quem para a construção daquele pavimento, de opus signinum com numerosos e grandes fragmentos de cerâmica. 

O pavimento (C.3) do Compartimento B3 (frigidarium), também de opus signinum, mas com fragmentos de cerâmica menos numerosos e de reduzidas dimensões, repousava sobre nível (C.4) sedimentologicamente muito semelhante à C.6 do Compartimento B1, tendo fornecido igualmente artefactos pertencentes somente ao Alto Império (terra sigillata sudgálica e ânforas Dressel 14 de produção regional). Esta C.4 cobria a abóbada da Conduta α. 

No estado atual da investigação sobre o Creiro não é possível determinar a data de construção destas salas, em particular, e do balneário, em geral. Este estaria em obras de remodelação quando foi definitivamente abandonado. Com efeito, atenda-se às acumulações de fragmentos de cerâmica de construção destinados, por certo, à obtenção de opus signinum, que repousavam sobre os pavimentos dos Compartimentos B1 e B2. 

Contexto F (Quadro 2). – A C.4 dos Compartimentos B5 (Fig. 22) e B6, nível com 0,1 m de espessura, de areia argilosa rosada/bege com manchas cinzentas ricas em carvão, que assentava no pavimento, de tijoleiras, do hipocaustum, e que pode corresponder aos últimos momentos da atividade do balneário, continha terra sigillata africana D, forma Hayes 61B (variantes B1 e B2 de Bonifay, datadas por este autor da 1.ª metade do século V — Bonifay, 2004, p. 171). 

Contexto G (Quadro 2). – As camadas de derrube (C.2 dos Compartimentos B2 e B3 e Cs. 2 e 3 dos Compartimentos B1, B4, B5, B6 e B7 — Figs. 21–22) marcam o abandono definitivo do balneário; forneceram terra sigillata africana D (Fig. 24), Hayes 61 B, 64, 73 A, 80 A e 91 B, e ânforas Almagro 51c, var. indeterminada, Almagro 51 a–b e Sado 1, var. B (Fig. 29). Estas ânforas, como atrás referimos, embora ocorram igualmente em contextos do século IV, abrangem o século V. No que respeita à terra sigillata africana D, o século V está bem documentado pela presença das formas Hayes 61 B (1.ª metade desse século — Bonifay, 2004, pp. 170, 171), Hayes 64 (2.ª metade — Hayes, 1972, p. 111), 80 A (meados e 2.ª metade — Bonifay, 2004, p. 173) e Hayes 91B (meados — Bonifay, 2004, p. 179). 

Fig. 22 – Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B5. Perfil nordeste do hipocaustum. A C.4, rica em cinzas e carvões, parece corresponder aos últimos momentos de funcionamento do balneário; era sobreposta por níveis de derrube dos pilares (C.3) e do pavimento (C.2) do Compartimento B5. 

Quadro 3 – Creiro, 2015. Cerâmica comum.

* Pasta micácea, cor negra e produção manual. 

 

4. Conclusões

As escavações arqueológicas que o MAEDS efetuou no Creiro permitiram identificar uma unidade fabril de salga de peixe da época romana não reduzida à oficina de produção propriamente dita, mas integrando, para além desta, outras instalações quer ligadas à armazenagem (de sal e outras produtos que entrariam na preparação das salgas e molhos; de ânforas vazias ou já repletas de preparados piscícolas a aguardar embarque a partir da baía do Portinho da Arrábida…) quer com caráter habitacional e/ou administrativo (Edifício H). Pôs-se ainda a descoberto elementos de um sistema hidráulico (poço, condutas de água e cisterna) e um balneário. 

A atividade produtiva do Creiro não se limitava à desenvolvida na Fábrica G12, pois existiriam outras unidades de produção, como a Oficina K10, cuja escavação iniciámos, as quais poderiam ser também servidas pelo sistema hidráulico e pelo balneário identificados. 

Esta reunião de diversas valências funcionais em uma só unidade fabril parece contrastar com o observado em outros complexos “industriais”, como o de Sines (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2006) onde, por hipótese, os armazéns e a administração correspondentes a diversas oficinas de produção estariam concentrados em local separado da área produtiva. Esta diferenciação entre a produção e a comercialização foi igualmente sugerida por Etienne & Mayet (2002, p. 104) para a organização de pequenos estabelecimentos de fabrico de salga de peixe de Almuñecar datados da Época Púnica. 

Uma das mais prementes questões que podemos colocar sobre a Fábrica G12 (na sua fase alto-imperial), prende-se com o regime de propriedade. Seria estatal ou privada? O facto de a fábrica se encontrar murada, confinando com outra(s) igualmente murada(s) e possuir um edifício provavelmente com funções habitacionais e/ou administrativas parece sustentar a hipótese da propriedade privada (Etienne & Mayet, 2002, p. 105). A escavação em profundidade do Edifício H, se se vier a confirmar o seu caráter habitacional, poderá fornecer-nos elementos que permitam determinar o estatuto socioeconómico dos seus habitantes. 

A Fábrica G 12 revela duas fases de funcionamento. A primeira ter-se-ia iniciado no 3.º quartel do século I (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987) e concluído em momento indeterminado do século II, período durante o qual funcionou plenamente, tendo utilizado como ânfora piscícola a Dressel 14. 

A segunda fase teria começado, presumivelmente, na 2.ª metade do século IV e terminado no 1.º quartel do século seguinte. Com esta segunda fase (IIA) teria ocorrido a redução da área de funcionamento fabril, situação verificada em outros estabelecimentos de preparados de peixe, como a Oficina A do Largo João de Deus, em Sines (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2006). 

Durante o 2.º e 3.º quartéis do século V, o local, com a fábrica já desativada, continuou a ser ocupado, pelo que alguns tanques da Oficina F14 são então reutilizados como vazadouro de lixos domésticos (Fase IIB). 

A imagem que nos chega do ambiente edificado existente na segunda dessas fases é de grande degradação. Só parte da oficina, já meio arruinada (ver Corte B, de 1987 — Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6), é reativada; o “Armazém” 2 (o único escavado em profundidade) encontrava-se abandonado. O Creiro não é um caso isolado no que respeita a essa imagem de degradação datada da 2.ª metade do século IV e do século V. Por exemplo, nas últimas fases da unidade de preparados de peixe da Casa do Governador da Torre de Belém (Lisboa), enquanto “boa parte da fábrica se encontraria destelhada e, portanto, destinada a outros usos que não a sua primitiva função ou simplesmente abandonada”, alguns tanques “estariam ainda dedicados à produção de preparados de peixe” (Filipe & Fabião, 2006–2007, p. 113). 

O balneário é definitivamente abandonado também no século V. 

Durante a segunda fase, as ânforas mais utilizadas para conter os preparados de peixe produzidos na Fábrica G12 são a Almagro 51c, var. C, a Almagro 51 a–b e a Sado 1, var. B, tal como em Tróia, onde estas formas representam “ a tríade típica dos níveis tardios” (Almeida & alii, 2014, p. 419). Chegam ao Creiro, na mesma fase, ânforas importadas (Keay XXVII B e Keay XXXV B), juntamente com terra sigillata africana. 

Fig. 23 – Creiro, 2015. Fase I. Contextos A (n.os 1, 2, 4 e 6), B (n.os 5, 7–10 e 12–14) e C (n.os 3 e 11). Terra sigillata sudgálica (n.º 1), hispânica (n.º 2) e africana A (n.º 3); cerâmica comum (n.os 4–10); ânfora Dressel 14 (n.º 11) e Dressel 28 (n.º 12); pesos de rede em cerâmica (n.º 13) e em chumbo (n.º 14)

Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

Fig. 24 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n.º 3), E (n.os 1, 4, 6 e 7) e G (n.os 2, 5, 8–9). Terra sigillata africana D: Hayes 61B (n.os 1 e 2), 73A (n.º 3), 76 (n.º 4), 80A (n.º 5), 91B (n.º 6) e com decoração estampada (n.os 7–9).

Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

Fig. 25 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n.º 6) e E (n.os 1–5, 7–9). Cerâmica comum. Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

 

Fig. 26 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n.º 7) e E (n.os 1–6, 8 e 9). Cerâmica comum. Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

 

O estabelecimento do Creiro integrava certamente o importante centro fabril de preparados piscícolas do Baixo Sado, dominado por Caetobriga (Setúbal e Tróia), onde, na produção de salgas de peixe e dos contentores que as transportavam, estão bem patentes as duas fases representadas no Creiro. De notar, porém, que enquanto em Tróia (Etienne & alii, 1994), bem como nas olarias romanas do Sado (Mayet & Tavares da Silva, 1998, 2002), a segunda fase, de profunda reestruturação, ocorre logo a partir do século III, no Creiro parece iniciar-se somente na 2.ª metade do século IV, à semelhança do que teria acontecido na Travessa de Frei Gaspar, em Setúbal, onde a oficina de produção de salga de peixe é reativada, parcialmente, nunca antes da 2.ª metade do século IV/século V (Tavares da Silva & alii, 1986). 

A fundação do complexo fabril do Creiro, aparentemente isolado na faixa costeira da Serra da Arrábida, quando um pouco mais a montante existia o grande centro produtor de Setúbal e Tróia, é explicável numa lógica de comunicação aquática e de exploração sistemática e exaustiva de um território colonizado. Seria, assim, impensável desperdiçar os recursos naturais da baía do Portinho da Arrábida que comportavam desde a riqueza piscícola às excecionais condições de caráter portuário. A mesma lógica teria presidido, aliás, à criação do rosário de pequenos estabelecimentos fabris que integravam, além do Creiro, a Comenda, a Rasca e Sesimbra. 

Fig. 27 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n. 1) e E (n. os 2–9). Ânforas: Almagro 51c, var. C (n.os 1–3); Almagro 51 a–b (n.os 4–5); Sado 1, var B (n.º 6); Sado 2 (n.º 7); Keay XXVII B (n.º 8); Keay XXXV B (n.º 9). Desenhos de Ana Castela. 

Fig. 29 – Creiro, 2015. Fase II. Contexto G. Cerâmica comum (nos 1–11) e ânforas: Sado 1, var. B (n.º 12) e Almagro 51a–b (n.º 13).

Desenhos de Ana Castela. 

 

Fig. 28 (à esquerda)– Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B5. Elementos tubulares em cerâmica provenientes da C. 3 (derrubes dos pilares das suspensurae) – n.os 1 e 2 – e da C. 4 (derrubes finos, entre os pilares das suspensurae) – n.º 3.

Desenhos de Ana Castela. 

 

Creiro (Arrábida): um estabelecimento de produção de preparados de peixe da Época Romana

Carlos Tavares da Silva e Antónia Coelho-Soares
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The Roman influence on Sado

Caetobriga: uma cidade fabril e polinucleada na foz do Sado

Introdução. Caetobriga: uma cidade fabril e polinucleada na foz do Sado

 Caetobriga. O sítio arqueológico da Casa dos Mosaicos (Setúbal Arqueológica, Vol . 17, 2018), p. 11-42

Joaquina Soares - Carlos Tavares da Silva

 Introdução

Até às intervenções de arqueologia urbana desenvolvidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), no âmbito do projecto de investigação sobre as preexistências de Setúbal, a partir de meados dos anos 70 do século XX, o paradigma dominante situava Caetobriga em Tróia. As ruinas de uma cidade antiga na margem esquerda da foz do Sado, que André de Resende (1593) visitou e muito provavelmente baptizou de Tróia no ambiente renascentista da segunda metade de quinhentos (quiçá por inspiração dos textos homéricos), seriam igualmente motivação, em pleno Romantismo, para a fundação, em Setúbal, da Sociedade Archeologica Lusitana com o propósito da escavação e estudo daquela jazida e da criação de museu monográfico.

 De entre o numeroso espólio móvel que foi sendo exumado das “ruínas” de Tróia, durante as escavações antigas, reproduzimos aqui a ânfora Dressel 14 publicada por Gama Xaro em 1860, no Archivo Pittoresco (Fig. 1) e a taça de prata então depositada na residência do duque de Palmela (Fig. 2), publicada no vol. I dos Annaes da Sociedade Archeologica Lusitana, p. 4-8, a que foi atribuída significado religioso, face à presença de decoração relevada com figuras mitológicas “vermiculadas de ouro” (SAL, 1851, p. 19), em que se destacam elementos marinhos e o tridente associado a Neptuno. Teria pertencido ao conteúdo de “um pequeno caixão de chumbo” posto a descoberto pela erosão fluvial no inverno de 1814.

 “Na margem esquerda do Sadão, e não longe da foz do mesmo, jazem dispersas as ruinas de uma cidade, que os antiquários suppõem ser a antiga Cetobriga. Não é possível andar por entre aquellas ruinas; achar alli com pasmosa facilidade moedas romanas; vêr na extensão de quasi uma legoa os destroços dos edifícios; encontrar agora fragmentos de amphoras; logo lâmpadas de barro; aqui troços de marmore; acolá vasos de diferentes feitios; não é possível, dizemos nós, vêr, examinar e estudar tudo isto, sem que ao mesmo tempo se sinta nascer e crescer na alma um sentimento de curiosidade, um desejo intenso de explorar estas ruinas, e investigar a causa que as produziu, visto que os livros sómente nos dizem que por alli existira uma cidade, que tinha o nome de Cetobriga. 

“Como desapareceria Cetobriga? Cairia por decadência do commercio e abandono sucessivo? 

 “Que lição nos estão dando suas ruinas? Attestarão os efeitos da guerra? Estarão alli como exemplo da punição de grandes erros? Quem o sabe?! Seria talvez um cataclismo, uma irrupção violenta do mar, um terremoto que subvertesse a cidade? Estarão alli sepultadas as riquezas de seus habitantes? Por que se não ha de fazer alli uma excavação? Oh! as ruinas são sempre uma página sublime do grande livro da Humanidade! Mal haja quem as não estuda, quem as não compreende, quem compreendendo-as não aproveita suas lições!”

SAL, 1850, p. 2-3

Introdução

Os achados romanos da área urbana de Setúbal (Fig. 3) identificados por José Marques da Costa, em 1957 (Costa, 1960), ao longo de cerca de 700m da margem direita da baía, não lograram alterar aquele paradigma. O achado mais notável, e com maior impacto na opinião pública, dessa extensa visitação ao subsolo arqueológico de Setúbal, ocorreu na Rua Fran Paxeco (antiga Rua Direita de Tróino) e consistiu em: ânfora fragmentada e não recuperada com um tesouro monetário de que foi possível recolher 11091 numismas, depositados no Museu do Convento de Jesus; ânfora completa (Fig. 3C) da forma Beltran 65A (Coelho-Soares & Tavares da Silva, 1978), contendo um tesouro de 7091 moedas do século IV d. C., depositado no mesmo museu. As 18181 moedas recuperadas foram estudadas e publicadas em 1975 pelo coronel J. A. de Carvalho Fernandes, que concluiu serem todas de bronze (médios e pequenos bronzes) e, com raras excepções, respeitarem à “Casa de Constantino Magno e Sucessores”. Exceptuando um exemplar de 187 a 155 d. C., os restantes numismas foram cunhados entre 253 e 363 d. C. Estes achados numismáticos apontam, como outros indicadores arqueológicos, para a crise e insegurança que se instalou, na Setúbal romana, na segunda metade do séc. IV. 

Fernando Bandeira Ferreira (1959) considerou os achados romanos de Setúbal como depósitos secundários associados a operações de secagem de sapais e desvalorizou publicamente as observações de J. Marques da Costa, usando o infeliz argumento de Magister Dixit. Fernando Bandeira Ferreira localiza então Caetobriga no castro sidérico de Chibanes, o que respondia aos pressupostos do sufixo briga de origem celta, significando colina eventualmente fortificada, e propõe a sua migração para Tróia no período romano imperial, quando o sítio de Chibanes foi abandonado; persiste, apesar das evidências materiais postas a descoberto por José Marques da Costa, na ideia de que não existia qualquer estabelecimento estável na margem direita da foz do Sado. Fernando Castelo-Branco (1954, 1963) apoia a hipótese de localização de Caetobriga defendida por F. Bandeira Ferreira, muito embora reconheça a existência em Setúbal de “um pequeno povoado lusitano-romano” sem escala para corresponder à cidade de Caetobriga. 

Fig. 1 – Ânfora Dressel 14 de Tróia, publicada por Gama Xaro, membro fundador da Sociedade Archeologica Lusitana, em 1860, no Archivo Pittoresco. 

Fig. 2 – Taça em prata então depositada na residência do duque de Palmela, muito provavelmente proveniente de contexto funerário de Tróia e publicada pela Sociedade Archeologica Lusitana em 1851 (SAL, 1851, p. 19). 

fig2Caetobriga

Fig. 3 – A-Distribuição dos vestígios romanos observados por José Marques da Costa, quando das obras de saneamento básico de 1957 (Costa, 1960); B-confirmação do mapa anterior pelo projecto “Preexistências de Setúbal”, desenvolvido pelo MAEDS, onde se assinalam os principais contextos romanos escavados e publicados. C- ânfora tardo-romana (Beltran 65A) encontrada na Rua Fran Paxeco, em 1957, repleta de moedas datadas do século IV (Fernandes, 1975).

Fig. 4 – Principais intervenções arqueológicas desenvolvidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, na área urbana de Setúbal:

1 – Rua Francisco Augusto Flamengo, 10-12;
2 – Travessa dos Apóstolos;
3- Rua Arronches Junqueiro 32-34;
4 – Rua Arronches Junqueiro 73-75;
5 – Rua António Joaquim Granjo;
6 – Rua António Joaquim Granjo, 19 (Casa dos Mosaicos);
7 – Travessa de João Galo, 4-4B;
8 – Largo da Misericórdia;
9 – Travessa de Frei Gaspar;
10 – Travessa da Portuguesa;
11 – Av. Luisa Todi (edifício BCP);
12 – Rua Major Afonso Pala;
13 – Rua Álvaro Castelões;
14 a 16 – Rua António Januário da Silva;
17 – Rua Serpa Pinto;

18 – Avenida 5 Outubro;
19 – Rua Luís de Camões;
20 – Praça de Bocage / Av. Luisa Todi (edifício Montepio);
21 – Praça de Bocage;
22 – Largo do Sapalinho;
23 – Praça de Bocage/Loja Chiado;
24 – Rua de Bocage / Rua Augusto Cardoso (edifício daVinícola/Benetton);
25 – Beco de Dona Maria;
26 – Av. 22 de Dezembro;
27 – Rua Augusto Cardoso;
28 – Praça Miguel Bombarda/Largo do Convento de Jesus;
29 – Rua Acácio Barradas, 2;
30 – Rua António Maria Eusébio;
31 – Praça Machado dos Santos/Largo da Fonte Nova;
32 – Largo António Joaquim Correia;
33 – Baluarte da Nossa Senhora da Conceição;
34- Av. Luisa Todi, nos. 170-178;
35-Av. Luisa Todi, 266-272/Largo da Ribeira Velha.

As intervenções arqueológicas realizadas pelo MAEDS na área urbana de Setúbal (Fig. 4) vieram precisamente comprovar a existência de uma povoação romana (Fig. 5), tendo a distribuição dos seus vestígios ocupado não só o subsolo do burgo medieval muralhado, mas também o dos arrabaldes de Troino e Palhais, em uma extensão linear com cerca de 700m. 

Porém, tão importante quanto a identificação da Setúbal romana foram os estudos sobre a presença romana a uma escala regional promovidos e/ou participados pelo MAEDS, nomeadamente na Ilha do Pessegueiro (Tavares da Silva & Soares, 1993), área urbana de Sines (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2006), castelo de Alcácer do Sal (Tavares da Silva et al, 1980-81), Península de Tróia (Étienne, Makaroun, & Mayet, 1994; Mayet & Tavares da Silva, 2000a; Soares, 1980; Soares & Tavares da Silva, 2012), olarias romanas da margem direita do Sado (Coelho-Soares & Tavares da Silva, 1979; Mayet & Tavares da Silva, 1998, 2002, 2010, 2016; Mayet, Schmitt & Tavares da Silva, 1996), calçada romana do Viso (Tavares da Silva & Soares, 1986), estabelecimento do Creiro (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2016; Detry & Tavares da Silva, 2016), que permitiram a obtenção de uma visão coerente sobre a romanização à escala do Baixo Sado (Fig. 6); só a esta escala seria possível pensar Caetobriga como uma cidade polinucleada, cujo principal núcleo administrativo se teria situado no território da actual cidade de Setúbal, mas cujos principais sectores produtivos da fileira de preparados piscícolas se localizariam, por um lado, em Tróia (oficinas de salgas e molhos de peixe), e, por outro, na margem direita do Sado (olarias de ânforas) a jusante de Alcácer do Sal, pontuando com as suas manchas florestais e cais o rebordo do extenso salgado que, com a riqueza piscícola da região, fizeram a fortuna de Caetobriga, cidade de artérias aquáticas. 

Destacamos de entre as numerosas escavações de arqueologia urbana levadas a efeito pelo MAEDS, pelos significativos contributos trazidos a esta problemática, as intervenções, dirigidas pela signatária e por Carlos Tavares da Silva, que a seguir se apresentam resumidamente (Fig. 3B), excluída a não menos importante escavação realizada no nº 19 da Rua António Joaquim Granjo, “Casa dos Mosaicos”, precisamente objecto da presente monografia, e que forneceu uma ocupação desde a Idade do Ferro orientalizante ao período medieval islâmico. 

Fig. 5 – Localização de Caetobriga (Setúbal) no Sudoeste da Península Ibérica, em mapa de Mantas, 1999, adaptado. 

(a laranja) Fronteira de província 

(a verde) Fronteira de conventus 

1 – Barrosinha;
2 – Alcácer do Sal (Salacia);
3 – Bugio;
4 – Enchurrasqueira;
5 – Abul; 6 – Pinheiro;
7 – Zambujalinho;
8 – Santa Catarina;
9 – Quinta da Alegria;
10 – Pedra Furada;
11 – Setúbal (Caetobriga);
12 – Alferrar;
13 – Pedrão;
14 – Chibanes;
15 – Painel das Almas (Azeitão);
16 – Comenda;
17 – Rasca;
18 – Outão;
19 – Creiro;
20 – Sesimbra;
21 – Tróia. 

Fig. 6 – Localização de Caetobriga (Setúbal), no contexto arqueológico da ocupação da época romana do Baixo Sado: Adaptado de Soares, 2008. 

Travessa de Frei Gaspar

A intervenção arqueológica, realizada em 1979, abrangeu cerca de 120m2, área pertencente a um lote do centro histórico (contíguo ao edifício da Caixa Geral de Depósitos), onde se localiza actualmente uma oficina de turismo em “co-habitação” com oficina de preparados de peixe da época romana. 

Na metade nascente do lote, directamente sobre as areias de restinga que do sopé da colina de Santa Maria se estendia até à actual Praça de Bocage, localizou-se o peristilo de uma habitação de meados/terceiro quartel do século I d. C.. A camada de ocupação correspondente ao peristilo foi cortada pelo muro de delimitação de uma oficina de preparados piscícolas construída muito provavelmente no período flaviano (Fig. 7), com a “clássica” planta em U ou em L e revestimento de tanques e pátio por argamassa muito compacta e impermeável, constituída por fina brita calcária ligada por cal e areia. Esta oficina (de acordo com os primeiros estudos, neste momento em revisão) ter-se-á mantido em funcionamento possivelmente até à transição para o século III. Nos séculos III-IV foi abandonada e os seus tanques transformados em vazadores de lixo. No século V, alguns tanques receberam novos fundos e voltaram a funcionar (Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986). 

Fig. 7 – Oficina de preparados de peixe da Travessa de Frei Gaspar (Setúbal). Séculos I-V. Seg. Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986. 

A- Planta da área escavada com o peristilo de uma habitação de meados/terceiro quartel do século I d.C. (I), cuja camada de ocupação foi cortada pelo muro de delimitação de oficina de preparados piscícolas (II), construída muito provavelmente no último quartel do século I.

Embora incompleta, pode verificar-se que a oficina possuía uma planta em U, ou em L, cujo pátio abriria para oeste (sob o arruamento actual) e que na base do U, além dos grandes tanques de salga revestidos por argamassa de cal, areia e brita calcária, destinados provavelmente à produção de salsamenta, possuía uma fiada de seis pequenos tanques, presumivelmente destinados à manufactura de molhos de peixe.

B- Aspecto da oficina durante a escavação.

C – Lucerna paleocristã proveniente da C.6 do Tanque 8; tipo Atlante VIII, grupo C, atribuível ao século V d.C. (Bonifay, 2004, p. 360).

D – integração da jazida romana em imóvel de informação turística;
1 – tanques destinados à produção de molhos,
2 – grande tanque destinado à produção de salsamenta,
3 – páteo da oficina. 

Praça de Bocage

A escavação arqueológica (Fig. 8), realizada em 1980, abrangeu a metade sul da placa central da praça, em cerca de 98m2 (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1980-81), no âmbito do programa da sua repavimentação. Estes trabalhos revelaram a existência de uma praia frequentada desde a primeira metade do século I d. C. e a edificação de uma oficina de produção de preparados piscícolas, na segunda metade do mesmo século, que tinha a particularidade de integrar dois tipos de tanques separados por corredor: tanques revestidos por argamassa de cal, areia e brita calcária, destinados ao fabrico de salgas (tanque I), e tanques sem revestimento de qualquer tipo e com fundos impermeabilizados por argila que poderiam ter sido destinados a depósito de água e eventualmente de peixe e que por enquanto só possuem paralelos em fábricas de salga da Bretanha. No amplo pátio da fábrica foi edificado, num segundo momento construtivo, um compartimento quiçá com dois pisos, pois conservou-se o embasamento da caixa de escada, posteriormente subdividido. A oficina laborou até ao final do século II e foi abandonada, transformada em depósito de lixos, durante os séculos III-IV. O tanque I foi reutilizado como habitação durante a Idade Média. Estas estruturas viriam a ser cobertas por camada de areias de origem fluvio-marinha antes da construção da muralha afonsina; a partir do século XVI, o local sofreu uma ocupação funerária, enquanto adro da igreja de S. Julião. 

Fig. 8 – Estabelecimento fabril de salgas de peixe da Praça de Bocage (Setúbal). Séculos I-II. 

fig8Caetobriga

A- Planta da oficina de salgas; 

C – Aspectos da área escavada;

E – Tanque I, revestido interiormente por argamassa de cal, areia e brita calcária; 

B – Aspectos da área escavada; 

D- Tanques III e IV (sem revestimento nas paredes e fundos); 

F – Em primeiro plano, aspectos do Tanque II e do Compartimento A. Seg. Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1980-81, modificado.

Largo da Misericórdia

Intervenção arqueológica suscitada pela reedificação de lote urbano no lado sul do Largo da Misericórdia, em 1988, com uma área de cerca de 90m2. 

A escavação revelou uma estratigrafia com mais de 2m de potência, tendo como substrato  areias de praia. A primeira fase de ocupação do local iniciou-se no reinado de Tibério (Fig. 9) e prolongou-se até ao século VI (Fig. 10). Registou-se ainda a presença de níveis do período islâmico, Baixa Idade Média e Idade Moderna. 

Na base da sequência estratigráfica foi identificada uma olaria, da qual se escavaram dois fornos geminados, cujas câmaras de aquecimento, de planta circular e com cerca de 3m de diâmetro interno, pertencem ao tipo a da classificação de P. Duhamel, com canais principal e secundários ao mesmo nível. Estes fornos funcionaram durante o período Tibério-Claudio, tendo revelado duas fases de laboração, separadas por curto hiato talvez motivado por trabalhos de reparação. Produziram ânfora Dressel 14 variante A e talvez ainda ânforas lusitanas precoces que, pela sua evolução, teriam originado aquela. 

Este achado veio situar os inícios do ciclo de produção de preparados piscícolas no estuário do Sado no período Tibério-Claudio, muito embora as oficinas de salgas de peixe mais antigas até agora escavadas na área urbana de Setúbal sejam um pouco mais tardias, datando da época flaviana, auge deste ciclo de desenvolvimento económico. A cronologia então proposta (Tavares da Silva, 1996) para o início do ciclo de produção de preparados piscícolas pode agora ser recuada para o período Augusto-Tibério graças à descoberta de entulheira de presumível olaria de produção de ânforas, na Rua António Joaquim Granjo, nº 19. O padrão locativo dos fornos de ânforas do Largo da Misericórdia permitiu defender uma estratégia de integração vertical da produção de salgas e da manufactura de ânforas nos inícios do Império, modelo que seria substituído pelo da organização da produção de salgas de peixe em grande escala, a partir da segunda metade do século I, com a produção anfórica também em grande escala, como na Herdade do Pinheiro (Mayet & Tavares da Silva, 1998), sectorial e fisicamente dissociada dos estabelecimentos de preparados piscícolas, e nas proximidades das matérias-primas (barreiros e floresta) e com acesso a transporte fluvial (Tavares da Silva, 1996, p. 49). 

Proveniente do topo da sequência da ocupação romana do Largo da Misericódia, atribuível à Antiguidade tardia dos séculos V-VI, há a registar o aparecimento de um capitel de influência bizantina  com quatro folhas nervuradas e cálato em V, com paralelos em exemplares de Salacia no que concerne à decoração vegetalista (Limão, 2010). Esta peça confirma a informação, fornecida pela cerâmica de importação, respeitante à chegada ao porto de Caetobriga de materiais de origem norte-africana e oriental em momento avançado da Antiguidade tardia, assinalando o fim do ciclo do sistema económico marítimo em que o sudoeste da Lusitânia se havia especializado (Edmondson, 1987). 

 

Fig. 9 – Largo da Misericórdia (Setúbal).

A-B – Planta e foto da base de dois fornos geminados de produção anfórica. Foram construídos durante o período de Tibério e mantiveram-se em funcionamento durante o período Tibério-Claudio.

C – Ânforas, Dressel 14, var. A, e talvez ânforas lusitanas precoces aí produzidas. Seg. Tavares da Silva, 1996. 

Fig. 10 – Largo da Misericórdia (Setúbal). Capitel (séc. V-VI) de concepção bizantina. Foto de Rosa Nunes. 

Travessa de João Galo, nºs 4-4B

Escavação arqueológica realizada em 1997, em uma área de cerca de 35m2. Neste lote do centro histórico de Setúbal, localizado no sopé da colina de  Santa Maria, identificou-se uma camada de areia de praia com materiais do período orientalizante, subjacente aos estratos da ocupação romana imperial. Durante a segunda metade do século I e século II o local foi ocupado por armazém de ânforas da forma Dressel 14, certamente associado a oficina de produção de preparados piscícolas existente no exterior do lote intervencionado e não muito distante do porto natural da baía de Setúbal. Ainda no século II, e após o abandono do armazém de ânforas, foi construído um edifício monumental virado para uma praça, do qual identificámos parte do podium e elementos arquitectónicos, nomeadamente uma cornija em calcário de grandes dimensões (Fig. 11). Este edifício colapsou na transição para o século III, provavelmente em consequência de sismo. A ocupação do local prolongou-se até aos séculos VI-VII, com uma cultura material de forte tradição romana; Setúbal continuava a receber influências e produtos externos provenientes da actual Tunísia (terra sigillata africana D), a que se juntaram importações da Narbonense (cerâmica estampada cinzenta) e da actual Turquia (sigillata foceence tardia, LRC) (Fig. 12) (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014). 

 Fig. 11 – Travessa de João Galo, 4-4B (Setúbal).

A – Perfil estratigráfico: a C. 9 corresponde ao piso de ocupação em correlação com o armazém de ânforas Dressel 14, em funcionamente desde a segunda metade do século I à primeira metade do século II; o piso da C.7, em correlação com o edifício monumental, da segunda metade do século II, foi destruído por grandes fossas (C.5), associadas ao desmantelamento e aproveitamento de pedra de construções anteriores, fossas datáveis dos séculos IV-V; a C.2, formada após o abandono do pavimento da C. 3, corresponde a uma lixeira doméstica do século VI, com possível prolongamento pelo século seguinte. 

B- Cornija de grandes dimensões, com c. de 3 toneladas, do edifício monumental do século II. Seg. Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2014. 

Fig. 12 – Travessa de João Galo (Setúbal).

Materiais do século VI (Fase V).

Sigillata africana D (nos 1 a 9), sigillata foceense tardia (nº 10), e cerâmica estampada cinzenta (nos 11 e 12).

Desenho de Susana Duarte in Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014.

Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12

A escavação arqueológica decorreu em duas campanhas que tiveram lugar em 2008-2010 e abrangeram uma área de cerca de 250m2 (Fig. 13A) (Tavares da Silva et al., 2010, 2014). Esta escavação revelou uma ocupação de ampla diacronia (Fig. 13B). No que respeita à ocupação da época romana, localizou-se uma lixeira datada da 2ª metade do século I e do século II d. C. Os materiais proporcionados por esta lixeira revelaram um domínio da terra sigillata sudgálica no conjunto das cerâmicas finas de mesa  1 (Fig. 14). As ânforas encontradas documentam a diversificada actividade comercial da Setúbal romana: vinho do Egeu (ânfora da classe 9 de Peacock/Williams), da Península itálica (ânfora Dressel 2-4), do sul da Gália (Gaulesa 4) e do sul de Espanha (Haltern 70); azeite do vale do Guadalquivir (Oberaden 83); salsamenta de produção local, embalada em ânforas Dressel 14; um exemplar conserva ainda os restos esqueléticos de sardinha miúda (Gabriel & Tavares da Silva, 2016) (Fig. 15). 

Após a selagem do vazadouro em fase quiçá precoce do século II, foi construído nas proximidades, em momento impreciso, um grande reservatório de água (Fig. 16), com uma capacidade superior a 250m3. A partir de meados do século IV, a limpeza e manutenção do reservatório revelam-se pouco eficientes. Na base do seu enchimento (C.14), surge terra sigillata africana D (Hayes 61A) associada a ânfora Almagro 51c, variante B. A parte superior do seu enchimento ter-se-ia formado no século V, tal como foi sugerido por alguns materiais como: sigillata africana D (Hayes 91A), ânforas Almagro 51c, Almagro 51a-b e Sado1. Após um prolongado abandono, o lote viria a ser ocupado como necrópole, no período islâmico (séculos X-XI). Nos séculos XIII-XIV depositaram-se no local várias lixeiras domésticas, e embora o lote tivesse sido incluído no interior da cerca afonsina (Fig. 13A), somente a partir da Idade Moderna passa a ser utilizado com finalidade residencial. 

1 – É importante assinalar que mesmo na camada atribuível ao século II, a terra sigillata hispânica é muito rara, o que pode ser explicado pela prevalência do comércio marítimo sobre o terrestre, expectável em um aglomerado portuário como Caetobriga. No entanto, uma cronologia precoce dentro do século II para a camada de selagem da lixeira é admissível, considerando a elevada frequência de terra sigillata sudgálica nessa camada.

Fig. 13 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal).

A- Localização do lote;

B-Perfil estratigráfico do Locus A, cuja base assentou sobre arenito pliocénico:
Cs. 14 a 11-sedimentos de origem coluvionar com materiais exclusivamente pré-romanos resultantes da erosão e transporte de níveis arqueológicos sidéricos;
C. 10- escorrências do substrato geológico;
Cs. 9-7- níveis de ocupação romana;
C. 6- formação descontínua constituída por fossas funerárias do período islâmico;
C. 5- escorrências do substrato geológico;
C. 4- terraplenagem do lote com mobilização de camadas de ocupação romana de cotas superiores.
Cs. 3-1- pavimentos da época contemporânea. Seg.
Tavares da Silva et al., 2014. 

Fig. 14 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal), lixeira alto-imperial.

A – Marcas de oleiro em terra sigillata sudgálica.

1-[…] VSI;

2- OF PATRICI;

3- ISA[…];

4- BIOFECIT.

B – Marcas de oleiro em terra sigillata hispânica.

1- […]E. FIRM, do oleiro Valerius Firmus (forma Drag.27);

2 e 3- PET EROOFI, do oleiro Petronius Eros (formas indeterminadas).

Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela in Tavares da Silva et al., 2014. 

Fig. 15 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal).

Lixeira alto-imperial.

Ânfora Dressel 14 da variante C. Continha restos esqueléticos de sardinha miúda em conexão anatómica (salsamenta).

Seg. Tavares da Silva et al., 2014. 

Fig. 16 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal).

Planta parcial de reservatório de água da época romana.

Seg. Tavares da Silva et al., 2014.

Rua Arronches Junqueiro, nº 75

Em uma pequena sondagem de cerca de 9m2 (dada a exiguidade do lote), realizada em 2009, no nº. 75 da Rua Arronches Junqueiro, vertente oeste da colina de Santa Maria, identificaram-se vestígios do peristilo de uma domus, cuja galeria, muito provavelmente porticada, foi pavimentada a opus tessellatum e bordejada por espelho de água. Estes importantes testemunhos arquitectónicos (Fig. 17) prolongavam-se pelo edifício contíguo a poente, que foi objecto de renovação, com reforço estrutural de paredes, em 2015/2016, sem que, estranha e lamentavelmente, tivesse ocorrido acompanhamento arqueológico. 

O mosaico é de estilo geométrico e de movimento tridimensional, apresentando cores vivas (vermelho e ocre) e composição complexa organizada a partir de estrelas de oito pontas losângicas, enquadradas por rectângulos de entrançados; na cercadura exterior pode ver-se uma banda de ogivas e escamas, onde o vermelho é dominante. Foi datado da transição para o século III. Os derrubes que cobriam o mosaico sugerem o colapso do edifício durante o século V/VI (LRC na forma Hayes 3B, ânforas lusitanas das formas Almagro 51c, variante C, Almagro 51a-b e ânfora globular LRA2/ Keay LXV) (Fig. 18) (Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010). 

Caetobriga: Setúbal e Tróia

A Caetobriga (Figs. 5 e 6), referida por Ptolomeu 2 e localizada de acordo com o Itinerário de Antonino na desembocadura do Sado, dependia administrativamente de Salacia, principal aglomerado urbano do estuário do Sado, capital de civitas. O farol designado por “Torre dos Salakeinoi” no papiro  de Artemidoro, de finais do século II a. C. (Gallazi et al., 2008) é justamente localizado na desembocadura do Sado por Jorge de Alarcão (Alarcão, 2011), muito provavelmente no Outão. 

Porém, o poder económico de Salacia viria a transferir-se para Caetobriga (Tavares da Silva et al, 1980-81). Atenda-se, por exemplo, ao facto dos centros oleiros da Estrada da Parvoíce (Pimenta, Ferreira & Cabrita, 2016), Barrosinha e Bugio (Mayet, Schmit & Tavares da Silva, 1996) do círculo portuário imediato de Salacia não terem sobrevivido ao século II, ao contrário do observado nas olarias a jusante, que associamos a Caetobriga. 

A referida deslocalização do polo de desenvolvimento económico para jusante resultou por certo da maior acessibilidade de Caetobriga quer aos recursos piscícolas, quer aos mercados consumidores de salgas e molhos de peixe, em cenário de crescente dinâmica de assoreamento do rio (Freitas e Andrade, 2008). Estes factores teriam contribuído para a emergência e desenvolvimento de uma cidade marítima e polinucleada na foz do Sado. Ao núcleo de origem sidérica da margem norte do estuário (Tavares da Silva & Soares, 1986; Soares, 2000) juntou-se um importante aglomerado industrial na margem oposta (Étienne, Makaroun & Mayet, 1994), localizado na actual Península de Tróia, antiga ilha de Achale (cf. Avieno, 1992), cuja fundação pode ser por agora datada do reinado de Tibério (Pinto, Magalhães & Brum, 2011) e é atribuída à iniciativa de uma rica e influente família da Lusitânia os Cornelii Bocchi , na personagem de Lucius Cornelius Bocchus de Salacia (González Herrero, 2011; Alarcão, 2011). Neste centro fabril, por hipótese satélite de Caetobriga, especializado na produção de salgas e molhos de peixe, encontram-se actualmente inventariadas 25 unidades de produção (Pinto et al., 2016), que, sem soluções de continuidade, abrangem cerca de 800 metros ao longo do rio, bem como, espacialmente dissociados, dois outros núcleos fabris localizados no Recanto do Verde e junto do Cais dos Fuzileiros (Fig. 19). 

2 – É referida como túrdula, mau grado o sufixo briga, o que evidencia a vinculação do estuário do Sado ao mundo fenício tardio organizado por Gadir, até ao período romano (Tavares da Silva et al, 1980-81). Com efeito, importa sublinhar que a ocupação sidérica de Setúbal se integra na matriz mediterrânea e orientalizante e que essa tradição cultural, à semelhança do que ocorreu em outros centros urbanos comerciais atlânticos (p. ex. Olisipo), permaneceu até à plena romanização. 

Fig. 18 – Rua Arronches Junqueiro, nº 75.

Ânfora globular LRA 2/Keay LXV, muito provavelmente vinária, de importação oriental (Egeu ou Mar Negro), dos séculos VI-VII
(Vizcaíno Sánchez, 2009, p. 618).

Fig. 17 – Rua Arronches Junqueiro, nº 75 (Setúbal).

Seg. Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010.

fig17CaetobrigaA

Planta da área escavada;

fig17CaetobrigaC

Reconstituição tridimensional;

fig17CaetobrigaB

Foto da área escavada;

fig17CaetobrigaD

Pormenor do mosaico.

No auge do desenvolvimento de Tróia (segunda metade do século I e século II d. C), as 22 oficinas de salgas de peixe onde até agora se realizaram medições (em 80 tanques), teriam uma capacidade de produção mínima de cerca de 1429m3 suficiente para encher mais de 40.000 ânforas (Pinto, Magalhães & Brum, 2011, fig. 39; Magalhães, 2014; Pinto et al., 2016), valor que não abrange a totalidade da capacidade produtiva instalada, mas que é claramente superior à de outros importantes centros produtores de preparados piscícolas do arco atlântico (Olisipo, Baelo Claudia, Lixus). As salgas da Lusitânia do Alto Império destinavam-se em grande parte a exportação por via marítima e foram embaladas em ânforas da forma Dressel 14. Mesmo com suposta recomposição de carga e eventual mudança de vasilhame (por hipótese substituição de ânforas lusitanas por béticas) na cidade-entreposto de Gades, as ânforas lusitanas Dressel 14 são mais frequentes que as de fabrico bético nos níveis do século II de Ostia (Mayet, 2001); a sua presença nos naufrágios de San Antonio Abad (Ibiza), de Saint-Gervais (Bocas do Ródano), Cap Bénat I (Var) e Sud-Lavezzi III (Córsega), entre outros, permite admitir a existência de duas rotas marítimas principais do Sudoeste Peninsular para Ostia: via Tarraconensis e sul da Narbonensis; e através das ilhas baleares e estreito de Bonifácio (Étienne & Mayet, 1993-94; Arnaud, 2005). A esmagadora predominância de ânforas lusitanas de preparados piscícolas na totalidade do material anfórico até agora inventariado em Tróia (Pinto et al., 2016) é bem elucidativa acerca do carácter económico monofuncional deste estabelecimento e da sua vocação para a produção em larga escala (Fig. 20). Decididamente, trata-se de um grande centro produtor e de um relativamente pequeno “mercado” consumidor, se excluirmos as matérias-primas e bens manufacturados (factores de produção) destinados à fileira produtiva de salgas. A imagem de uma população com fraco poder de compra compagina-se bem com o “baixo” estatuto social registado em algumas inscrições funerárias de Tróia (Encarnação, 1984).

Na margem norte do Sado, o núcleo fabril de salgas de peixe e olarias de ânforas atingem, tal como em Tróia, o apogeu durante o Alto Império (Tavares da Silva, 1996; Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1980-1981, 2014; Tavares da Silva & Soares, 1986; Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986; Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010, 2015; Tavares da Silva et al., 2010, 2014; Soares, 2000). Além dos núcleos principais da ilha de Achale e de Setúbal, não podemos esquecer que no litoral da Arrábida, até à baía de Sesimbra, existia um rosário de estabelecimentos de produção de preparados piscícolas, quer especializados, como o Creiro (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2016), quer integrados em explorações agro-pecuárias   como a Comenda (Tavares da Silva & Cabrita, 1964, 1966; Viegas & Soares, 1980; Viegas, 2016). 

Fig. 19 – Localização das oficinas de preparados piscícolas do centro fabril de Tróia em mapa Google. Adaptado de Pinto et al., 2016. 

Fig. 20 – Tróia. Frequência relativa de ânforas lusitanas no conjunto da totalidade das ânforas registadas na jazida. Seg. Pinto, et al., 2016.

 

A actividade piscatória de Caetobriga foi, ao longo do Império, dirigida para espécies gregárias, sobretudo sardinha que constituiu a principal matéria-prima para a manufactura de salgas e molhos. Esta afirmação é suportada pela análise de restos de ictiofauna recolhidos em cetariae e ânforas (Desse-Berset & Desse, 2000; Étienne, 1990; Gabriel & Tavares da Silva, 2016); a ânfora Dressel 14 teria sido usada para transportar salsamenta, como foi comprovado nas escavações da Rua Francisco Augusto Flamengo, mas também provavelmente molhos (liquamen ou muria), de acordo com informação recolhida nas escavações da Rua António Joaquim Granjo (Gabriel & Tavares da Silva, 2016). A informação fornecida por tituli picti em ânforas Dressel 14 (Djaoui, 2016) confirma o transporte de molhos e salsamenta. O principal mercado consumidor dos preparados de peixe lusitanos terá sido Itália e particularmente Roma (Étienne, Makaroun & Mayet, 1994, p. 164- 165). Esse comércio parece ter atingido o seu máximo desenvolvimento na primeira metade do século II (Rizzo, 2016). O certamente extenso salgado que terá servido o complexo de produção de preparados piscícolas do Sado foi presumivelmente sobreposto pelas salinas medievais e posteriores. Do salgado da Herdade da Gâmbia proveio uma ânfora Dressel 14 completa, que deverá relacionar-se com a actividade salineira na Antiguidade. 

Caetobriga afirma-se, pois, como uma cidade portuária, de grande dinamismo produtivo, cujos núcleos seriam ligados sobretudo por via aquática, não se lhe aplicando a noção de cidade “parasitária” e monumental. Só muito recentemente foi possível identificar, na área residencial da colina de Santa Maria, vestígios de edifício monumental, talvez de carácter público (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014; Tavares da Silva et al., 2010, 2014) e de domus com pavimentos musivos e decoração parietal de pintura a fresco (Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010), expressão arqueológica da “aristocracia” mercantil local. No núcleo de Tróia, foi igualmente identificada uma área residencial com edifícios de dois pisos decorados por mosaicos e frescos (Rua da Princesa); objecto de escavações antigas, deles muito pouco se conserva, quer no que respeita aos vestígios arquitectónicos existentes no local, quer no que concerne à cultura material móvel. A bibliografia de António Inácio Marques da Costa alusiva às edificações de Tróia (Costa, 1898 e 1930-1931) permite-nos avaliar da qualidade desse sector residencial. 

Fig. 22 – Tróia. Lucerna paleocristã tardia, com cruz no disco e decoração relevada na orla, atribuível ao tipo Atlante X, grupo D4, datado do século VII d.C. (Bonifay, 2004, p. 361; Soares, 1980, Fig. 20).

Foto de Rosa Nunes.

Fig. 21 – Tróia. A – Fresco da basílica paleocristã. O monograma de Cristo foi entretanto destruído.

B – Localização do baptistério (1).

Desenhos de A. I. Marques da Costa, 1930-1931, Figs. 22 e 27. 

 

A partir do segundo quartel do século III, após momento de forte recessão, na passagem do século II para o III, que alguns autores atribuem a sismo de grande magnitude no Sudoeste Ibérico (Mayet & Tavares da Silva, 2010), aquele sector de actividade fabril mostra ainda capacidade para proceder a profunda reorganização através de segmentação ou parcelamento dos estabelecimentos oficinais e da diversificação de salgas e molhos, entre os quais se destacaria o garum (Étienne & Mayet, 2000), muito associado ao tipo anfórico Almagro 51c, o mais produzido nas olarias do estuário do Sado durante o Baixo-Império (Mayet & Tavares da Silva, 2016). 

Ânforas lusitanas do Baixo Império (Almagro 50 e 51c) encontraram-se em naufrágios da rota atlântico-mediterrânea: Gades-Roma-Sicília. E tal como Francoise Mayet afirma ao referir-se ao naufrágio de Cabrera III (Maiorca), muito provavelmente com carga composta em Gades, as ânforas embalariam o garum lusitano, sob a designação de garum hispanum (Mayet, 2001). As ânforas lusitanas do final do IV à primeira metade do século V seguem rotas mais meridionais e associam-se a produtos africanos. A sua presença nas cidades portuárias fica muito aquém do ocorrido nos séculos I e II d. C. Durante o Alto Império, as ânforas lusitanas de salgas de peixe integraram cargas com azeite da Bética e circularam sobretudo segundo a rota Tarraconense/Gália narbonense, mas também através do estreito de Bonifacio. 

Caetobriga entra em declínio durante o Baixo Império, com o abandono e/ou reconversão de estabelecimentos de produção de salgas, mantendo no entanto a produção de preparados piscícolas em pequena escala até ao século V, como foi também verificado na produção anfórica (Mayet & Tavares da Silva, 2016, Fig. 14). Na Setúbal romana – fábrica da Travessa de Frei Gaspar (Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986) – e no estabelecimento do Creiro, Arrábida (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, 2016), observou-se uma reactivação parcial das cetariae durante o século V, após fase de abandono. 

Dos finais do século IV ao século VI d. C., Tróia sofre claramente uma reorientação económica, com destaque para as funções funerária e religiosa; atenda-se às sepulturas de tipo mensa, à basílica paleocristã com pintura mural a fresco (Fig. 21A) (Maciel, 1996) e ao baptistério (Costa, 1898) (Fig. 21B). Esta é a última fase da vida do núcleo de Tróia, que antecedeu o total abandono do sítio até à Baixa Idade Média, quando uma ermida cristã de invocação mariana 3 retomou, no local, a função religiosa, para a comunidade piscatória de Palhais/ Fontainhas, que aí realiza anualmente a sua festa religiosa. A desurbanização atingirá também a Setúbal romana, a partir talvez de finais do século IV, muito embora de forma menos radical, como veremos adiante. 

3 – Capela construída no topo da duna que cobriu, na “boca da Caldeira”, a basílica paleocristã.

Estrutura funcional da Setúbal romana

O núcleo principal da povoação (ver Fig. 13 do Cap. 2, Enquadramento pealeogeográfico) localizar-se-ia na colina de Santa Maria (com cerca de 5 ha.): o centro urbano e principais edifícios públicos, na área do terreiro e igreja de Santa Maria (Soares, 2000); o reservatório de água para abastecimento público, no topo da mesma colina (Tavares da Silva et al., 2010); e as domus da “aristocracia” local na suave vertente que descia em direcção à praia (Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010). No exterior do núcleo urbano, a nascente, localizavam-se as necrópoles (Soares, 2000), cujo conhecimento se baseia apenas na necrópole da Ladeira de S. Sebastião, observada, em 1906, por A. I. Marques da Costa, quando da abertura do túnel para a linha férrea (Tavares da Silva, 1966). Recentemente, deparámo-nos com o achado de um fragmento de ânfora romana no subsolo do cemitério de N. S.ª da Piedade, o que pode ser um indicador do prolongamento da área da necrópole romana para nascente, sob o casario do Bairro de S. Domingos e mesmo sob o actual cemitério. A hipótese da Setúbal romana ter “exportado” para Tróia, pelo menos parcialmente, a função funerária, parece-nos muito plausível. 

A restinga arenosa que da base da colina de Santa Maria se dirigia para o que é hoje a Praça de Bocage (Soares, 2000), com cerca de 2,5ha (Largo da Misericódia, Ruas dos Caldeireiros, Paula Borba e Januário da Silva, Largo da Ribeira Velha e Rua do Jornal “O Setubalense”), foi edificada sobretudo com oficinas de produção de salgas e molhos de peixe e olaria de ânforas (Tavares da Silva, 1996), principalmente a partir de meados do século I.

A partir do núcleo de Troino tinha-se acesso às pedreiras do Viso (Soares, 1980) e à via terrestre de ligação a Olisipo (Tavares da Silva & Soares, 1986). 

Para nascente de Caetobriga, ao longo da margem direita do Sado, e na foz da Ribeira da Marateca localizavam-se as olarias de produção de ânforas necessárias ao envasamento dos preparados piscícolas: Quinta da Alegria, Zambujalinho, Pinheiro, Abul (Mayet, Schmitt & Tavares da Silva, 1996; Mayet & Tavares da Silva, 1998 e 2002). Estes centros oleiros aliaram, numa lógica de grande racionalidade económica, a máxima acessibilidade aos barreiros e à floresta, com a manutenção do acesso directo a transporte fluvial. Pela mesma via se chegaria à provavelmente mais extensa área de salinas da região (sapais de Praias do Sado e Gâmbia), onde ocasionalmente têm sido recolhidos materiais anfóricos (ânfora Dressel 14); um outro salgado localizar-se-ia na periferia imediata da cidade, no sapal do esteiro do Livramento, onde se ergue actualmente o convento de Jesus, cuja construção, no século XV, foi responsável pela secagem do sapal e desactivação da prática da salicultura nessa área (Tavares da Silva, 1989). 

A economia de Caetobriga, excessivamente especializada na fileira de salgas e molhos de peixe, encontrava-se muito dependente de mercados consumidores exteriores, mediados muito provavelmente pela cidade-entreposto de Gades. Seria, pois, muito vulnerável às conjunturas económicas, sociais e políticas do Império em geral e das cidades com as quais mantinha contactos comerciais, em particular. A uma crise ocorrida nos finais do século II/inícios do século III, cujas causas não estão apuradas, a economia local reagiu a partir de meados do século III, como salientámos anteriormente, pela via da segmentação e diversificação das produções piscícolas. A partir dos séculos V/ VI, o colapso deste sistema económico-social foi tão intenso que Tróia não voltaria a reurbanizar-se, e Setúbal só voltaria a fazê-lo de forma plena a partir do século XIV (Soares, 2000). No entanto, entre as ruínas da Setúbal tardo-romana, encontramos alguns indícios de resistência a um total despovoamento, como a despojada sepultura colectiva do nº 19 da Rua António Joaquim Granjo, do período visigótico, em que a assinatura isotópica do δ13C e δ15N das suas ossadas põe em destaque a importância dos recursos marinhos na alimentação da pequena comunidade, certamente piscatória, que terá habitado a baía de Setúbal durante o século VII d. C (ver estudo no presente volume). 

Fig. 24 – Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 (Setúbal). Planta e enterramentos da necrópole islâmica. Seg. Tavares da Silva et al., 2014.

Fig. 24 – Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 (Setúbal).

Planta e enterramentos da necrópole islâmica. Seg. Tavares da Silva et al., 2014.

Fig. 25 – Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 (Setúbal).

Necrópole islâmica. Datação radiocarbónica do inumado na Sepultura 1.

Seg. Tavares da Silva et al., 2010.

Período Medieval Islâmico

O período medieval islâmico encontra-se mal representado (Fig. 23), mau grado a atenção dispensada aos seus mínimos vestígios no quadro do projecto sobre as preexistências de Setúbal. Merecem destaque os seguintes testemunhos: 

– Necrópole da Rua Francisco Augusto Flamengo (Tavares da Silva et al., 2010, 2014) (Figs. 24 e 25), de que foram escavadas 22 sepulturas em fossa, com os corpos depositados em decúbito lateral direito, e face virada para nascente, sem oferendas funerárias associadas. O esqueleto 1 (Sond. III, Q. L19, C. 6B) forneceu uma datação dos séculos X-XII (Fig. 25) (Beta-256936: 1000±40BP= 980-1150 cal AD, a 2 sigma). Os valores obtidos para δ13C e δ15N, respectivamente -17,4 (‰) e +11.6 (‰) indicam uma alimentação com elevada componente de proteínas de origem marinha (Schoeninger & DeNiro, 1984); 

– Ocupação de carácter habitacional da RAJG.19 (ver estudo no presente volume). 

– Cabanas das Ruas de Bocage/Augusto Cardoso, ed. Vinícola/Benetton (Soares, 2002), instaladas sobre uma praia de areias fluvio-marinhas (Fig. 26), do período almoada (século XII); 

Figs. 26 – Ruas de Bocage/Augusto Cardoso (edifício da Vinícola/Benetton). Seg. Soares, 2002.
A- Perfil estratigráfico da Sondagem IV realizada na metade sul do lote, virada à R. Augusto Cardoso, antiga R. dos Sapateiros. A C.10 corresponde à ocupação medieval islâmica e nela se registaram fossas de detritos domésticos escavadas nas areias de praia da restinga (C. 11) que atravessa o lote na direcção E-O. As fossas encontravam-se revestidas internamente por argila, o que sugere uma localização interior, provavelmente em cabanas construídas em materiais perecíveis.
B- A cultura material associada indica uma cronologia almoada (século XII). Tenha-se presente que a restinga confinava, na metade norte do lote, com área pantanosa para onde foram sendo atirados lixos de actividades doméstica e agrícola pelo menos até ao século XIV. Uma amostra de vides recolhida nessa área (Beta- 164907) forneceu a data radiocarbónica de 600 ±50 BP, a qual calibrada a 2 sigma corresponde ao intervalo cronológico de 1290-1420 cal AD. A intersecção da data radiocarbónica com a curva de calibração ocorre em três momentos, todos do século XIV: 1320, 1340, 1390 cal AD. Seg. Soares, 2002. 

Quadro 1

Datações radiocarbónicas de estacarias de cais palafiticos, dos períodos medieval islâmico e medieval cristão, anteriores à construção da muralha afonsina.

Séculos XI-XIII. 

Estacarias (Fig. 27) de cais palafíticos anteriores à cerca muralhada afonsina e perpendiculares à linha de costa (edifícios Montepio e BCP na Av. Luisa Todi), datadas radiocarbonicamente dos séculos XI-XIII (Quadro 1), aparentemente sem descontinuidades entre o medieval islâmico e o medieval cristão. Também na Rua Luís de Camões, virada para o esteiro do Livramento, ao abrigo da restinga, foram identificadas estacas do mesmo tipo por enquanto sem datações. Pomares e vinhas bordejavam a área pantanosa onde hoje se localizam a Travessa da Portuguesa, o Largo do Sapalinho, a Rua de Bocage e deixaram testemunhos directos da sua presença (Soares, 2000), através de abundantes macro-restos vegetais; algumas amostras de vides têm vindo a ser datadas; foram recolhidas nas camadas de lodos da Travessa da Portuguesa (ICEN-698, com o intervalo de 1015-1213 cal AD, a 2 sigma), do Largo do Sapalinho (ICEN-699, com o intervalo de 1034- 1253 cal AD, a 2 sigma) e do edifício da Vinícola/Benetton, na Rua de Bocage (Beta-164907: 600±50 BP, com o intervalo de 1290-1420 cal AD, a 2 sigma) (Fig. 28). À semelhança do que foi observado relativamente à cronologia das estacarias dos cais palafíticos, também as vides fornecem um intervalo cronológico que nos permite supor a inexistência de descontinuidades no que ao cultivo da vinha respeita entre o medieval islâmico e o cristão. Por outro lado, a datação obtida para   o sítio arqueológico da Rua de Bocage coloca em destaque a existência de vinha dentro da cerca muralhada afonsina e a tardia conquista de solo urbano à área húmida intra-muros. As primeiras construções em alvenaria registadas sobre o antigo sapal da metade norte do lote do edifício da Vinícola/Benetton foram datadas do século XV (Soares, 2002, p. 251). 

A Setúbal da época islâmica terá, provavelmente, correspondido a uma aldeia de cabanas construídas em materiais perecíveis, cuja economia assentou na pesca, associada a uma agricultura hortofrutícola. As boas condições de porto natural oferecidas pela baía de Setúbal obstaram à autarcia do povoado, mesmo durante a sua fase de desurbanização e ciclo de vida mais depressivo. 

Fig. 27 – Av. Luisa Todi (edifício BCP)

Estacaria de cais palafítico, perpendicular à linha de costa, do período medieval (Soares, 1997)

Fig. 28 – Rua de Bocage.

Edifício da Vinícola/Benetton. Calibração da amostra Beta-164907, constituída por vides recolhidas na C. 10 da Sondagem II. Lab. Beta Analytic Inc.

Antecedentes proto-históricos Travessa dos Apóstolos

Em 1984, a escavação de emergência na Travessa dos Apóstolos, na colina de Santa Maria, em lote urbano a reedificar, desenvolvida em uma extensão de cerca de 100m2, revelou a mais potente estratigrafia e a mais ampla diacronia da ocupação humana do subsolo do centro histórico de Setúbal (Soares & Tavares da Silva, 1986; Soares, 2000). Pela primeira vez, foram registadas camadas arqueológicas anteriores à época romana, atribuíveis ao Bronze final, século VIII ( C. 14) e à I Idade do Ferro, séculos VII-V a. C. (Cs. 12 e 13). Os resultados desta intervenção permitiram recuar as origens de Setúbal para momento tardio do Bronze final , ou seja, para a fase de interacção das comunidades indígenas da foz do Sado com os mercadores fenícios do Ocidente, no quadro da construção do império comercial atlântico da metrópole fenícia de Gadir. A colonização fenícia do estuário do Sado terá estabelecido forte vínculo comercial com a comunidade do Bronze final da foz do Sado (povoado da colina de Santa Maria), antes de fundar a sua própria feitoria em Abul (Mayet & Tavares da Silva, 2000b), a meia distância entre a desembocadura do rio e o fundo do estuário, onde se localizava o povoado da colina do castelo de Alcácer do Sal (Tavares da Silva et al.,1980-81). Em ambos os povoados, de fundação indígena, o processo de miscigenação cultural com os colonos fenícios do círculo do Estreito foi tão intenso e persistente que a matriz cultural orientalizante haveria de prosseguir até à romanização 4. 

Após a descoberta destes primeiros vestígios da Setúbal proto-histórica, outros achados datados da Idade do Ferro têm vindo a ser identificados nas vertentes meridional e ocidental da colina de Santa Maria, nomeadamente na Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12, Rua Arronches Junqueiro, nos. 32-34, Travessa de João Galo, nºs 4-4B, no nº. 19 da Rua António Joaquim Granjo (RAJG.19). De um modo geral, os materiais recuperados vão do século VII ao século V a. C., havendo entre este período e a ocupação romana imperial uma descontinuidade que nos tem feito pensar em provável deslocalização do povoado sidérico durante a II Idade do Ferro. 

Com uma topografia pouco interessante para um castro da II Idade do Ferro, o centro histórico de Setúbal, se excluirmos a colina de Santa Maria, apenas ofereceria razoáveis condições para aquele assentamento no esporão sobranceiro à margem direita do esteiro do Livramento (colina de Nossa Senhora da Saúde), onde não têm sido realizadas operações de renovação urbana motivadoras de quaisquer intervenções arqueológicas. Porém, mais recentemente, na Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 e na Travessa de João Galo, nºs 4-4B, foram encontrados materiais atribuíveis aos séculos IV-I a. C., em ambos os casos descontextualizados, no primeiro em resultado de intensos processos de erosão e abarrancamento de vertentes (coluviões), e no segundo, misturados com areias da praia que constituíram a base da sequência estratigráfica. De destacar a presença de cerâmica de mesa afim da de tipo Kuass (Tavares da Silva et al., 2014, Fig. 6, nº13) e de ânforas de tipo Maña-Pascual A4 (grupos 11 e 12 de J. Ramon) 5, e ainda da ânfora atribuível com algumas reservas à forma Dressel 1 (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014, Fig. 4), que assinala o período romano-republicano, tão bem representado, ao contrário do observado em Setúbal, no vizinho castro de Chibanes (Soares & Tavares da Silva, 2014). 

4 – A resiliência da metrópole de Gadir/Gades foi notável. A partir de meados do século V e durante o século IV a. C., encerrado o ciclo metalúrgico, reorganiza o seu papel como placa giratória do comércio mediterrâneo/atlântico, através do incremento da produção de preparados piscícolas. Tira partido da abundância de peixe nas águas atlânticas, transformando-se no principal abastecedor de salgas de peixe à escala do Mediterrâneo. Nos alvores do século III a. C., liberta-se do “asfixiante” imperialismo cartaginês, colocando-se voluntariamente na dependência de Roma, o que lhe permitiu continuar a exercer a sua influência regional, controlando o comércio atlântico-mediterrâneo. 

5 – A cultura material da Idade do Ferro turdetana (sécs. V/IV-III/II a.C.) inclui entre outras importações, cerâmica de mesa tipo Kuass e ânforas Mañá-Pacual A4 que transportavam salgas de peixe produzidas na baía de Cádiz. Nas condições de jazida aberta de uma praia (Travessa de João Galo) apenas podemos considerar alguns elementos tipologicamente significativos que apontam para uma matriz cultural mediterrânea adentro da II Idade do Ferro.

Introdução. Caetobriga: uma cidade fabril e polinucleada na foz do Sado​

Joaquina Soares - Carlos Tavares da Silva
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The Roman influence on Sado

As Oficinas de Preparados de Peixe da Lusitânia

As Oficinas de Preparados de Peixe da Lusitânia: arquiteturas e dinâmicas econômicas da sua produção (séculos I – VI d.C.)

Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira

 Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Arqueologia, realizada sob a orientação científica do Prof. Dr. José Carlos Quaresma e co-orientação da Profª Drª Maria Helena T. Lopes 

Este estudo aborda a economia dos preparados de peixes lusitanos, enquadrando a produção provincial à realidade económica imperial romana entre os seculos I e VI d.C. A cronologia dessa atividade enfrenta momentos alternados de arrefecimento e retoma. Todavia, a salga e transformação do peixe foi uma das principais atividades económicas da Lusitânia, que a partir do século III avança para a categoria de um dos principais produtores do império. Apesar da alta demanda e da respetiva produtividade, muitos dos centros produtores começam a apresentar uma reconfiguração dos seus tanques e cetárias. Essa reconfiguração arquitetónica estará relacionada tanto com alterações do perfil da produção como com transformações no modo de vida, uma vez que observa-se também uma redefinição de espaços urbanos e rurais por toda a Hispânia ao longo do baixo-Império/ Antiguidade Tardia. 

This work approaches the economy of fish sauces in the Roman province of Lusitania during the 1st and 6th centuries CE. A chronology for this economic activity is characterized by a brief phase of cool down, followed by a retake into full activity. From the 3rd century onwards, Lusitania became the main producer of fish sauces. However, its workshops underwent a systematic process of partial or full abandonment, and the surviving cetariae suffered a radical reduction in dimensions and capacity. Such transformations are embedded by a context in which the main typology of the product in the market was changing and also a complex process of urban reconfiguration in all provinces in Hispania. Thus, a transformation in ways of life is also part of this whole picture of physical reconfiguration. 

INTRODUÇÃO: A PROVÍNCIA ROMANA DA LUSITANIA

A ocupação romana da Península Ibérica teve início em cerca de 197 a.C., como consequência de sua vitória sobre os cartagineses na Segunda Guerra Púnica (218 – 201 a.C.). Assim, estabeleceu-se uma administração do território então denominado Hispania por dois oficiais pretores: um encarregado da porção oriental do novo domínio provincial (Hispania Citerior) e o outro com jurisdição sobre a sua porção ocidental (Hispania Ulterior). Neste primeiro momento de ocupação romana, de assumido caracter militar, o principal objetivo da sua agenda era estabelecer o controlo sobre e explorar o novo território. 

Segundo os relatos de Estrabão e Apiano1 a expansão da autoridade romana sobre a parte atlântica da península coube ao novo governante da Hispania Ulterior, Decimus Iunius Brutus Callaicus, em 138 a.C. Segundo Estrabão, o recém-eleito cônsul fortificou Olisipo (Lisboa) e utilizou-a como base logística para lançar a sua campanha. 

1 Cf. Respectivamente em: Geografia, 3.3.1ff and Iberica 73-75.  

Durante o restante dos séculos II – I a.C., a administração romana para o ocidente peninsular centralizou a sua burocracia em torno de três cidades: Pax Iulia (Beja), uma colónia de cidadãos romanos; Liberalitas Iulia Ebora (Évora), uma cidade de direito latino; e Felicitas Iulia Olisipo (Lisboa), com status de municipium civium romanorum. Esse modelo administrativo só foi substituído após a ascensão de Otaviano (Gaius Iulius Caesar Octavianus), em 27 a.C., adotando para si o título de Augustus. Uma vez garantido a sua posição como governante perpétuo, Augusto recusou títulos monárquicos e reinou sob o título de Princeps Civitatis (O Primeiro dos Cidadãos). Com o seu reinado, teve início o “Principado”, inaugurando o período dito imperial da civilização romana. 

Augusto ordenou diversas reformas administrativas, o que eventualmente afetou a organização da burocracia na Hispania. Assim, em 15 a.C., a Hispania Ulterior foi formalmente dividida em duas partes: Baetica (parte oriental) e Lusitania (a ocidente). 

A capital lusitana foi estabelecida em Augusta Emerita (Mérida), uma colónia de cidadãos romanos, o território foi subdividido em três unidades administrativas denominadas “conventus iuridicii”. Assim desenvolvem-se três novas capitais regionais: Augusta Emerita, Pax Iulia and Scallabis Praesidium Iulius (Santarém), as três cidades com status de colónia de cidadãos romanos, que por sua vez impulsionarão o desenvolvimento de núcleos urbanos de menor escala que ajudarão a estruturar os seus territórios. De facto, Frías (2016) acrescenta que esse processo de urbanização instigou o desenvolvimento de centros populacionais indígenas situadas no vale do Tejo e ao sul deste, chegando algumas a serem elevadas à condição de municípios e colónias. 

A produção de preparados de peixe na Lusitânia conheceu duas fases de produção. A “primeira fase” (ca. 50 – 150 d.C.) é um período menos conhecido devido à escassez de estratigrafias para o período pré-flávio da província, graças ao palimpsesto estratigráfico produzido pelas ocupações da segunda fase dos centros. 

Todavia, sabe-se que uma retração económica ocorrera no Mediterrâneo Ocidental entre os séculos II-III, pondo fim à chamada “primeira fase” de produção, no período Alto Imperial. A essa possível crise de crescimento, seguiu-se um hiato em que diversas cetárias foram abandonadas e/ou reformuladas. 

Na Lusitânia o processo de crescimento urbano sofre uma estagnação categórica em ca. 125 d.C., seguindo-se o abandono de algumas estruturas urbanas, como o anfiteatro de Conimbriga e a amortização de caleiras em Baelo Claudia and Baetulo. 

Ao longo do século III, teve fim a fase de letargia da produção dos preparados de peixe. Entre 225 e 250 d.C., a produção experimenta um novo impulso, que durará até o princípio do século V d.C. Uma continuação tardia, pós-romana, poderia ainda ser classificada como uma possível “terceira fase”, ainda pouco conhecida, que iria ainda compreender os séculos V-VI. 

A “segunda fase” de produção dos preparados de peixe coincide, em parte, com um processo de redefinição urbana sob a Tetrarquia, que ultrapassava a província da Lusitânia, no século IV d.C. Esse processo incluiu reformulações do tecido urbano e afetou também as grandes villae da Hispania, concentradas sobretudo no sul da Lusitânia. 

Durante a segunda fase de produção verifica-se que a produção de ânforas piscícolas sofreu um aumento considerável, especialmente no Algarve. De facto, a produção lusitana dos preparados de peixe recebeu maior destaque nessa época, nos centros de consumo. No seu auge, a produção lusitana de preparados de peixe foi uma das mais importantes do império, superando a vizinha Bética, até então a principal produtora peninsular. 

Quatro regiões da Lusitânia desenvolveram centros produtores: os Vales do Tejo e do Sado (que compõem uma mesma realidade arqueométrica), o Litoral Alentejano e o Litoral Algarvio. Muitas vezes a nova realidade da segunda fase provocou o parcelamento das cetárias e compartimentação dos tanques. Uma nova gama de contentores piscícolas (Alm 50c e 51 a-b) possui bocal mais pequeno, o que condiz com os dados arqueozoológicos sugerindo a preferência para o emprego de espécies mais pequenas de peixes, como a sardinha. Entendemos que esse fenómeno sugere uma transformação estrutural no próprio modelo de exploração económica dessa atividade. 

Este projeto teve por objetivo uma análise evolutiva das oficinas lusitanas de preparados de peixe, tendo como base a segunda fase da sua produção. A partir dos dados disponíveis acerca dos edifícios e das suas cetárias, diversas abordagens e metodologias foram comentadas. Assim, foram consultados estudos diacrónicos das plantas das oficinas conhecidas, das tipologias das ânforas piscícolas envolvidas na sua logística e dos conteúdos coletados em cetárias e ânforas (arqueozoologia). 

Uma análise dos dados referentes à produção anfórica dos estuários do Tejo-Sado e do litoral algarvio foi explorada apenas para se estabelecer coerências e contradições à luz do desenvolvimento cronológico da economia dos preparados de peixe. Do mesmo modo, os dados arqueozoológicos e os tituli picti estudados, a evolução das dimensões e tipologias dos seus contentores e a evolução arquitetónica dos centros produtores de preparados de peixe contribuíram na qualidade de fontes primárias auxiliares. 

Esse estudo foi organizado em três secções temáticas. No primeiro capítulo foi promovido uma contextualização histórica e arqueológica da temática. Esse capítulo inclui uma caracterização das fontes primárias textuais disponíveis, e a apresentação do estado da arte sobre os estudos sobre a produção dos preparados de peixe na Península Ibérica e, mais especificamente, na Lusitânia. 

O segundo capítulo é introduzido por uma apresentação sobre o estabelecimento da produção dos preparados de peixe na Lusitânia. Seguiu-se descrição da geografia das quatro “grandes áreas” produtoras: Estuário do Tejo, Estuário do Sado, Costa Alentejana e Litoral Algarvio. Cada “grande-área” é caracterizada e segue-se a descrição de todas as respetivas oficinas, tanques e cetárias conhecidas, mapeadas e comentadas. 

Finalmente, o terceiro capítulo promove um breve ensaio sobre a economia antiga e os ritmos da produção dos preparados de peixe lusitanos. Os dados anfóricos sobre a exportação de ânforas de preparados de peixe béticos e lusitanos contribuem para um breve esboço sobre a conectividade regional com o comércio de longa-distância. Esse capítulo também aborda as transformações económicas, sociais e arquitetónicas ocorridas na província ao longo das fases de produção dos preparados de peixe. 

CAPÍTULO I: A PRODUÇÃO DOS PREPARADOS DE PEIXE NA LUSITÂNIA

A presença romana na Península Ibérica foi uma consequência direta da rivalidade e dos conflitos com Cartago. Sabe-se que o sul do território atualmente português esteve contido na esfera de influência política e económica púnica. Originalmente, os antigos autores descrevem aquele território como abundante em recursos minerais, especialmente o ouro de aluvião.2

2 Cf. Cátulo 29: 18-20 menciona o “aurifer Tagus”. Menções similares ocorrem nas obras de Ovídio, Estrabão, Plínio, Séneca, Marcial, Juvenal, Lucânio e Pompónio Mela  

A arqueologia comprovou também a existência de minas romanas de prata e cobre, especialmente no sul da Lusitânia (Martín, 1996: 299-304). 

Osland (2006, 11) propõe que os recursos minerais constituíram num forte motivador para a reorganização das províncias da Hispania por Augusto. A partir da sua reorganização administrativa, a maior parte das áreas mineiras ficaram sob a jurisdição das províncias imperiais da Lusitania e da Tarraconensis (Martín, 1996: 39). 

Ao longo do século I a.C., uma série de colónias foi estabelecida na Lusitânia. Esses empreendimentos tinham como principal objetivo o assentamento de veteranos militares e da fundação de centros populacionais, seguindo um programa de fixação de núcleos de influência política económica e social. A priori, todas as colónias foram estabelecidas em áreas de grande potencial agrícola, em detrimento das áreas de maior potencial mineiro (Osland, 2006: 11). 

Todavia, para além dos recursos minerais e agrícolas, a Lusitânia sediou uma notória indústria de produtos de preparados à base de peixe, vulgarmente denominados “garum (Fig. 1) 3.

3 Verificar também a Tabela 1.  

Sob uma ótica romana dos séculos II a.C. – I d.C., as principais características geográficas da província remetem aos seus rios navegáveis, à região costeira e às planícies férteis da porção meridional da província 4. As principais cidades lusitanas desenvolveram-se ao longo da costa atlântica e próximo dos seus rios mais importantes. Estes centros tornaram-se num polo ideal para o desenvolvimento da indústria de produção de azeite 5 e dos preparados à base de peixe. 

4 Plínio Historia Naturalis 4.115; Estrabão Geografia 3.2.3 – 3.2.4.  

5 De acordo com Brun (1997), pode-se verificar a dispersão de lagares de vinho e azeite na Lusitânia, mas certamente será o caso de uma dimensão local/ regional, não de exportação. Por outro lado, o vinho do Tejo e Sado são comprovadamente exportados (ânforas Lusitana 3 e 9).  

As condições naturais da Lusitânia favoreceram o florescimento de uma indústria especializada em preparados de peixe. Um extenso litoral atlântico, um clima hospitaleiro e a abundância de recursos marinhos e sal foram responsáveis pelo estabelecimento de diversos centros de produção ao longo do litoral (Edmonson, 1990; Étienne e Mayet, 2002; Fabião 2009b). 

De facto, a produção anfórica contendo preparados à base de peixe provenientes da província começa a ser diagnosticada crescentemente no império romano, a partir de finais do século III d.C. Esse crescimento pode indicar uma “atlantização política” no século III d.C. (Quaresma 2012: 496). Nesse contexto, a indústria lusitana de preparados de peixe recebe destaque em função das alterações no quadro da nova dieta alimentar imperial, que dará maior ênfase aos preparados de peixe do que ao azeite, alavancando a produção do produto 6 ao ponto de superar a produção da vizinha Bética. 

6 Essa nova dieta substitui aquela do Baixo-Império e é comentada por Decimus Magnus Ausonius (apud Étienne; Mayet, 1993-1994: 216 e nota 34).  

A assimilação desse hábito alimentar pelos romanos demonstra alguma influência do mundo púnico e grego, bem como o desenvolvimento de uma crescente demanda da elite urbana romana por produtos exóticos e refinados. Quanto ao restante do império, a assimilação desse produto certamente esteve integrada ao próprio processo de aculturação e aproximação às elites colonizadoras (Bugalhão, 2001: 45). Nesse contexto, sabe-se que a dieta alimentar romana acabou por adotar em larga escala os produtos preparados à base de peixe. 

As constantes referências de Apício 7 ao ingrediente nas receitas da culinária romana aponta para a existência diferenciada de produtos de alta qualidade, consumidos pelas elites, e uma variante de baixa qualidade, acessível ao público sem condições de sustentar uma alimentação luxuosa (Edmonson, 1987: 102). Nesse caso, os preparados supririam a necessidade de sal e proteína animal na alimentação das classes mais baixas, quase sempre limitados a uma dieta vegetariana. 

7 Marcus Gaius Apicius, autor da principal fonte textual sobre a gastronomia romana: De Re Coquinaria, no século I d.C.  

Sabe-se que no território sob a influência de Cádis 8 já havia uma produção de preparados de peixe em funcionamento anterior à conquista romana. Entende-se que o consumo desse produto fosse originalmente restrito a uma elite urbana (Blazquez Martinez, 1995: 233). Especula-se que essa produção pré-romana, apesar de, talvez, se ter mantido sempre como uma pequena produção artesanal e de caracter familiar (Gutierrez Lopez, 2004: 254-255), teria encontrado o seu ápice na época púnica (séculos IV – III a.C.). Nesse período produziam-se preparados de peixe na zona da Baía de Cádis (Vargas, 2005: 105) e na Sicília, onde se localizaram ânforas púnicas nas unidades de produção (Lagóstena Barrios, 2001: 204). 

8 A produção de um molho de peixe salgado está referida na obra do comediógrafo grego do século V a.C., Eupolis de Atenas (frag. II, 43).  

No momento, evidências sugerem que ao menos em parte do território que veio a formar a Lusitânia se produzisse e/ou consumisse produtos de preparados de peixe em algum tempo anterior à conquista romana. A produção é sugerida pela existência de alguns centros de produção que funcionavam em porções do litoral meridional do território, durante o período púnico, certamente sob influência gaditana (Edmonson, 1987; Étienne e Mayet, 2002; Faria, 2002: 48-49, 67). 

Quanto aos indícios de consumo, há uma limitada evidência arqueológica. Segundo o registro material encontrado em Lisboa em contexto pré-romano, aquele assentamento importou ânforas piscícolas (T – 11.2.1.2) entre os séculos V e III a.C. (Pimenta, 2006: 224). Embora o estudo seja inconclusivo sobre a importância dos preparados de peixe para a economia daquela comunidade, o autor reconhece que a quantidade de ânforas piscícolas aumenta à proporção que os contingentes militares romanos se instalam na região. Essa produção era toda oriunda da região gaditana, indício das precoces relações comerciais entre aquelas regiões. 

Não há evidências disponíveis para um estudo do tema ambientado na produção desses produtos durante o período republicano. Iola (2011: 17) sugere que a ausência de uma “indústria” de preparados de peixe na época republicana poderia se dever à instabilidade política e económica da Lusitânia na época, uma vez que a Hispania foi completamente submetida apenas no final do século I a.C. Entretanto, Bombico (2017: 72) esclarece que a chamada “política atlântica romana”, iniciada em meados do século I d.C., foi responsável pela potencialização da exploração dos recursos marinhos e minerais, afetando, consequentemente, a administração dos recursos da província. 

A despeito das razões oficiais, verifica-se que a maioria dos centros de produção dos preparados de peixe no ocidente data do período imperial (Bugalhão, 2001: 38), embora se reconheça a pré-existência de centros similares no mundo púnico. Portanto, mesmo que essa produção tenha sido meramente “retomada” durante o principado, os preparados de peixe já estavam a ser explorados em larga-escala no século I d.C. 

I. 1. Das oficinas de preparados de peixe

Na Lusitânia, a data estimada para o princípio da produção é o segundo quartel do século I d.C., localizando-se nos estuários do Tejo e do Sado. Quanto ao Tejo, a olaria encontrada no Largo da Misericórdia funcionou no segundo quartel do século I d.C., e produziu o tipo de ânforas empregadas para os produtos à base de preparados de peixe (Tavares da Silva, 1996: 48). Olisipo, apesar de oscilações em sua população, foi um centro ativo por séculos antes da conquista romana. 

Fabião (2009b) supõe que o Tejo possua duas fases de exploração dos produtos à base dos preparados de peixe, à semelhança do que ocorrera ao Sado. Uma pequena fase inicial teria contado com pequenas unidades produtoras na área urbana de Olisipo, embora não haja comprovação arqueológica satisfatória no momento (Fabião, 2009b: 570). O estabelecimento encontrado sob a Casa do Governador da Torre de Belém (Figs. 5 – 6), na periferia de Olisipo, coloca essa proposta em cheque (Iola, 2011). 

O Sado teria desenvolvido uma indústria em dois momentos distintos, com dimensões e estratégias específicas. Num primeiro momento, existiram pequenas unidades produtoras, como as do sítio do Praça do Bocage (Fig. 8), Travessa de Frei Gaspar (Fig. 8a) e Creiro (Fig. 10 – 10a). 

Inicialmente, essas unidades recorriam a olarias locais para o envase e transporte de sua produção (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 1987: 236-237). Um segundo momento testemunhou o surgimento de grandes núcleos produtores, enquanto a produção oleira viu-se empurrada para o interior do estuário (Fig. 7), em sítios como a Herdade do Pinheiro, Abul e Quinta da Alegria (Fabião, 2009: 570). 

Fabião (2009b: 569) entende que o litoral do Algarve desenvolveu o seu conjunto de centros produtores em um período posterior (Fig. 16) 9.

9 Verificar também a Tabela 2.  

Para o autor, o envasamento dessa produção algarvia possivelmente era feito por ânforas oriundas da Bética, que então já possuiria uma estrutura bem consolidada na produção dos preparados de peixe. 

Cronologicamente identificam-se duas fases para a produção dos preparados à base de peixe. Um primeiro momento teria sido consolidado entre os séculos I- II d.C., e chegado ao final na transição entre os séculos II – III d.C. Uma historiografia dita tradicional identifica a chamada crise político-militar do século III como causa para a quebra da indústria, uma vez que as rotas marítimas estavam afetadas, dificultando o escoamento da produção (Bugalhão, 2001: 39). Alinhado à historiografia tradicional, Fabião (2009b: 571) sugere que a queda demográfica provocada pela praga que varreu o império durante o principado de Marco Aurélio poderia estar ligada à redução do volume da produção dos preparados. 

Por outro lado, Quaresma (2012: 257ff) argumenta que a cunhagem de Cláudio ainda é utilizada nas transações comerciais das décadas seguintes. Uma vez que só se identifica um novo crescimento da cunhagem a partir dos tempos de Adriano, há indícios prováveis de uma leve deflação nesse período. O autor favorece uma visão de que a recuperação do processo inflacionário do século I é interrompido até princípio do século II. 

Quanto à curva dos naufrágios no século II, a ausência da estudos sobre naufrágios na costa africana exclui informação estratégica sobre uma área importante do império. Uma vez que ocorre na época um intenso fluxo de mercadorias proveniente da costa africana (predominando a cerâmica de mesa, azeite e preparados de peixe), a ausência de dados sobre os naufrágios da área torna patente a carência de dados arqueológicos suficientes para que se possa realizar uma análise precisa do período (Wilson 2009: 220ff). 

De facto, o ocidente imperial apresenta, no século II, uma série precoce de sintomas que serão característicos da Antiguidade Tardia. À crise da produção dos preparados de peixe lusitanos, soma-se a estagnação do crescimento urbano, uma crise financeira que afeta todo o império, uma praga e a ocorrência de ataques dos Mauri à Hispânia. Quaresma (2012) demonstra que a crise estatal de meados do século II antecede a praga e que a crise do consumo de terra sigillata pode ser verificada ainda no princípio do século. Portanto, a derrapagem económica ocorrida no século II afeta igualmente os empreendedores privados e públicos. 

No século III ocorre a retomada da produção dos preparados de peixe, agora envasada em novas tipologias anfóricas (saem as do tipo Dressel 14 e surgem as do tipo Almagro 50 e 51c) 10.

10 Há aqui uma controvérsia. O processo de substituição das ânforas terá começado a ocorrer a partir do século II d.C., de modo que essa prática pode não estar sequer vinculada à crise do século III d.C. (Ver: Fabião, Guerra, 1993: 1004).  

O segundo ciclo dessa produção estendeu-se possivelmente até a primeira metade do século V d.C. Entretanto, no Algarve, ao menos o centro produtor da Travessa Silva Lopes, em Lagos, prosseguiu em atividade até princípios do século VI d.C. (Ramos, Almeida e Laço, 2006). 

As chamadas “invasões bárbaras” do século V d.C., a rutura de rotas comerciais e o declínio do comércio e as evidências apresentadas pelos dados arqueológicos de abandono estabelecem o colapso da produção lusitana para esse período. 

I. 2. O contributo das fontes textuais

As fontes textuais deixadas pelos autores da antiguidade foram, por muito tempo, o principal recurso para a compreensão da produção romana dos preparados de peixe. De facto, essas fontes disponibilizam uma descrição ampla e detalhada dos múltiplos aspetos da atividade pesqueira romana republicana e imperial, inclusive o processamento e comércio dos preparados de peixe. 

A terminologia latina identifica variedades tipológicas da produção dos preparados à base de peixe, bem como da matéria-prima utilizada na sua confeção. Fontes epigráficas, como os tituli picti, ainda revelam detalhes sobre o local da sua proveniência ou da destinação do produto. A identificação e classificação das tipologias produzidas e as explicações literárias romanas para a terminologia romana formam o primeiro passo para o estudo do tema. Portanto, os estudos das fontes literárias são particularmente interessantes para aqueles que investigam a geografia da produção dos preparados de peixe. 

Os autores antigos deixaram-nos comentários acerca da estrutura, funcionamento e desenvolvimento dessa produção. No caso da Península Ibérica, a obra de Estrabão, “Geografia” (livro III) oferece informações normalmente confirmadas pela arqueologia do início do período romano imperial (Garcia Vargas e Bernal Casasola: 2009, 135). De igual importância se acrescenta a obra de Plínio, “Historia Naturalis”, devido ao seu caráter enciclopédico. 

Os antigos autores diferenciavam os preparados sólidos, ou conservas (salsamenta, tarichos) dos molhos (líquidos) à base de peixe (Curtis, 1991: 6ff). Apenas uma única referência textual antiga sobre a confeção dos preparados sólidos sobreviveu ao tempo, deixada por Columella (De Re Rustica 12, 55,4), no século I d.C. Contrariamente, abundam os relatos descritivos da produção dos molhos líquidos, desde Marcus Manilus, “Astronomica (V, 656-681), também no século I d.C., até a obra “Geoponica” (20, 46, 1-6), bizantina e anónima, do século IX d.C. 

Dentro desta segunda categoria, dos molhos, a terminologia era utilizada de acordo com a qualidade do produto. A documentação romana lista quatro molhos de peixe “distintos”: garum, liquamen, muria e hallex (Dumitrache, 2009: 553). Contudo, essa “distinção” deve ser considerada com cautela, uma vez que, nem sempre essa terminologia é empregue de maneira clara. Por vezes ocorrem generalizações e simplificações quanto à verdadeira natureza do produto referido. 

Há um grupo especial de produtos que se conhece apenas pelas suas referências nas fontes literárias (hydrogarum, oenogarum and oxygarum). Esses produtos nunca foram atestados nos tituli picti ou documentação similar (Garcia Vargas e Bernal Casasola, 2009: 136; Bombico, 2017: 127). 

Por outro lado, quando a designação dos produtos mencionados pelos tituli picti coincidem com aquela mencionada pelas fontes literárias, não há a certeza absoluta de que se trate de uma correspondência perfeita entre os produtos referidos pelas ânforas e pelos autores antigos. Há que se considerar uma possível evolução semântica, pelo que a terminologia técnica para designar os diferentes preparados de peixe poderiam ser usados de maneira mais genérica, seja por vícios linguísticos ou regionais (Garcia Vargas e Bernal Casasola, 2009: 136). 

Não se sabe ao certo a origem etimológica do termo “garum”, a não ser que seria a latinização do termo grego homófono. Plínio cunha o termo na sua Naturalis Historia (31. 93-94) ao mencionar que um produto à base de cavala 11 consistia num garum de alta qualidade, sugerindo o aproveitamento do seu sangue (hematites). O aproveitamento do sangue é ainda comentado por Séneca (“Epistulae Morales ad Lucium” 95.25) 12. 

11 Em Origines (20, 3 ,19), Isidoro de Sevilha, emprega o termo “garum” para identificar um tipo específico de peixe: “(…) quae Graeci garon vocabant”. Essas são precisamente as mesmas palavras lidas na Naturalis Historia de Plínio ao definir o garum como um molho: “liquor piscium salsus (…) quae Graeci garon vacabant” (XXXI. 93).  

12 “Illud sociorum garum, pretiosam malorum piscium saniem (…).”  

A receita de garum mencionada nos Geoponica (20.46.6) considera o haimation como o tipo de garum mais valioso. A seguir, descrito no século III d.C. na obra de Sextus Iulius Africanus (Kestoi 1.19.105) viria uma receita intermediária em qualidade denominada garós sókkios. Esta receita aproveitava as entranhas dos peixes, que consequentemente incluiria o sangue. 

O termo “garum” foi ainda utilizado genericamente para definir o molho (preparado líquido à base de peixe processado) com o emprego de condimentos. O liquamen aparece como um produto distinto do garum, ainda que de natureza similar (Étienne, Mayet, 2002: 50 – 51). Todavia, se garum and liquamen, não forem exatamente o mesmo produto, eles terão tido receitas extremamente similares, preparadas à base de vísceras, ovas e sangue de peixe (ou mesmo de pequenos peixes), macerados com sal e aromatizantes (Bombico, 2017: 127). 

De facto, a partir do século I d.C., o termo liquamen passa a ter um emprego generalizado 13. Por volta do século IV d.C., já não se encontram mais referências ao termo garum, a não ser em ocasiões excecionais 14. 

13 Fabião e Guerra (1993: 999 – 1003) observam que na obra do século I d.C., De Re Coquinaria, de Apício, o termo “liquamen” substituti o termo “garum” na base de 425 referências contra 2.  

14 Martial escreveu, na segunda metade do século III d.C., que liquamen era garum misturado com vinho: “confecto liquaminis quod onegarum vocant” (Curae boun, 62). No século V d.C., Aureliano reproduz a equivalência garum-liquamen: “garum quod appellamus liquamen” (Tardarum passionun, 2.1.40).  

Columela descreve a muria como o produto de uma salmoura obtida a partir da mistura feita num quadratus (ca. 28 l) de água doce com um modius (ca. 8,75 l) de sal (De re rustica, 12, 6). O termo também era utilizado genericamente para molhos de peixe (Étienne, Mayet, 2002: 47)15. O allec (hallex, allec ou allex) certamente tratar-se-ia de algum produto secundário, derivado dos residuais da produção do garum/liquamen (Dumitrache, 2009: 554). Subprodutos mencionados por Apício mencionam os compostos hydrogarum, oenogarum and oxygarum como resultantes da adesão, respetivamente, de água, vinho e vinagre ao liquamen (Bombico, 2017: 127). 

Existe também a informação textual reunida pela própria arqueologia, a partir dos tituli picti 16 referenciando as ânforas de salsamenta. Esses rótulos comerciais possuem uma importância estratégica para o estudo da produção dos preparados de peixe. As etiquetas sugerem uma vasta tipologia de produtos e/ou receitas não mencionadas pela literatura greco-latina disponível. Contudo, deve-se adotar essa fonte com precaução, uma vez que a sua leitura é, por vezes problemática (Garcia Vargas, Bernal Casasola, 2009: 136). 

16 Rótulos comerciais pintados sobre as ânforas de transporte. Esses rótulos normalmente abreviam uma informação geral sobre o volume, a proveniência e qualidade do produto, bem como a identificação do produtor.  

Um caso emblemático do processo de análise e debate de um tituluis pictus ocorre com a identificação de um suposto subproduto denominado laccatum. Tratar-se-ia de um molho de peixe combinado com um tempero-colorante (lac/ lacca/ laccat que indicaria a sua proveniência em Lacca, na Bética (Sarhage, 2002: 72). 

Contudo, Djaoui (2016) demonstrou que tal produto, de facto, não existiu, tendo se tratado de um equívoco de leitura. Na segunda linha do depinto do pescoço de uma ânfora Dressel 14, onde constava LAC[–], a leitura que propôs “LAC(catum)” foi corrigida pelo autor para LAC(certus) CAT(tulus). As Dressel 14 são normalmente destinadas ao transporte de liquamen, e a presença de LAC[–] constar na segunda linha do depinto tornavam inviável que se desenvolvesse o texto como “laccatum”. Djaoui então propõe lacertus como a proposta ideal de identificação do tipo de peixe processado. 

Os tituli picti também identificam a proveniência do produto de maneira mais direta. Por exemplo, anotações como Garum Ostiense, revelavam uma proveniência de Óstia; garum Lunense, itálica; liquamen Antipolitanum, de Antípolis; muria Malacitana, de Malacca; hallex Herculanensis, de Herculano (Dumitrache, 2014: 555). 

Sabe-se que os molhos mais referidos pelos tituli picti eram fabricados a partir da cavala (scombri), atum (thunnus, cordula), ou ainda uma mistura, denominada garum geminus 17 (Dumitrache, 2009: 555). Essas matérias-primas são regularmente referidas nos rótulos pintados nas ânforas. Assim, o chamado garum scombri (CIL IV, 2574-2580; 2583; 2586; 9415) seria fabricado a partir de cavalinha, tal como o liquamen scombri (CIL IV, 2588) e o hallex scombri (CIL XV, 4730-4731). 

17 CIL, IV 5826-5827; 9392-9393; 10272-10273.  

A terminologia das etiquetas também podia incluir epítetos que informavam sobre a qualidade do produto. Os molhos considerados “puros” eram diferenciados daqueles que recebiam condimentos extras na sua receita. Os epítetos incluem flos and flos flos, optimum, praecellens, primum, secundum, excellens, flos excellens, entre outros. Não se compreende ainda claramente qual era o critério de hierarquização desses epítetos, ou sequer possíveis equivalências qualitativas entre eles (Dumitrache, 2009: 556). 

Há ainda um caso emblemático de registo de proveniência que acumula uma garantia de qualidade. Trata-se do chamado garum sociorum, marca de uma societas estabelecida em Carthago Nova. Os autores clássicos são unânimes ao atribuírem um status superior ao “garum sociorum”, de origem hispaniense, em razão da sua qualidade. 

Étienne (1970) defende que haveria ali uma referência a alguma companhia concessionária regional, administrando salinas e cetárias e processando produtos de salga e conserva piscícolas. Em oposição a essa visão, Garcia Vargas e Bernal Casasola (2009) defendem que, na realidade, haveria sim uma variação hispaniense da receita. 

A existência de uma “receita hispaniense” pode induzir à ideia de que haveria na Bética uma produção centralizada e homogénea. Todavia, os tituli picti apontam para uma possível “fragmentação” da produção bética, uma vez que os negotiatores salsarii béticos compram e envasam os seus produtos a partir de origens diversas. Sabe-se que M. Valerius Abinnericus transportou para Pompeia a produção de Clarus de Ossonoba e de vários outros produtores (Étienne, Mayet, 1998: 214; Étienne, Mayet, 2002: 229). 

A epigrafia lusitana, que poderia auxiliar a elucidar a questão, não está disponível em volume suficiente para orientar especulações a esse respeito. Sabe-se que, a título de comparação, na Bética existiam sociedades dedicadas à exploração dos preparados de peixe. Essas sociedades articulavam mercatores and negotiatores salsarii baetici com a Italia e com o limes germanicus e o norte da Gallia (Bombico, 2017: 113). 

I. 3. Conserva e transformação de peixe

A produção de conservas e molhos de preparados de peixe conjugava diferentes atividades e etapas, incluindo a pesca, a exploração do sal e a transformação do pescado. Contudo, não se sabe se essa exploração era feita via iniciativa independente ou articulada em alguma rede. Não se sabe se os centros produtores de preparados de peixe dispunham da frota de barcos de pesca, se produzia as suas próprias ânforas ou se explorava as suas próprias salinas (Bombico, 2017: 113). 

A possível interdependência entre centros produtores de preparados de peixe e olarias produtoras de ânforas é ainda um tema em debate. Os centros oleiros produziam ânforas, mas também fabricavam cerâmica comum e/ou de construção (Fabião, 2009b: 582). Uma mesma unidade produtora de preparados ainda poderia ser abastecida por diferentes olarias (Dias et al., 2012). 

Não se sabe ainda como se dava a exploração do sal na Lusitânia. Trata-se da atividade económica mais difícil de detetar a partir de indícios arqueológicos. Atualmente, não há sequer um único indício de salina detetado no contexto romano em território atualmente português (Bombico, 2017: 105) 18. O problema é agravado pelo facto de que as técnicas de exploração das salinas mantiveram-se durante séculos, fazendo com que a sua localização permanecesse a mesma, dificultando, portanto, a identificação de contextos (Fabião, 2009b: 578). 

18 Embora conheça-se em Vigo, para os séculos VI – VII.  

Garcia Vargas e Bernal Casasola (2009: 166-168) discutem as dificuldades em se escavar registos de salinas romanas escavadas na argila, alertando que salinas de evaporação construídas nos estuários de rios são praticamente impossíveis de serem diagnosticadas. Todavia, os autores estimam que vastas áreas na boca do Sado deveriam possuí-las. De facto, estudos geo-arqueológicos (Menateau et al. 2003) indicam que a costa ocidental da península possuiu grandes salinas, especificamente na boca dos principais rios: Tejo, Sado; no litoral do Algarve e na baía de Cádis e Algeciras. 

Não se sabe com exatidão a forma como o sal era obtido nos casos em que as cetárias não estavam servidas de um abastecimento direto de salinas. Talvez algum método alternativo pudesse suprir o sal a partir das areias da praia (Hesnard, 1998), embora dificilmente se possa obter sal em larga escala com esse procedimento. Certamente alguma linha comercial distribuiria o sal, mas tampouco se sabe como ocorria essa logística. O transporte de salmoura em recipientes (cerâmicos ou não) pode ser uma opção pouco provável, segundo Villaverde Bem (2001). Garcia Vargas e Bernal Cassola (2009) mencionam a existência dos exactores campi salinarum romanorum, em 135 d.C., em Óstia. Assim, oficiais da carreira equestre eram designados para a vigilância e fiscalidade da atividade de extração do sal. 

As oficinas dispunham de poços, cisternas e depósitos para o armazenamento da água. A água era fundamental para a higienização das oficinas e para o preparo das salmouras. A existência de fornos e fornalhas nas oficinas apontam para o preparo dos molhos em recipientes cerâmicos durante um processo de aquecimento (Ponsich, 1988: 80). 

A tradição textual antiga alerta-nos quanto à excelente reputação dos preparados de peixe provenientes do oeste. O atum e a cavala do Atlântico são sempre considerados produtos superiores para a confeção das conservas (Celso “Medicina” 2, 18, 7). Isto reforça a perceção de que, ao menos na produção dos preparados, o senso comum romano prezava mais o pescado azul do que o branco, talvez também por uma valorização cultural ao elemento mais exótico como sinónimo de refinamento gastronómico. 

Por outro lado, peixes de carne branca também eram largamente aproveitados para a produção de preparados. A arqueologia comprovou a ocorrência de vestígios de corvina e pargo do Atlântico (Garcia Vargas, Albelda, 2006). Essa omissão de peixes de carne branca pelos autores antigos sugere a existência de produções baseadas em peixes mais acessíveis e menos valorizados, em detrimento dos produtos considerados de alta qualidade. 

Infelizmente, não há, nas fontes clássicas disponíveis, referências diretas ao processo de produção dos preparados de peixe lusitanos. Estrabão menciona as riquezas do Tejo em peixes e ostras. Pode-se concluir que os preparados de peixe lusitanos incluíam tanto o peixe salgado como os molhos, graças a uma menção do Édito Máximo de Diocleciano, em 301 d.C., que os diferenciava enquanto categorias 19 (Fabião, Guerra, 1993: 1000). 

19 Enquanto o peixe salgado recaía na categoria de peixes, o liquamen (primum and secundum) recaía na dos óleos. (Edictus praetiis, 3.6. e 3.7). Ver também a tabela 5 desta obra.  

Estudos recentes sobre a terminologia dos produtos preparados à base de peixe nas fontes literárias são inconclusivos, embora promovam reflexões filológicas interessantes (Grainger, 2014). Apesar de sua inegável utilidade, a utilização de fontes literárias e documentais antigas para o estudo da produção dos preparados de peixe consiste num recurso incompleto. 

A arqueologia, amparada pela cooperação com a química e a arqueozoologia 20 dedicou-se ao estudo laboratorial da fauna marinha empregada nessa produção, e cujos vestígios ainda se podem encontrar nos contextos arqueológicos (terrestres ou  submarinos) da produção (oficinas) e comércio (material anfórico e similares) dos preparados de peixe. 

20 Mais precisamente, uma “arqueoictiologia”.  

Esse tipo de estudo permitiu estabelecer, por exemplo, que na vizinha Bética, as cetárias, quando recebiam peixes de dimensões maiores e intermédias, recebiam-nos sem as cabeças e vísceras. Isso evitava a autólise da carne pelos sucos gástricos e a deterioração do sabor da carne pelo contato com o sangue (Bruschi, Wilkens, 1996; Desse-Berset, Desse, 2000: 75-79). 

Em outros casos, quando se mantinha a cabeça ao peixe, o procedimento de evisceração teria sido diferente (Desse-Berset, Desse, 2000: 80-82). A quantidade de sangue acumulada pela cabeça poderia ser insignificante para merecer tratamento, ou talvez este fosse mesmo coletado para a confeção de produtos derivados da conserva, como o garum haimation. 

I. 4. O estado da arte da produção Ibérica

O primeiro estudo acerca da existência de uma indústria de conservas e preparados de peixe no mundo romano datam de princípios do século XIX (Köhler, 1832). Todavia, o interesse académico pelo tema veio a desenvolver-se apenas mais tarde, quando se publicaram os tituli picti de ânforas piscícolas de Pompeia (Zangemeister, Schöne, 1871; Mau 1909) e Roma (Dressel, 1879). 

A partir do século XX, retomam-se os estudos, agora concentrados no debate sobre aquelas mesmas ânforas (Remark, 1912; Bohn, 1925). Nesse contexto, surgem estudos dedicados a fontes literárias sobre os preparados de peixe romanos, traçando paralelos antropológicos com uma produção análoga, da tradição culinária do extremo-oriente (Grimal, Monod, 1952; Jardin, 1961; André, 1981). 

O primeiro estudo dedicado especificamente às indústrias do género no litoral do Mediterrâneo ocidental é relativamente recente (Corcoran, 1957). Por sua vez, a obra de Corcoran, de natureza genérica, recebeu um reforço consistente produzido por uma investigação posterior, focada no litoral mediterrâneo espanhol e marroquino (Ponsich, Tarradell, 1965). 

Este estudo estabeleceu a expressão “Círculo del Estrecho” (posteriormente revisto como um “circuito del estrecho”) para designar o espaço geopolítico contido pelo extremo sul da Península Ibérica e o litoral atlântico marroquino e que teriam estado sob influência direta de Cádis durante o período fenício-púnico. Naquele espaço havia um circuito comercial que articulava oficinas de preparados de peixe, salinas e atividades agrícolas. Esse circuito económico permanecera em atividade ao longo do período romano, cabendo a Cádis uma posição privilegiada na influência que a Bética exerceria naquela região ao longo do período imperial. 

Tratava-se então do primeiro estudo sistemático de evidência arqueológica sobre as oficinas locais de salga e conserva de peixe. Esse estudo regional da temática veio ainda receber um importante estudo de síntese (Curtis, 1979), que incluiu um diálogo entre os tituli picti e as suas respetivas ânforas. Posteriormente, este mesmo estudo foi expandido para uma análise de todo o litoral mediterrâneo (Curtis, 1991). 

Não obstante, Cravioto (2015: 178ff.) explica que o conceito original de “Circulo del Estrecho” permaneceu algo obscuro e sempre foi empregado de forma marginal ao longo dos anos 70 – 80, o que permitiu que surgissem definições alternativas para o termo, até a definitiva consolidação de uma proposta final de “circuito”. Tal ambiguidade foi abordada ao longo do século XXI em congressos internacionais, sobretudo o I Seminário Hispano-Marroquí de Especialización en Arqueología, realizado em Cádis, 2006; e o VI Encuentro de Arqueología del Suroeste Peninsular, em Mérida, 2014. 

Ainda no final dos anos 1980, as atenções sobre a produção dos preparados de peixe nos limites ocidentais do Mediterrâneo receberam um consistente estudo de caso sobre a Hispânia (Ponsich, 1988). 

Garcia Vargas e Bernal Casasola (2009: 133-134) explicam que a partir dos anos 1990 ocorreu um intenso desenvolvimento urbanístico no litoral ibérico, ao mesmo tempo que órgãos de administração e conservação do património cultural e arqueológico fortaleceram-se na Espanha, Portugal e Marrocos. 

Nesse espírito, com o aumento das intervenções arqueológicas, aumentou-se o volume de dados empíricos novos acerca das indústrias de salga e conserva de peixe no ocidente. (Lagóstena Barrios, 1996, 2001; Bernal Casasola, 1998ª, 1998b; Bernal Casasola, Lorenzo, 2002). Assim, o novo século tem início com obras dedicadas a recuperar um estado da arte atual para a problemática (Lagóstena Barrios, 2001; Étienne, Mayet, 2002). 

De facto, o século XXI testemunhou o crescimento dos congressos internacionais dedicados ao estado da arte dos conhecimentos da indústria dos preparados de peixe, seja no caso hispânico (Bernal Casasola, Lagóstena Barrios, 2004), seja num quadro mais geral sobre o Mediterrâneo (Lagóstena Barrios, Bernal Casasola, Arévalo, 2007). 

Os diversos encontros científicos ocorridos na Península Ibérica ao longo da primeira década do século XXI demonstram que a temática ainda possui grande apelo no meio académico: San Fernando, em 2000 (AA.VV., 2004); Puerto de Santa María, em 2006 (AA.VV., 2006ª) e Setúbal, em 2006 (AA.VV., 2006b); no âmbito internacional, ocorreram ainda o Congresso de Boulogne-sur-Mer sobre a exploração de recursos marinhos em 2005 (Napoli, 2008) e o Seminário Oglio e pesce in epoca romana. Produzione e commercio nelle regionni dell’Alto Adriatico (Padua, 2009). 

Uma exposição organizada em Algeciras em 2004 (Arévalo, Bernal Casasola, Terremocha, 2004) apresentou os resultados das últimas intervenções em Baelo Claudia (Arévalo, Bernal Casasola, 2007). Essa exposição motivou uma síntese geral dos conhecimentos sobre a produção dos preparados de peixe na Península Ibérica (Bernal Casasola, Sayez, 2008). 

I. 4. 1. Acerca da produção Lusitana

Em Portugal, as duas décadas do século XXI foram marcadas por uma intensificação das sondagens arqueológicas e, consequentemente, da disponibilidade de mais informações sobre a problemática. Essencialmente, os estudos dedicaram-se à questão da produção de preparados de peixe em contexto pré-romano, a sua evolução ao longo do período imperial e, finalmente, o declínio dessa produção, já durante a antiguidade Tardia. 

Foi estabelecido um consenso de que o sudoeste ibérico terá recebido uma profunda influência fenício-púnica entre os séculos VIII – IV a.C. Lagóstena Barrios (2001) comprovou a existência de centros produtores de preparados de peixe no Algarve do período púnico. Tavares da Silva (2005) estudou a presença fenícia nos estuários do Sado e do Tejo. 

É interessante ressaltar que Diogo (1987) já identificara uma forte influência púnica na tipologia de ânforas “Lusitana 1” encontradas no Sado. Tavares da Silva (2011) complementa os indícios dessa influência ao localizar no Sado exemplares de moedas copiadas de um modelo gaditano. Assim, apesar do consenso de que havia uma produção de preparados de peixe no período púnico, ainda não há dados capazes de estabelecer uma data para essa produção, nem se esta experimentou fases de desenvolvimento e/ou declínio. 

Uma referência essencial para o estudo da arqueologia da produção dos preparados de peixes em Portugal é a obra de Edmonson (1987), articulando pela primeira vez a produção dos preparados de peixe à dos seus contentores anfóricos. Ainda de autoria estrangeira, em cooperação com arqueólogos portugueses, seguem Mayet, Shmidt e Tavares da Silva (1996), a explorarem a indústria oleira e de preparados de peixe no estuário do Sado. Étienne e Mayet (1998) publicaram uma “cartografia crítica” dos centros produtores de preparados de peixe em toda a Península Ibérica. Posteriormente (2002) a dupla revisitou o tema, atualizando o debate. 

A parceria de Mayet e Tavares da Silva prossegue em outra obra (1998) onde se debate as ânforas de Pinheiro e uma vez mais no século XXI (2002), discutindo-se o material anfórico piscícola em Abul. Mayet publicou um estado da arte para o estudo das ânforas lusitanas (2001) e um estudo similar, reunindo dados mais atualizados foi então publicado por Fabião (2008). 

Uma bibliografia essencial para o estudo desse tema em Portugal também deveria incluir a obra de Morais e Fabião (2007), onde são discutidos os aspetos económicos dos centros oleiros da Lusitânia. 

As atas de encontros científicos constituem numa valiosa fonte de informações. O “Simpósio Internacional Produção e Comércio de Preparados Piscícolas durante a Proto-História e a Época Romana no Ocidente da Península Ibérica” (Uma homenagem a François Mayet), ocorrido em 2004, publicou as suas atas na revista Setúbal Arqueológica, volume 13 (2006). Esta publicação promove um exame completo do estado da arte acerca da produção oleira específica para os produtos piscícolas, bem como um estudo sobre todas as unidades produtoras dos preparados piscícolas na península. 

Bombico (2017) apresentou recentemente uma tese atualizando as relações entre os centros produtores de preparados de peixe lusitanos e os centros oleiros a eles associados. Contudo, dados precisos quanto ao volume da produção e a cronologia das produções ainda não são possíveis de serem estimados. 

CAPÍTULO II: OS CENTROS PRODUTORES LUSITANOS

Recentemente foi possível à arqueologia incrementar o volume de informação acerca da presença romana no território atualmente português entre os meados do século I a.C. e I d.C. O desenvolvimento urbano da Lusitânia e o subsequente aumento da presença de cidadãos romanos no território relacionam-se com uma nova realidade de assentamentos criados ex-novo e à expansão de centros populacionais indígenas, agora elevados em categoria jurídica. Nesse período também se verifica um expressivo aumento de importações cerâmicas. 

Entretanto, há uma série de fatores externos que também devem ser levados em conta para a compreensão dessas transformações. São elas: as últimas campanhas militares na península, nas Cantábrias (12 a.C. – 19 d.C.), ainda sob o governo de Augusto, e a criação do limes germânico (12 a.C.-9 d.C.) (Fabião, 2005: 84); a anexação da Mauritânia (42 d.C.) já sob o reinado de Cláudio, contando com apoio logístico da Bética e da Lusitânia (Mantas, 2002 – 2003: 457) e a consolidação do domínio romano sobre a Britânia (43 d.C.). A anexação da Britânia, segundo Fabião (1998: 139), é fundamental para garantir importância estratégica do nordeste hispânico na logística de abastecimento das províncias do norte europeu (a nova finis terra romana). 

Pode-se então perceber que o principado de Cláudio, de 41 d.C. a 54 d.C., foi direcionado para consumar o que autores portugueses denominam “uma política atlântica” romana (Fabião, 2005: 84; Mantas, 2002-2003: 459; Bombico, 2017: 72). Bombico caracteriza o período como uma época de exploração progressiva dos recursos naturais, enfatizando os recursos mineiros (estimulando o desenvolvimento do comércio e da infraestrutura provinciais) e os recursos marinhos (sal e peixe). Assim, a economia lusitana, tal como propõe Edmonson (1987), possivelmente baseou-se no binómio minério – preparados de peixe 21. 

21 Ver nota 5.  

Ao longo do período republicano predominam as importações de ânforas itálicas (Dressel 1) no território lusitano, bem como contentores provenientes da baía de Cádis e do vale do Guadalquivir (ânforas ovoides e Haltern 70). Também se atesta a presença de cerâmica de verniz negro da Campania e de paredes finas itálicas (Bombico 2017: 72). Esses padrões de importação estão bem representados no vale do Tejo, na Alcáçova de Santarém, Monte de Castelinhos e Olisipo (Arruda, Viegas, 2014; Pimenta, 2014; Almeida, 2008) 22. No estuário do Sado elas ocorrem em Salacia (Pimenta, Sepúlveda e Ferreira, 2006; Sousa et al., 2008). No Algarve, em Monte Molião-Lagos (Arruda, Sousa, 2012). 

22 Nesses estudos sobre Alcáçova de Santarém, na área do castelo de São Jorge em Lisboa, e em Monte dos Castelinhos apresentam a presença de ânforas de vinho itálico em contentores Dressel 1, testemunhando o abastecimento de tropas.  

Esses padrões de importação reforçam a teoria proposta por Mantas (1996: 348), de que Cádis terá exercido um monopólio marítimo e comercial sobre o Atlântico nesse período inicial da romanização do território. Assim, Cádis seria o principal centro distribuidor e de concentração de cargas destinadas aos territórios mais ocidentais da península. 

Assim, entre fins do século I a.C. e meados do século I d.C. o Atlântico foi usado como via de abastecimento institucional de produtos vinícolas e oleiros béticos, que incluíam produtos preparados à base de peixe na região de Cádis. Essa distribuição é atestada pelos vestígios de ânforas Haltern 70 (vinho e defrutum), Dressel 20 (azeite) e Beltrán II e Dressel 7/11 (preparados de peixe), ao longo da faixa atlântica peninsular, alcançando a Britânia e o limes germânico. Fabião (1993-1994) já alertara quanto a presença de ânforas tipo Dressel 20 de azeite bético na costa lusitana, sugerindo a existência de “anonna militaris” e de uma rota atlântica ligando o Mediterrâneo ao norte da Europa. 

Posteriormente, a implantação e desenvolvimento de cidades marítimas na Lusitânia possibilitou o surgimento de centros produtores de preparados de peixe, bem como o de centros oleiros destinados a abastecer aquela produção com o envase para o transporte. As características naturais do oceano Atlântico, com as subidas de marés e correntes mais fortes, condicionaram as fundações marítimas romanas aos portos naturais protegidos, ou aos estuários (Mantas, 2000). 

Essa mesma estratégia havia sido adotada pelos fenícios na instalação de suas feitorias no ocidente ibérico, no início da Idade do Ferro (Aubet, 2001). Por isso mesmo, os portos romanos são, antes de tudo, assentamentos indígenas que passaram por um processo de urbanização sob a administração romana. Essas cidades marítimas estão situadas em pontos estratégicos no litoral, facilitando tanto o comércio como a integração à comunicação com rotas terrestres, de modo que já exerciam atividades económicas na altura da conquista romana. Assim, a promoção desses assentamentos a novos estatutos administrativos sob os romanos era o reconhecimento por esses últimos da importância e do potencial económico daqueles centros urbanos (Mantas, 1990, 2000). 

Os chamados verdadeiros portos romanos, segundo Mantas (1990: 160), seriam então: Olisipo (Lisboa), Salacia (Alcácer do Sal), Ossonoba (Faro) e Balsa (Luz de Tavira). Bombico (2017, 91) complementa a lista, incluindo portos de uma importância secundária, como Scallabis (Santarém), Aeminium (Coimbra) e Myrtili (Mértola), no interior dos cursos do Tejo, Mondego e Guadiana, respetivamente. Esses centros eram importantes no sentido de servirem de portos de ligação para o interior do território provincial. 

Blot (2003) sugere ainda que os pequenos cursos fluviais, como o Minho, Lima, Cávado, Ave, Douro, Ria de Aveiro, Mondego e a zona das lagoas da Extremadura também desfrutavam de alguma importância económica e/ou logística. O mesmo é dito pela autora (Blot, 2005) acerca de pequenas ilhas da costa, como a Ilha do Pessegueiro e a Ilha de Berlenga como pontos de escala para a navegação atlântica. Áreas de fundeadouro como a entrada dos estuários do Tejo e do Sado, o Cabo Espichel e a baía de Cascais também são áreas de fundeadouro onde foram encontrados vestígios de âncoras da época romana (Alves et al., 1988-1989). 

O uso preferencial de baías protegidas e de estuários de rios traz benefícios logísticos, como a possibilidade de descarregar navios com o auxílio de “balsas de serviço”, similares àquelas que Estrabão refere ao descrever o procedimento rotineiro no Tibre (3.3.1). Assim, existe a possibilidade desses portos haverem recebido portos de madeira, ou até mesmo não haverem recebido qualquer estrutura portuária particular (Bombico, 2017: 92). As instalações portuárias romanas na Lusitânia eram, a rigor, um conjunto de ancoradouros e portos que se complementavam entre si (Mantas, 2000; Blot, 1998, 2003). 

II. 1. A geografia da produção Lusitana

As unidades produtoras de preparados de peixe localizavam-se nas imediações de cidades portuárias e/ou integradas a redes comerciais para o seu transporte e exportação. Essas zonas de produção dos produtos preparados à base de peixe e os centros oleiros a elas associados estão concentrados principalmente no sul do território português. 

Os seus núcleos situam-se em quatro grandes regiões: o estuário do Tejo, o estuário do Sado, a costa alentejana e a costa algarvia (Diogo, 1987: 181). Contudo, Bombico (2017, 97-98) alerta para a descoberta de um centro de produção oleira em Peniche, o que indica a possibilidade de novos centros ainda por descobrir ao longo do território ao norte do Tejo 23. 

23 A autora alerta (2017: 98) para o facto de existirem cetárias identificadas a norte do Tejo, para além do território lusitano. Isto é, ao longo da costa atlântica da Tarraconensis/Gallaecia, Gallia Aquitania and Gallia Lugdunensis. Mas, como não há até o momento qualquer indício de cetárias na região de Peniche, o local estará excluído deste trabalho.  

Edmonson (1987: 190) propôs uma tipologia onde podemos distinguir três modelos de oficinas de preparados de peixe em razão de sua localização: oficinas rurais (villae), urbanas e semi-urbanas. Por outro lado, Fabião (2009b) questiona os critérios para o diagnóstico de oficinas “semi-urbanas”, uma vez que alguns sítios podem apresentar ambiguidades (como Troia e a Ilha do Pessegueiro, que poderiam integrar “polos industriais”). 

As oficinas rurais, em funcionamento sob o modelo de villa, integrava a exploração agrícola e a marítima, de modo que, ao menos na Lusitânia, não há ainda um caso específico de oficina rural. 

Um outro modo de se identificar tipos de unidades produtoras pode ser através das suas dimensões e organização arquitetónica (Bombico, 2017: 123). Há centros produtores com oficinas de tamanhos diversos, algumas delas contendo um grande número de cetárias, como Troia. Do mesmo modo, há ainda aqueles centros com unidades de pequenas dimensões, compostas por poucas oficinas de escala menor. 

A seguir estão listadas todas as cetárias diagnosticadas e/ou propostas (sem confirmação) até o final de 2016, segundo Bombico (2017: 114-120). 

24 Leia-se “capacidade instalada”, ou seja, qual seria a produção máxima estimada, caso todas as cetárias estivessem cheias e em operação simultaneamente.  

II. 1. 1. Grande Área do Estuário do Tejo

Há uma forte concentração de unidades de produção de preparados de peixe nas imediações de Olisipo, sugerindo que esta certamente foi uma das mais relevantes atividades económicas da cidade (Filipe, Fabião, 2006/2007: 116). 

No estuário do Tejo, as unidades de produção foram organizadas em torno do centro urbano-portuário de Olisipo. A listagem que se segue descreve, em linhas gerais, as características e o estado de cada centro produtor diagnosticado ou proposto. 

§ 1 Olisipo:

Ao longo do século XXI, o desenvolvimento económico português estimulou o aumento de intervenções emergenciais em Lisboa. Consequentemente, foi possível coletar novas informações arqueológicas sobre a época romana da cidade. Nesse contexto, foi possível traçar um perfil de intensa atividade de centros produtores de preparados de peixe na urbe. 

As onze oficinas de Olisipo estudadas estiveram em operação entre os séculos I e V d.C. Estima-se que a unidade da Rua dos Correeiros tinha uma capacidade instalada de até 288 m3. 

Figura 2: Unidades de transformação de preparados de peixe conhecidas no centro de Lisboa. (Fernandes, Marques, Filipe, Calado, 2011, fig.20); apud Bombico, 2017: 121. 

§ 2 Porto Brandão:

Na margem sul do estuário, em Caparica, foi identificada uma oficina de salga de peixe na Rua Bento de Jesus Caraça (Porto Brandão). O local ainda não havia sido escavado em Janeiro de 2017 (Fabião, 2017), mas existem à mostra dois tanques revestidos por signinum, indicando a possibilidade de se tratar de cetárias (Santos, Sabrosa, Golveia, 1996, Fabião, 2017). 

Estão diagnosticadas, no total, dez oficinas produtoras de preparados de peixe na margem sul do Tejo. Contudo, há muito pouca informação sobre o seu período de funcionamento, dimensões e capacidade instalada. 

Uma exceção é feita para Cacilhas (Rua Alfredo Dinis), de onde, graças a uma intervenção de emergência, ainda se consegue informações de que teria possuído dez cetárias e estado em funcionamento entre os séculos I e II d.C. (Fabião, 2017). 

Figura 3: Unidades produtoras da margem sul do Tejo (Fabião, 2017). 

1- Ramalha; 2 – Cacilhas; 3 – Quinta do Almaraz; 4 – São Paulo; 5 – Mercado do Monte; 6 – Chegadinho; 7 – Bento Gonçalves; 8 – Quinta da Torre; 9 – Quinta do Outeiro; 10 – Porto Brandão 

§ 3 Cascais:

Em conformidade com as crescentes intervenções arqueológicas de contracto e minimização de impactes na zona metropolitana de Lisboa, novas cetárias foram identificadas. Já no exterior do estuário do Tejo, foram diagnosticadas 7 cetárias na Rua Marques Leal Pancada, em Cascais. 

Esse conjunto teria capacidade para cerca de 130 m3 e teria funcionado entre os séculos I e II d.C.; uma conclusão feita com a ajuda de moedas datando dos principados de Domiciano e Antonino Pio (Cardoso, 2006). 

Figura 4: Cascais e a Rua Marques Leal Pancada (Fabião, 2017 a). 

Figura 4a: Cascais (Rua Marques Leal Pancada). 

§ 4 Casa do Governador da Torre de Belém:

Seguindo o mesmo perfil de intervenções arqueológicas de minimização de impactes, agora no contexto de uma obra de construção de um estacionamento, foi encontrada uma das maiores unidades de produção de preparados de peixe até o momento conhecidas. 

As 34 cetárias de dimensões variadas com uma capacidade instalada de até 335 m3. Essa unidade esteve em funcionamento entre os séculos I e V d.C.

Esse conjunto teria capacidade para cerca de 130 m3 e teria funcionado entre os séculos I e II d.C.; uma conclusão feita com a ajuda de moedas datando dos principados de Domiciano e Antonino Pio (Cardoso, 2006). 

Figura 5: Localização da Casa do Governador da Torre de Belém (Filipe e Fabião, 2006/2007: 104). 

Figura 6: Casa do Governador: dimensões e volume das cetárias da unidade de produção (Filipe e Fabião, 2006/2007: 110 – 111). 

II. 1. 2. Grande Área do Estuário do Sado

Se tomarmos como modelo a organização das unidades de produção em órbita de um centro urbano-portuário, como no caso de Olisipo, percebe-se que a mesma estratégia foi adotada no estuário do Sado, então sob a dependência administrativa de Salacia (Alcácer do Sal). 

Há no Sado uma concentração de olarias no curso inferior do rio (Quinta da Alegria, Zambujalinho, Pinheiro, Abul, Enchurrasqueira, Bugio e Barrosinha). As oficinas de produção de preparados de peixe estão concentradas na área urbana de Setúbal, ao longo da margem norte do estuário (Comenda, Rasca e Creiro) e na margem sul, na península de Troia (Tavares da Silva, Soares e Wrench, 2010). 

Figura 7: Complexo produtivo do Sado (Soares e Tavares de Silva, 2018: 15). 

Figura7ComplexoprodutivodoSado

1 – Barrosinha; 2 – Alcácer do Sal; 3 – Bugio; 4 – Enchurrasqueira; 5 – Abul; 6 – Pinheiro; 7 – Zambujalinho; 8 – Santa Catarina; 9 – Quinta da Alegria; 10 – Pedra Furada; 11- Setúbal; 12- Alferrar; 13 – Pedrão; 14 – Chibanes; 15 – Painel das Almas (Azeitão); 16 – Comenda, 17 – Rasca; 18 – Outão; 19 – Creiro; 20 – Sesimbra; 21- Troia. 

§ 5 Setúbal (Travessa Frei Gaspar e Praça do Bocage):

Trata-se de outro caso de intervenção arqueológica de emergência em área urbana. Uma intervenção arqueológica em 1979 investigou uma área de 120 m2 pertencente ao centro histórico de Setúbal. 

Sob a Travessa Frei Gaspar foi encontrada uma oficina de preparados de peixe, possivelmente do período flaviano, em formato de “U” ou “L”. Seus tanques eram revestidos por uma argamassa compacta impermeável. Essa oficina teria funcionado até o século III d.C., sendo abandonada em seguida (Soares, Tavares de Silva, 2018: 16). 

No ano seguinte, em 1980, outra sondagem do centro histórico, com 98 m2, foi realizada e uma nova fábrica foi encontrada sob a Praça do Bocage, em Setúbal. As cetárias estão organizadas em duas fileiras paralelas de tanques, separadas por um pequeno corredor que tem acesso direto ao pátio central (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1980-81). 

Esse corredor também delimitava em duas tipologias de tanques: aqueles que estavam revestidos por uma argamassa compacta impermeável de cal, areia e brita calcária (destinados ao fabrico de salgas), e os que eram revestidos por uma simples camada impermeabilizadora de argila (possivelmente empregados como reservatórios de água ou tanques de peixes). 

Essa oficina operou até o final do século II d.C. (Soares, Tavares de Silva, 2018: 

Figura 8: Oficina de salgas de peixe da Praça do Bocage (Soares e Tavares de Silva, 2018: 18). 

Figura 8a: Oficina da Travessa Frei Gaspar (Soares e Tavares de Silva, 2018: 17). 

§ 6 Comenda (São Julião, Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça):

Existem vestígios de tanques de salga, além de um aqueduto e um estabelecimento termal. Nos anos 1970’s ocorreram algumas escavações arqueológicas, mas nunca se publicou resultados ou estudos topográficos (Fabião, 2018ª). Vestígios anfóricos encontrados in situ estimam a ocupação do sítio entre os séculos I e IV d.C. (Costa, Marques, 1905; Trindade, Diogo, 1996) 

§ 7 Rasca (São Julião, Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça):

Costa (1905) menciona a existência de tanques de salga na área. Não se sabe mais nada (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1986, 1988; Fabião, 2018b). 

Figura 9: Rasca e Comenda (Fabião, 2018ª). 

§ 8 Creiro (São Lourenço e São Simão):

O complexo do Creiro foi diagnosticado em 1987. Ele é constituído por uma fábrica com pelos menos 11 cetárias, uma zona de armazéns que inclui pelo menos uma dolium, uma área residencial e, possivelmente uma segunda fábrica, ainda por investigar. Estruturas de uma fase mais tardia de ocupação incluem um sistema de encanamento (condução hidráulica) e uma estrutura termal (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1987, 2016). 

As cetárias estão dispostas em formato de “U” simétrico e possuíam uma capacidade instalada estimada em 31,63 m3. A estrutura foi reocupada em meados do séc. IV d.C., mas apenas parcialmente explorada. Não se sabe se nesse novo período de utilização ainda se produzia a salga. Durante a época islâmica o espaço foi reocupado e o complexo foi substituído por novas construções. 

Figura 10: Localização do sítio arqueológico do Creiro na Carta Militar Portuguesa (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2016: 212). 

Figura 10a:Planta da oficina e corte dos tanques 1- 5 (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2016: 216). 

§ 9 Sesimbra (Avenida da Liberdade):

Trata-se de um dos primeiros estudos arqueológicos do contexto romano em Sesimbra, iniciado em 2007. Não se sabe se a unidade produtora estava isolada ou integrada num complexo maior. Os achados localizam-se na ZEP da fortaleza de Santiago. 

Ali estão diagnosticados 7 tanques de salga alinhados. Alguns deles medem 2,40 m por 2,69 m por 1,29 m, o que sugere um grande centro produtor. Existem vestígios dos recursos marinhos disponíveis, mas estes ainda não foram estudados. Estima-se que o centro esteve a produzir entre os séculos I e V d.C. (Pereira 2014). 

Figura 11: Sesimbra: localização de 4 dos 7 tanques diagnosticados (Pereira, 2014: 157). 

§ 10 Troia:

O centro produtor de preparados de peixes de Troia é considerado, até ao momento, o maior de todo o mundo romano, com 25 oficinas identificadas (Vaz Pinto, Magalhães, Brum, 2011). As suas 159 cetárias em condições de análise possuem uma capacidade instalada superior a 3218,53 m3. 

A sua localização era privilegiada: entre o Atlântico e a entrada do estuário do Sado. O baixo Sado, além de rico em recursos marinhos era um centro explorador de salinas e pontilhado por grandes olarias. Troia foi ocupada desde meados do século I d.C. até, possivelmente, o final do século VI. O sítio tem sido alvo de intervenções e escavações desde o século XVIII, passando a ser controlado pela Sociedade Arqueológica Lusitana a partir de sua fundação, em 1848. Os trabalhos desenvolvidos no século XIX localizaram uma área de habitações e estruturas termais. 

Ao longo do século XX, de 1948 aos anos 1970’s, o Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, assumiu a direção dos trabalhos, localizando, novas estruturas termais e as primeiras oficinas de processamento de peixe. 

A localidade fora no passado um importante vicus industrial. Além dos centros produtores, Troia possuía toda uma estrutura hidráulica com termas (construídas entre os séculos II e III), uma necrópole (utilizada entre os séculos I e V) e, entre fins do século IV e início do século V, uma basílica paleocristã, implantada sobre parte de uma oficina de salga (Magalhães 2010: 10). 

No momento, considera-se que houve duas fases de ocupação. Durante os séculos I e II d.C., Troia teria experimentado o seu apogeu. A sua produção de molhos e preparados de peixe atendiam não apenas a Lusitânia como era exportada para outras partes do império, incluindo a sua capital, Roma. 

Ao final do século II ocorreu uma interrupção da atividade das oficinas. Estas passaram por uma reforma, subdividindo muitos dos seus tanques em metades. Concluída essa redução de dimensões, a produção continuou entre os séculos III e V d.C. Sabe-se que no século V as oficinas davam preferências aos peixes pequenos. 

De acordo com o estudo de Sónia Gabriel (LARC-Laboratório de Arqueociências): Contextos da segunda metade do século II: sardinha (Sardina pilchardus), biqueirão (Engraulis encrasicolus), choupa (Diplodus vulgaris), cavala (Scomber scombrus), robalo (Dicentrarchus labrax), anchova (Pomatomus saltatrix) e capatão (Dentex sp.) (Pinto, Magalhães, Brum, 2017; 2017ª). 

Contextos do segundo quartel do século V abrangem a sardinha (Sardina pilchardus), biqueirão (Engraulis encrasicolus), choupa (Diplodus vulgaris), cavala (Scomber scombrus), pescada (Merluccius merluccius), carapau (Trachurus trachurus), besugo (Pagellus acarne), dourada (Spaurus aurata), robalo (Dicentrarchus labrax), anchova (Pomatomus saltatrix), peixes cartilagíneos (Chrondrichthyes indet.), esturgeão (Acipenseridae), capatão (Dentex sp.), sargo (Diplodus sp.), pargo (Pagrus 

sp.) e outros grandes peixes ainda não identificados (Pinto, Magalhães, Brum, 2017; 2017a). 

O declínio do império ocidental afetou a produção dos preparados de peixe, mas ainda assim, o sítio continuou ocupado por mais um século. Entretanto, a partir do século V, já não se pode afirmar, com certeza, que permanecia ali uma estrutura industrial. Sabe-se da existência de um forno de pão e há materiais de importação, nada mais. 

Magalhães (2010: 110) conclui que o abandono da oficina 1 terá ocorrido, no mais tardar, em meados do século V, dado que no segundo quarto do século verifica-se um decréscimo acentuado na importação de terra sigillata. A autora confirma a presença romana no local até meados do século VI, embora reduzida, na necrópole tardia instalada sobre a área da oficina. 

Figura 12: Localização das 25 unidades produtoras identificadas atualmente na Península de Troia (Soares e Tavares de Silva, 2018: 29). 

Figura 12a: Mapa das Oficinas 1 e 2 e das termas (a Nordeste da Oficina 1) (Étienne, Makaroun e Mayet, 1994; apud Magalhães, 2014: 250). 

II. 1. 3. Grande Área da Costa Alentejana

O litoral alentejano possui uma estrutura produtora mais modesta, se comparada com o complexo produtivo do Tejo e do Sado. Há diagnosticado, até o momento, seis oficinas em Sines (1-2 e A-D), somando 25 tanques e cerca de 120m3 de capacidade instalada, embora Bombico (2017: 121) estime que esse valor tenha estado em torno de 200 m3. 

Na Ilha do Pessegueiro há duas oficinas escavadas, totalizando cerca de 77,7 m3 de capacidade instalada. 

§ 11 Sines I (Largo João de Deus 1 e 2):

Sines possuiu várias oficinas centradas numa mesma área. A independência dessas oficinas entre si não é totalmente clara, tal como acontece em Troia. Entretanto, em ambos os casos não se tem ainda o conhecimento da extensão total dos seus respectivos complexos, principalmente por causa da erosão, que provocou a destruição das arribas junto à frente marítima. 

O edifício (1) possui 7 tanques cobertos, dispostos em “U”, e 1 pátio central, aberto. A oficina entrou em funcionamento em meados do século I d.C. Os tanques III e VI foram remodelados em um período posterior, e portanto, não se sabe as suas dimensões originais. 

Na época dessa remodelação, foram abandonados os tanques I, II e VII, convertidos em uma zona residencial. Assim, apenas 4 tanques operavam em sua fase final de produção. Em algum momento do século IV d.C. a oficina foi desativada definitivamente (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2004, 2006). 

Uma segunda oficina foi identificada em 1961, sendo que esta contaria com um forno próprio. O edifício possuía os 9 tanques cobertos e dispostos ao redor de um pátio central, descoberto. A sua capacidade instalada seria de 39,6 m3. 

Estima-se que as oficinas 1 e 2 estivessem integradas ao mesmo complexo produtor. 

Figura 13: Largo João de Deus: oficinas 1-2 e A-D (3-5) (Fabião, 2018c). 

Figura 13a: Cetárias I – IX do Largo João de Deus (1). 

Figura 13b: Largo João de Deus (2) (Fabião, 2018d). 

Figura 13c: Cetárias I-VII do Largo João de Deus (2) (Fabião, 2018d). 

§ 11. 1 Sines II (Rua Ramos da Costa – “Fábricas A-D”):

Em uma intervenção de emergência foi encontrada uma nova oficina (A-E) a poucos metros do núcleo anterior (1-2). A oficina A (3) estava bastante danificada, de modo que há pouca informação disponível sobre ela. Sabe-se que ela foi construída sob a planificação em “U”, com 3 tanques identificados e um último, de pequenas dimensões, parcialmente recuperado. A sua capacidade instalada estava em torno de 22,8 m3. Ela terá sido abandonada no século IV d.C. 

A oficina B (3), identificada na mesma intervenção de emergência, possuía dimensões menores. Ela também havia sido planeada em “U” e a sua capacidade instalada, com os seus 3 tanques grandes e 1 pequeno, está estimada em 13,8 m3. 

Da oficina C (4) obteve-se apenas uma parede perimetral e um único tanque, posteriormente subdividido em dois menores. A sua capacidade instalada seria de 6,2 m3. 

Finalmente, a oficina D (5) conta com 3 tanques, destruídos por obras posteriores de construção da rua. Como esses tanques estão em uma cota mais baixa que as demais, especula-se que talvez essa oficina integrasse um complexo que se estendesse na direção do mar (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 2004, 2006). 

Figura 14: Sines: oficinas A e B (3) (Fabião, 2018e). 

Figura 14a: Sines: oficina C (4) (Fabião, 2018g). 

§ 12 Ilha do Pessegueiro D14 e P16 (Porto Covo):

A ilha possui registo de ocupação contínua desde a Idade do Ferro até a Antiguidade Tardia. Durante o século I d.C. foi construída toda uma estrutura de armazéns, habitações e oficinas, indicando que o local teria sido convertido em um entreposto comercial. 

Esse espaço sofreu uma remodelação no século II d.C. e, por fim, nos séculos III – IV converteu-se num centro especializado na exploração de recursos marinhos, com a construção de duas oficinas: D14 e P16 e estruturas termais. 

Foram escavados vários compartimentos interpretados como armazéns, adjacentes às fábricas D14 e P16 (Tavares da Silva e Soares, 1993, 136-141). Nesses espaços seriam armazenadas as ânforas vazias e/ou cheias prontas a ser embarcadas. 

A oficina D14 foi planeada em “U” e os seus tanques foram escavados em substrato rochoso e recobertos por signinum. A sua capacidade instalada está estimada em 36,63 m3. 

A oficina P16 possui plano em “T”, e um total de 10 tanques de dimensões variáveis. Elas também foram escavadas no substrato rochoso (a 2m de profundidade) e recobertas de signinum. A sua capacidade instalada está estimada em 41,4 m3. Possivelmente havia uma segunda oficina em anexo à essa, uma vez que foi detetado signinum nos escombros abandonados situados a norte de P16. 

Vestígios de recursos marinhos nas duas oficinas incluem muraenidae, sparidae, gadidae, mugilidae e labridae (Beja, 1993). Essas oficinas teriam estado em atividade entre os séculos III – V d.C. 

Figura 15: Ilha do Pessegueiro D14 e P16 (Fabião, 2018h). 

Figura 15a: Oficina D14 (Fabião, 2018h) 

Figura 15b: Oficina P16 (Fabião, 2018i). 

II. 1. 4. Grande Área do Litoral Algarvio

O litoral meridional algarvio estende-se por cerca de 150 km. Muitos dos complexos identificados no Algarve possuem cetárias pequenas, médias e grandes em produção simultânea, sugerindo que suas oficinas fossem especializadas. A maior parte dessas oficinas estabeleceu-se entre os séculos I e II e foram abandonadas de modo progressivo pelos séculos IV – VI tendo o seu número sido revisto por Medeiros (2014 – 2015). 

Atualmente estão identificados e/ou propostos 37 sítios, somando uma capacidade instalada de 601,20 m3. 

Tal valor deriva do cálculo a partir de tanques de apenas 11 centros em condições de análise: Boca do Rio, Martinhal, Senhora da Luz, Monte Molião, Rua Silva Lopes (Lagos), Vau, Aveiros, Loulé Velho, Doca de Olhão, Quinta de Marim e Balsa (Bombico, 2017: 122). 

De resto, apenas 25 sítios podem ser confirmados efetivamente como oficinas de preparados de peixe. 

Figura 16: Centros oleiros e sítios com cetárias na costa algarvia. A numeração dos centros é mantida para a secção descritiva que vem a seguir. (Viegas, 2011, fig.63); apud Bombico, 2012: 123. 

§ 13 Conjunto de Cetárias do Concelho de Vila do Bispo (Sagres):

A oficina mais ocidental do Algarve situa-se na Praia do Beliche (1). Trata-se apenas de vestígios de um tanque (Gomes et al., 1987: 67). Em seguida, a 1,5 km de Sagres, situa-se a nordeste de Sagres num dos ilhéus da Baleeira (2), uma estrutura com restos de opus signinum em possíveis cetárias (Gomes et al., 1987: 67). 

Na Praia de Salema (3) parece ter existido um complexo de oficinas (Veiga, 1910: 211), cujos vestígios limitam-se a fundos de tanques de salga. Em Areias, Budens (3) há também vestígios de 4 tanques recobertos por opus signinum, estando dois deles, os maiores, conectados a uma canalização que integrava um alicerce (Santos, 1971: 80). Sugere-se que esse complexo estivesse ligado à unidade de produção da Boca do Rio (4). 

Em Boca do Rio está situado o maior centro de produção, de preparados do Algarve. O centro desenvolveu-se no estuário do Arade, com uma estrutura inspirada nas villae: uma área habitacional situada na orla do mar, com características da domus romana, com obras de arte, um balneário e o campus servilis; oficinas com cetárias estavam nas imediações dessa área, num total de 3 oficinas e 12 tanques. 

Burgal (5) é a última praia do concelho de Vila do Bispo a apresentar cetárias. Entretanto, sabe-se muito pouco sobre a estrutura de sua oficina. Estima-se que ela tenha operado entre finais do século IV e início do século V, em razão de moedas recolhidas no sítio (Edmonson, 1987: 255). 

Figura 17: Complexo da Boca do Rio (Fabião, 2017c). 

Figura 17a: Mapa geral da área arqueológica da Boca do Rio com as zonas onde Francisco Alves escavou as cetárias em 1982 (segundo Bernardes, 2007); apud, Medeiros, 2014-2015, fig.8. 

§ 14 Conjunto de Cetárias de Lagos:

Na área da Praia da Senhora da Luz (6) há vestígios de um grande complexo, comparável ao da Boca do Rio. Mosaicos, balneários e 16 tanques (12 dos quais intactos), divididos em 3 oficinas. Esse complexo teria funcionado entre os séculos III e IV (Parreira, 1997: 244). 

No centro histórico de Lagos (7) há 3 zonas com cetárias diagnosticadas: ruas Silva Lopes (15 tanques em 3 núcleos); 25 de Abril (2 núcleos: um com 5 e outro com 4 cetárias); e Castelo dos Governadores (2 núcleos: um com 3 e outro com 5 cetárias). Ramos (2008: 91) sugere que ali havia um grande centro processador de recursos marinhos. Esse conjunto teria sido abandonado entre o final do século IV e início do V. 

Na baía de Lagos encontra-se a colina de Monte Molião (8), uma área de ocupação contínua desde o século IV a.C. Ali foram diagnosticadas duas cetárias datando dos séculos I e II (Bargão, 2008, 181). 

Figura 18: Planta das cetárias escavadas nos anos 1980 na estação arqueológica romana da Senhora da Luz (segundo Parreira, 1997). Com indicação de cetárias (1-16) e complexos de salga (A-D); apud, Medeiros, 2014-2015, figs.9-10. 

Figura 18a: Localização das cetárias do centro histórico de Lagos (B3A – Rua Silva Lopes; B3B – Rua 25 de Abril; B3C – Rua Castelo dos Governadores); apud, Medeiros, 2014-2015, fig.13. 

Figura 18b: Planta das cetárias do Monte Molião, Lagos (segundo BARGÃO, 2008). FIG 12 – Pormenor da construção de uma das cetárias do Monte Molião, Lagos apud, Medeiros, 2014- 2015, fig.11. 

§ 15 Conjunto de Cetárias de Portimão:

Em Vau (Alvor) (9), a oeste de Arade, onde se julga estar a cidade de Ipses, foram encontrados 15 tanques de salga. Esses tanques estariam dispostos em dois planos, o que Edmonson (1990: 142) interpreta como indício de que estivessem integrados a um complexo maior, também similar ao modelo de villa. Em Portimões (10), entre o Forte de Santa Catarina e o Convento de São Francisco, próximo à foz do Arade, pela margem direita, foi encontrada uma bateria de 15 tanques de salga, revestidos de opus signignum. Segundo Lagóstena Barrios (2001: 77) o complexo funcionou entre os séculos I e IV. 

Em Baralha (11) sítio arqueológico de 16 km2 interpretado como uma villa, existem muros decorados com estuque pintado e 2 tanques revestidos com signinum (Gomes, 2005). 

Figura 19: Conjunto de cetárias do Vau, segundo desenho de Estácio da Veiga (adaptado de Soares et al., 2007); apud Medeiros, 2014-2015, fig.26. 

Figura 19a: Estabelecimento de salga de Portimões, segundo Estácio da Veiga (VEIGA, 1910); apud Medeiros, 2014-2015, fig.26. 

§ 16 Conjunto de Cetárias de Lagoa:

Ferragudo (12) é um sítio localizado numa aldeia piscatória romana ou pré-romana. Na praia da Angrinha, junto ao castelo de Ferragudo, foi encontrada uma oficina de preparados de peixe. Sabe-se que a estrutura possui 3 tanques quadrangulares de 1m2 e forradas com uma argamassa grosseira de pedras roladas (Santos, 1971: 35). 

§ 17 Conjunto de Cetárias de Silves:

Na Praia de Armação da Pera (13), a cerca de 12 km a leste do rio Arade, encontrou-se vestígios de uma oficina de grandes dimensões (Santos, 1971: 144). Sabe-se que 3 de seus tanques ainda eram visíveis aquando da sua publicação, embora as demais estruturas já não o fossem. Segundo Fabião (1994) essa estrutura estaria conectada às de Portus Hannibalis. 

§ 18 Conjunto de Cetárias de Albufeira25:

Na Praia dos Aveiros foi detectado um tanque, escavado em solo calco-arenítico e danificado pela erosão (Paulo, 2011: 513). Na Praia dos Pescadores, próximo ao Largo do Cais Herculano, foi localizada uma possível estrutura de oficina de transformação de peixe (Paulo, 2011: 510). A Praia de Santa Eulália também aparentemente possuiu estruturas do mesmo tipo, estando esses tanques datados dos séculos III e IV. 

25 Esse conjunto não está descrito pelo mapa apresentado por Viegas, 2011, fig.63 (apud Bombico, 2012: 123).  

§ 19 Conjunto de Cetárias de Loulé:

Cerro de Vila (14) é um dos sítios arqueológicos mais conhecidos e estudados no litoral do Algarve. O seu complexo explorava recursos agrícolas e marítimos em uma estrutura análoga ao modelo de villa romana. Assim, ali se encontram edifícios decorados com arte, balneários, além de uma barragem, um porto, um núcleo “industrial” e uma necrópole. Em seu “núcleo industrial” Teichner (2004: 206) identifica 4 oficinas de transformação de moluscos bivalves e gastrópodes (E, H, I , J). As oficinas E, H, I estariam ocupadas com a produção de conservas alimentares, enquanto a última (J) processava pigmentos de púrpura (murex bandaris) para tecidos. 

Em Quarteira (15) teria existido uma oficina em uma área ocupada por uma povoação romana que foi completamente arrasada. Apesar de haver poucos vestígios dos tanques de salgas, Fabião (1994) propõe a sua datação para o século I a.C. Tão antiga quanto essa estrutura seria a unidade de produção encontrada um pouco mais a leste, em Loulé Velho (16). O sítio é comparável a Cerro da Vila em dimensões e luxo, tendo sido ocupado entre os séculos I a.C e VI d.C. Dado que o complexo estava situado nas proximidades de solo fértil, especula-se que também em Loulé Velho se articulava a exploração de recursos marinhos e agrícolas. Fabião (1994) propõe que os centros de Loulé Velho e Quarteira estivessem conectados a uma estrutura industrial comum. 

Em 1985, uma intervenção de emergência em Quinta do Lago (17) revelou um complexo de cetárias de pequenas dimensões, organizado em duas oficinas; uma contando com 5 tanques escavados na rocha, mais antiga (século I d.C.); outra, construída nas imediações (da qual restam somente 3 cetárias em mau estado de conservação) e abandonada progressivamente a partir do século III. Esse pequeno centro estava situado entre dois pequenos estuários e teria funcionado entre os séculos I e V (Arruda, 1986). 

Figura 20: Planta das diferentes Unidades Arquitetónicas identificadas no Cerro da Vila, com indicação das fábricas E, H, I, J e L (adaptado de Teichner, 2004); apud Medeiros, 2014-2015, fig.30. 

§ 20 Conjunto de Cetárias de Faro:

Na zona da baixa de Faro (18) foram encontradas 3 cetárias, destruídas pela construção civil na área da Avenida da República e a Travessa da Madalena (Rosa, 1984: 152). 

§ 21 Conjunto de Cetárias de Olhão:

Na doca de Olhão (19) a obra do porto de abrigo, junto à antiga fábrica Fialho destruiu duas cetárias. Foi constatado que o grupo original contava com 7 ou 8 cetárias (Edmonson, 1987: 260). 

A Quinta de Marim (20) é um sítio polémico, com múltiplas interpretações para a sua classificação. O povoamento possui três núcleos, estabelecidos ao longo de um paleo-estuário: área portuária, villa e fábrica de salga. O complexo produtor de preparados de peixe e processamento de púrpura, ao sul das ruínas da villa, pode ter-se desenvolvido em articulação com as atividades portuárias e agrícolas. 

São 6 cetárias, orientadas em duas fileiras separadas por um corredor, além de um forno de cal. As cetárias foram construídas no século II e abandonadas no século III, servindo de lixeira até o último quartel do século IV (Medeiros, 2014-2015: 132), embora Edmonson proponha que o seu abandono tenha ocorrido no século V (1987: 260). 

Figura 21: Planta e perfis esquemáticos das cetárias descobertas na doca de Olhão (segundo Iría, 1950); apud Medeiros, 2014-2015, fig.31. 

Figura 21a: Planta das cetárias e armazéns da Quinta de Marim, em Olhão (adaptado de Silva et al., 1992); apud Medeiros, 2014- 2015, fig.32. 

§ 22 Conjunto de Cetárias de Tavira:

Próximo do cais de Balsa, na Praia de Pedras d’El Rei (21) há uma referência a uma villa onde existiria um forno e cetárias (Viegas, 2009). Além disso, dentro do território de Balsa (22) há duas oficinas identificadas. Uma na Torre d’Aires e outra junto à foz da Ribeira das Antas, acompanhando o paredão do cais, na margem esquerda e com parte de suas cetárias submersas (Medeiros, 2014-2015:134). 

Figura 22: Planta da fábrica de Torre d’Aires em 1977 (segundo Silva, 2007); apud Medeiros, 2014-2015, fig.32. 

§ 23 Conjunto de Cetárias de Vila Real de Santo António:

Talvez os vestígios encontrados na Quinta do Muro (23) e em Cacela (24) integrassem o mesmo complexo produtor. Em Cacela Velha foram encontrados 3 tanques de salga mal conservados e recobertos de signinum. A erosão causou o desaparecimento desses tanques, avistados no século XIX e desaparecidos no século XX. Não há informações capazes de confirmar os achados de Quinta do Muro; apenas relatórios antigos e sem referências precisas de sua localização. 

Figura 23: Quinta do Muro e Cacela (Fabião, 2017d). 

§24 Conjunto de Cetárias de São Bartolomeu de Castro Marim26:

Em 1965 um complexo “industrial” foi descoberto em Praia Verde, em consequência da ação de marés vivas. Fabião (2008) comenta que um forno e as cetárias ali existentes já eram conhecidas há um século. O sítio teria sido ocupado entre os séculos III e IV e reocupado posteriormente, na Idade Média. 

26 Esse conjunto não está descrito pelo mapa apresentado por Viegas, 2011, fig.63 (apud Bombico, 2012: 123).  

CAPÍTULO III – PERSPETIVAS DE UMA DINÂMICA ECONÓMICA

Desde o século XIX a academia ocupa-se de compreender o modelo económico antigo. Duas grandes correntes formaram-se em decorrência desse debate. A chamada corrente “Clássica” era influenciada pelo modelo económico proposto por Adam Smith (séc. XVIII) e estabelecia que toda e qualquer atividade económica desenvolvida em época anterior ao estabelecimento do mercantilismo moderno era classificada como “não-capitalista” (Carreras Monfort, 2000: 22). 

A segunda corrente, dita “Histórica” era fundamentada por diversos teóricos alemães do século XIX e argumentava que variáveis geográficas e cronológicas tinham de ser levadas em consideração. Propunha-se ainda uma diferenciação entre “economia doméstica” e “economia mundial” (Carreras Monfort, 2000: 23). 

O debate prosseguiu pelo século XX, agora influenciado pelas obras de Sombart e Weber, que discutiam o papel desempenhado pela relação entre campo e cidade na economia antiga (Bruhns, 1985: 259). 

Em linhas gerais, Sombart estabeleceu a premissa de que as cidades eram centros consumidores por excelência. A cidade, enquanto centro de consumo e comércio, apresentava-se como antítese do campo, que era compelido a sustentar a população urbana mediante tributação sobre a sua produção, estimulando a criação sistemática de excedentes (Bruhns, 1985: 259). 

Weber tentou dialogar com a dicotomia entre as abordagens “Clássica” e “Histórica”. O seu modelo propõe que havia um modelo particular de economia de mercado no mundo antigo, pontual a certos períodos e regiões. Todavia, esse modelo antigo não deveria ser entendido como um espécie de “pré-capitalismo contemporâneo. Assim, a economia romana seria “não-capitalista” no sentido de não possuir estruturas sociais, políticas e económicas bem desenvolvidas” (Carreras Monfort, 2000: 24). 

O conflito entre as teorias de Sombart e Weber são mais claramente percebidas no tocante ao suposto antagonismo entre campo e cidade. As cidades também eram centros de produção, embora em menor escala. Além disso, a demanda criada pela cidade poderia ser suprida pelo campo em comum-acordo (Bruhns, 1985: 262). 

Ao longo do século XX duas grandes correntes desenvolverão essas duas abordagens teóricas, acrescentando ao debate a definição do conceito de mercado e o papel da agricultura e comércio na sociedade romana. 

Rostovtzeff, fundador da corrente dita “Moderna”, propôs uma perceção evolucionista da economia romana. Segundo esse abordagem, a economia romana experimentava os primeiros passos rumo à uma economia capitalista de facto. O mercado seria então perfeitamente abrangente e interdependente, tendo o comércio de longa-distância recebido financiamento de elites privadas compostas por uma espécie de “classe média” de comerciantes e artesãos. O comércio anfórico e de terra sigillata seriam amostras da vitalidade dessa iniciativa privada (Rostovtzeff, 1926). 

Finley, fundador da corrente dita “Primitiva” tenta aprofundar a teoria weberiana e concorda com a definição da cidade como um centro de consumo. Todavia inova ao propor a existência não de um mercado único, mas sim uma rede de pequenos mercados locais e autónomos. O comércio de longo-curso era entendido então como algo dispendioso demais e inviabilizado também pelo baixo poder aquisitivo da plebe urbana (Finley, 1973). 

A escola gramsciana italiana tentou promover um diálogo com as premissas dessas duas correntes. Uma análise do modo de produção escravo derruba a visão primitivista que trata a economia pré-capitalista como “irracional”. O império romano apresenta uma clara evolução do modelo de produção: o formato familiar, com o predomínio de pequenas estruturas produtivas agrícolas artesanais dá lugar a um sistema largamente esclavagista conforme cresce o império. Essa economia também estava suscetível a aplicação de conceitos operativos, como “crescimento económico” e “crise” (Molina Vidal, 1997: 60). 

Recentemente, autores de uma historiografia maioritariamente anglófona aperfeiçoaram a teoria de Finley. O debate foi atualizado pela abordagem de questões referentes aos mecanismos de distribuição e reciprocidade fortemente controlados pelo Estado. Autores como Hopkins, Nicolet e Duncan-Jones combinam elementos das correntes “Moderna” e “Primitivista” e estabelecem que a economia romana era uma economia de mercado , embora mais simples do que a contraparte moderna. Esse debate estabeleceu consensualmente que a economia romana era regional e organizada em micro-circuitos locais (De Blois, Pleket, Rich, 2002: xii). 

Compreende-se que a economia de mercado romana possuía mecanismos de controlo de preços pelo Estado. Indícios desse controlo podem ser identificados através do apelo de Tibério ao senado para que os preços do mercado fossem controlados (Carreras Monfort 2000: 38); ou através do Édito de Domiciano, que obrigou as províncias a arrancarem a metade das suas vinhas e comprometeu a Itália a não plantar mais nenhuma. Tratam-se de medidas claramente protecionistas (Pereira Menaut, 1987). 

Finley (1973) propõe que a economia romana seria totalmente baseada num modelo rural, centrada em pequenos centros metropolitanos e compartimentada em regiões. Segundo esse paradigma, o campo provia as necessidades da cidade mais próxima. O circuito comercial seria, portanto, restrito às necessidades regionais. Como então explicar a realidade das exportações? 

Segundo uma abordagem primitivista, os proprietários de terras não concebiam o lucro como o principal motivador dos seus empreendimentos. Desse modo, as suas vendas não observariam flutuações de preços de mercado na esfera regional, nem havia a preocupação de maximizar o lucro nos esforços de longo-prazo. 

A visão primitivista estabelecia ainda que um empreendimento como o transporte e o comércio de longa-distância tenderia a ser inequivocamente atribuído à iniciativa estatal, visando a movimentação de bens das províncias para a capital imperial. Logo, a articulação do Estado com a sociedade ocorria através da mediação de mecanismos como a tributação e serviços públicos. Essa taxação pública podia ser realizada em dinheiro ou espécie, através das requisições feitas para o aprovisionamento regular da cidade de Roma (annona civilis) ou de guarnições e frota naval (annona militaris). 

Por outro lado, sabe-se que existiam empreendedores privados, seguramente. Vinho e preparados de peixe eram essencialmente cargas privadas, ao passo que cereais, azeite e o vinho africano de finais do século III, IV e V, seriam cargas públicas. 

O Estado então agia como agente redistribuidor de bens e alimentos, seja para os cidadãos de Roma (annona civilis) ou para o abastecimento de tropas estacionadas em fronteiras e limens (annona militaris). Embora a atividade do Preaefectus Annonae só esteja bem documentada a partir do séc. III, o cargo foi estabelecido por Augusto entre os anos 8 – 14 d.C., o que justifica a grande concentração de ânforas olearias da Bética em Roma nos séculos I, II e III (Carreras Monfort, 2000: 217). 

III. 1. A “Conectividade” Regional e o Comércio de Longa-Distância

O modelo tradicional de Finley não nega a conexão entre núcleos consumidores/comerciais e regiões e povoações vizinhas. Normalmente, no ocidente do império, os maiores centros urbanos provinciais dificilmente ultrapassavam a média de 10-20 mil habitantes. Sabe-se que o comércio local era praticado de forma livre e organizado em deambulatores, ou seja, tabernae, nundinae and macella (Quaresma, 2003 :19). 

A corrente primitivista admite que naqueles centros haveria um comércio voltado para suprir a demanda local e também obter lucro a longo-prazo. Por outro lado, os centros populacionais menores estariam restritos à obtenção do sustento no seu próprio entorno. 

A coesão do império era promovida pela administração, mas não se pode afirmar a existência de uma integração económica entre as províncias, segundo a proposta defendida por Finley de “mercados inter-dependentes”, uma vez que não há comprovação de um fluxo regular de bens de consumo e de luxo entre as províncias (De Blois, Pleket, Rich, 2002: xiii). 

No lugar desse modelo, propõe-se a existência de economias “micro-regionais”, ou seja, economias locais com alguma abertura pontual de “conectividade” (Horden, Purcel: 2000). Segundo esse “modelo”, as micro-economias possuem ritmo e estrutura próprias e estão, a priori, voltadas para o atendimento de necessidades locais. Apenas em momentos específicos esses mercados encontram uma demanda maior para os seus bens, e daí ocorreria uma conexão entre as respetivas regiões. 

Pode-se afirmar, como uma regra geral, que o comércio inter-regional não era uma prioridade ou que constituiria mesmo numa atividade relevante. O comércio inter-regional seria consequência da intervenção administrativa romana, voltada para o abastecimento estratégico, mas também articulado com alguma iniciativa privada. Uma exceção óbvia a essa regra geral são os grandes centros urbanos e comerciais orientais, como, por exemplo, Tiro, Biblos e Hierápolis. Aqueles grandes produtores de têxteis de luxo não precisavam de incentivos estatais para produzirem em vastíssima quantidade, nem para escoarem a sua produção por todo o império. 

Todavia, a arqueologia demonstra que as províncias experimentavam realidades distintas. A Lusitânia e a Bética, tal como a Síria, partilhavam de uma cultura romana imperial comum. Aquelas províncias possuíam toda uma estrutura comum de edifícios públicos, estradas pavimentadas, altares para o culto imperial e a cultura greco-romana era, grosso modo, valorizada pelas elites provinciais. Mesmo assim, as suas realidades de conectividade regional constituem universos diferentes. 

Ainda não existem fontes suficientes para uma análise quantitativa e qualitativa da importância do comércio regional no cenário da atividade económica de longa-distância. Áreas como a Bética-Roma-Gália possuíam um comércio regional regular. A questão do aprovisionamento das legiões estacionadas no limens germanicus demandava o fluxo constante de alimentos e de bens. A demanda externa favoreceu o desenvolvimento de toda uma estrutura logística para facilitar os transportes de longa-distância nesse circuito de “conectividade”. 

De faco, o sul da Hispânia tornou-se num grande polo de desenvolvimento económico ao combinar características de sistemas de conectividade comercial local, regional e de longa-distância. Neste sentido, o caso da Bética é emblemático para o ocidente do império, posto que o seu desenvolvimento estava diretamente vinculado ao abastecimento anonário de Roma e das forças armadas. 

A prosperidade dessas “áreas de alimentação” (Hopkins: 1995-1996: 58, 60, 63; Pleket, 1998: 61) de Roma também deriva do facto de que o transporte de carga anonária era um serviço subvencionado pelo Estado. Roma e o seu poderio militar eram grandes consumidores dos bens e alimentos enviados pelos governadores provinciais. Porém, comerciantes livres também eram atraídos para a cidade e navios anonários também podiam transportar esses passageiros independentes e/ou a sua carga. 

Há referências epigráficas de que domini privados também poderiam assumir a tarefa de distribuição da sua própria produção (Digesta VIII, 4. 13), mas a estrutura logística de produção e distribuição por todo o império exigia a coparticipação de

negotiatores ou navicularii que podiam, ou não, também ser produtores. Daí assume-se que corporações controlavam, hegemónicas, a função de distribuição dos produtos lançados nos circuitos comerciais de longa-distância (Garcia Vargas, 2006: 543ff; Bernardes, 2015: 61). 

Aparentemente, as ânforas lusitanas alcançam o porto sírio de Beirute entre os séculos II e IV. Nos séculos III e IV, tal como as béticas, elas possuem uma presença menor, havendo, contudo, algum destaque para as ânforas de tipo Keay XVI (Tab. 3). Segue-se, aparentemente, o processo de declínio e desaparecimento das ânforas lusitanas daquele mercado, no século V. 

Digo “aparentemente”, porque há uma falha na argumentação dominante entre autores anglófonos no tocante à incapacidade de distinção entre ânforas produzidas na Bética e as lusitanas (Quaresma, 2012: 294). De facto, as ânforas lusitanas “aparentemente” desaparecem do mercado mediterrâneo oriental a partir de meados do século III, embora uma produção de origem bética continue a ser diagnosticada até o início do século V (Reynolds, 2010: 42). 

Bernardes (2015: 61) sugere que a atividade itinerante dos mercatores béticos pode estar relacionada com o fenómeno de dispersão de ânforas béticas (tipo Keay XVI) em grande quantidade nos centros produtores lusitanos de Troia (Figs. 12 – 12ª), Ilha do Pessegueiro (Fig. 15) e Quinta de Marim (Figs. 21 – 21ª). Seria correto então propor que as ânforas béticas (Beltrán II e Keay XVI) poderiam levar também os preparados de peixe lusitanos. 

De facto, o naufrágio de Cabrera III (257 d.C.) possui ânforas piscícolas béticas com a inscrição IVNIORVN, que também pode ser atestada em Quinta de Marim (Silva et. al., 1992; Bernardes, 2015: 61). Portanto, há uma possibilidade de que parte da produção bética tenha origem na Lusitânia (Mayet, Schmitt, Silva, 1996; Mayet, Schmitt, 1997; Étienne, Mayet, 2002: 104). 

III. 1. 1. Sobre a Logística da Produção Lusitana

Na Lusitânia, a data estimada para o princípio da produção de preparados de peixe é o segundo quartel do século I d.C., tendo as suas primeiras oficinas implantadas nos estuários do Tejo e do Sado. A organização das primeiras unidades de produção orbitava um centro urbano-portuário como sede administrativa (Salacia and Caetobriga no Sado; Olisipo, no Tejo). 

A produção dos preparados de peixe terá ocorrido em dois momentos distintos, com grandezas e estratégias económicas específicas. Num primeiro momento, existiram pequenas unidades produtoras. Essas unidades recorriam a olarias locais para o envase e transporte de sua produção (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1987: 236-237). Posteriormente, com o aumento da produção, foi preciso mover as olarias para o interior dos estuários (Fabião, 2009: 570). 

Embora as grandes áreas dos estuários do Tejo e do Sado produzissem contentores para o envase e transporte da sua produção, essa realidade não se verificava no litoral algarvio, que recorria à importação de ânforas béticas para complementar a logística das suas olarias. Há, portanto, realidades sociais e económicas distintas e modelos distintos de exploração implementados concomitantemente (Fabião, 2009: 570). 

Nesse aspecto, o que se deteta no Algarve é uma realidade distinta, onde não se obteve ainda um grau de exploração satisfatório do seu potencial arqueológico. Muitos dos centros hipotéticos propostos no litoral algarvio (Tab. 2) sugerem que o sul da província teria exercido um papel mais relevante do que aquele que se lhe atribui atualmente. Sabe-se que a grande área do litoral algarvio ganhou maior notoriedade nos séculos III – V, no seguimento do declínio da produção bética. 

Na grande área do litoral algarvio, as numerosas villae que teriam explorado recursos marítimos em pequena escala constituem ainda um trabalho em progresso, carecendo de informações em quantidades capazes de enriquecer o debate. Para agravar o quadro, a erosão costeira destruiu uma porção considerável dos centros produtores do litoral algarvio. 

Há uma questão polémica a respeito da exploração de produtos à base de peixe por centros rurais lusitanos. Um quadro de integração de rotas terrestres e fluviais já foi proposto por Edmonson (1987), sugerindo a existência de um modelo rural de exploração dos recursos marinhos, onde enclaves rurais, inspirados no modelo de produção das villae complementavam a sua produção agrícola com a exploração de recursos marítimos. 

A proposta desse sistema presumia a existência de algum suporte logístico mútuo entre os enclaves rurais e os centros urbanos. Fabião (1993-1994, 1994) refuta essa hipótese enquanto não se conhecer plenamente toda a logística terrestre e marítima da província. 

Contudo, Blot (2003) demonstrou a existência de pequenos centros portuários lusitanos, como Cerro de Vila (Loulé), que podem proporcionar pontos de comunicação entre o interior e o litoral. Porém, a existência (ainda que pontual) de centros produtores de preparados de peixe inspirados no modelo de exploração rural das villae não equivale a determinar o seu impacto e relevância na economia da província. Entretanto, a proposta de Edmonson pode ser revisitada à luz dos novos dados arqueológicos disponíveis e retornar à pauta académica para o debate. 

Atualmente, a realidade lusitana informa pouco a respeito da logística da produção lusitana, isto é: o perfil da mão-de-obra empregada, da organização do trabalho, ou mesmo da periodicidade e ritmos da pesca e navegações, que se supõem sazonais (Fabião, 2009b: 559). 

Blázquez observa que o sistema de construção de depósitos das oficinas da Bética assemelha-se ao modelo adotado em Lixus, no litoral marroquino (1978: 187). Entretanto, há paralelos possíveis de serem explorados entre a Bética e o modelo adotado no extremo sul da Lusitânia. 

Na Bética, sabe-se que os centros produtores situados em villae eram servidos por uma rede de navegação fluvial que escoava a importante produção agrícola. Bernal Casasola (2009) observa que na Bética os centros urbanos recebiam suporte logístico de núcleos semi-urbanos periféricos. Villae similares a Cerro de Vila, com áreas residenciais decoradas artisticamente, e contando com embarcadouros, termas, necrópoles e áreas “industriais” servidas por aquedutos estão presentes na costa mediterrânea de Málaga (Manilva, Bem Almádena, Fuengirola, Torrox), na parte oriental da província. Na parte ocidental o quadro repete-se em Getares (Algeciras), Trafalgar (Barbate) e Chipiona; que podiam exercer apoio logístico aos seus respetivos centros urbanos de Gades, Onoba and Balsa. 

Blázquez (1978: 157) descreve como a administração romana criara ali uma rede de estações portuárias no Guadalquivir, suprindo villae, olarias (fabricantes de ânforas) e as cidades de Brenes (porto próximo a Illipa Magna), Tociña (Portus Oduciensis), Guadajoz (Portus Carmonensis) e Palure. 

O volume de ânforas dispersas na beira do Guadalquivir sugere que existiam ainda muitos portos secundários na área. Além disso, as olarias eram servidas de caminhos terrestres diversos, que sempre convergiam para o rio. Blásquez observa que a rica variedade de marcas de produtores nas ânforas de azeite aponta para uma independência entre os centros oleiros e os proprietários rurais (Blásquez, 1978: 158). 

Étienne e Le Roux sugerem que o grande número de nomes (posição beta dos tituli picti) diferentes identificando as ânforas de azeite bético implicam num grande número de distribuidores e, consequentemente, apontaria para um modelo de exploração familiar. Nesse caso, os nomes indicariam proprietários rurais para a execução das cobranças aduaneiras de taxação (1972: 622ff.). 

Por fim, Blásquez (1978: 158) observa um padrão de integração de vias fluviais e terrestres, conectando os rios Genil e Guadalquivir à Via Augusta, formando um corredor para Hispalis e conectando os três conventus. Ponsich (1974: 280ff.) já havia proposto que a economia agrária regional e as relações entre os conventes de Hispalis, Astigi and Corduba dependiam das rotas fluviais da província. 

Além dos possíveis paralelos existentes na logística do escoamento da produção e da comunicação entre as suas regiões, a Bética e a Lusitânia também partilham de semelhanças na organização e arquitetura das oficinas de transformação de peixe. Ponsich (1971: 238, 258ff., 282ff., 287, 290ff.) defende que a Bética exercia uma influência económica sobre o litoral atlântico marroquino e o litoral sul algarvio. 

Haveria então uma continuidade ou restauração do chamado “Círculo del Estrecho” durante o período imperial romano. O autor demonstrou que as elites mauritanas favoreciam os produtos béticos, como a terra sigillata, o azeite e o garum gaditano. Blásquez afirma que todas as oficinas do Estreito, sejam béticas ou mauritanas, estavam alinhadas numa grande corporação controlada por gaditanos (1978: 177-178). 

Terá então existido uma societas (no sentido de organização empresarial totalmente privada) bética-mauritana para a exploração de recursos, incluindo o garum? Haveria uma centralização dos produtos nas mãos de socii (societates)? Como essa estrutura afetaria a logística da produção lusitana? 

A tendência geral para a redução das dimensões dos tanques do Baixo Império na Hispânia, bem como a gradual preferência por peixes de menores dimensões, implicam ainda na transformação do modelo socioeconómico da exploração dos preparados de peixe, desde a sua captura ao processamento dos produtos. 

Ainda não se chegou a um consenso acerca do fenómeno de estreitamento dos bordos de alguns tipos anfóricos tardios (Alm. 51c e 51 a-b) a partir do século III. Assume-se, em linhas gerais, que este fenómeno possa ter como motivador principal a tipologia predominante do produto envasado (Garcia Vargas, 2006: 537 – 539; Garcia Vargas, Bernal Casasola, 2009:143 -144). 

III. 2. Transformações Económicas e a Produção dos Preparados de Peixe Lusitanos

Infelizmente, dispomos de poucos dados arqueológicos acerca da primeira fase da produção dos preparados de peixe na Lusitânia, uma vez que, as estratigrafias pré-Cláudias (fases I e II) são, geralmente, “palimpsestadas” pela segunda fase. O período denominado Pax Romana, de 27 a.C. a 180 d.C., foi particularmente favorável ao desenvolvimento económico e ao reforço da romanização das províncias. Sabe-se que entre os séculos I e II o hallec, produto mais líquido, tende a substituir o garum, mais encorpado, em popularidade. Uma consequência da vulgarização do consumo dos preparados de peixe pelo império (Bernardes, 2015: 57). 

Segundo Duncan-Jones (1974) o período que compreende os séculos I e II teria testemunhado um forte crescimento do comércio inter-regional, estimulado primariamente pela intervenção estatal (taxações). Hopkins (1980) observa como os impostos em dinheiro teriam possibilitado a criação de redes comerciais complexas até o ano 200 d.C., uma vez que as províncias taxadas eram obrigadas a pagar as suas taxas devidas em moeda e espécie, sobretudo cereais e azeite (annona). 

Entretanto, a conjuntura da economia do século II são marcadas por elementos sinalizadores de crise, como a desvalorização monetária iniciada em ca. 100 d.C., e a quebra demográfica provocada pela chamada “Praga de Antonino” (ca. 165-180 d.C.) (Quaresma, 2012). 

Uma análise estratigráfica demonstra que produção de preparados de peixe diminuiu no final do século II. Em meados do século II há indícios de uma recessão em curso, que afetará a produção dos preparados de peixe. No vale do Gadalquivir ocorre nessa época a retração de áreas portuárias e artesanais. Em Hispalis, esses espaços são convertidos em núcleos habitacionais (Garcia Vargas, 2007: 353). 

Na Lusitania, na grande área da Costa Alentejana, a unidade de produção da Ilha do Pessegueiro apresenta na sua estratigrafia (cortes A, C e D’) indícios de que a crise já surtia efeito no terceiro quartel do século II, mantendo-se letárgico até meados do século III (Tavares da Silva, Soares, 1993). Em Pinheiro, é possível que as incursões dos Mauri tenham atuado como agravante para o declínio da produção (Mayet, Silva, 1998). 

Aparentemente, o comércio fluiu sem complicações até ca. 250 d.C., quando então se deteta uma fase de recessão que duraria até ca. 300 d.C. Entre 270-275 d.C. seguem-se alterações no sistema monetário. O antoninianus substitui o denarius como moeda forte (de referência) e a sua sobre-emissão provoca um rápido processo de desvalorização (Jones, 1953: 196). Essa inflação pode ser percebida através da documentação sobre a subida dos preços da terra e do trigo (Tab. 4). Os preços da terra parecem estáveis até o século III. Por outro lado, se em 260 d.C. os preços subiram 4,5% em relação aos praticados nos tempos de Augusto, entre 260 e 301 d.C. eles disparam cerca de 100 vezes no Egito. Entre 301 e ca.338 d.C. eles sobem ainda 5 mil vezes, num claro indicativo de hiperinflação. 

A segunda metade do século III foi marcada por uma inflação aparentemente provocada pela alta do preço do trigo. Nesse contexto de crise económica, Aureliano decreta (S.H.A., Aurelianus, 35.2; 48.1) a distribuição gratuita de 5 libras de carne de porco e vinho barato para os cidadãos de Roma (Reynolds, 1995: 107). Por volta do ano 250 d.C. a estrutura da annona sofreu transformações, com a transferência de competências do Praefectus Annonae para os prefeitos pretorianos (Garcia Vargas, 1998: 247). 

Esse quadro de crise tem continuidade ao longo da primeira metade do século IV. Diocleciano lançou uma série de medidas de longo-prazo para superar a crise económica. Sob a Tetrarquia foi promovida uma reorganização das 47 províncias, redefinidas em 100 novas unidades administrativas, renovando a rede viária e a logística comercial (Pieri, 2005: 146). 

O Édito de Preços de Diocleciano, de 301 d.C. visava controlar os valores de mercado e tabelar preços. O Édito inclui os preparados de peixe (liquamen) no capítulo relativo aos olei, juntamente com o mel e o sal (Tab.5). 

Há uma problematização interessante sobre essa temática. Quaresma (2012) questiona sobre a possibilidade de um enquadramento jurídico do liquamen na categoria dos óleos um indício da reformulação anonária. O liquamen terá sido incluído na categoria de bens de distribuição estatal? 

O emprego do termo “liquamen” pelo Édito de Diocleciano é um indicativo da proeminência dos subprodutos de natureza líquida, mais baratos. O liquamen tinha um preço mínimo relativamente baixo, variando entre 12 e 16 denarii, o que o tornava um produto competitivo nos mercados de maior qualidade. O aumento da demanda pode estar relacionado ao aumento da popularidade dos peixes menores, mais baratos (Quaresma, 2012: 276). 

Durante o Baixo Império, observa-se uma tendência na Hispânia no sentido de substituírem as salgas de atum, matéria-prima escassa já no século I, por peixes menores. As informações obtidas a partir de análises laboratoriais fornecem dados imprescindíveis para a compreensão das técnicas de conserva da antiguidade. Na península Ibérica (Garcia Vargas, Bernal Casasola, 2009) indicam que a produção dos preparados de peixe incluía uma vasta gama de produtos, desde o valorizado atum, em pedaços, até as mais simples clupeidae (incluindo a sardinha, a sardinela e a anchova) e as sparidae (incluindo a dourada e o pargo). 

Cabe ressaltar que foram identificados restos de espinhas de sardinhas em diversas ânforas lusitanas provenientes de naufrágios no Mediterrâneo, como em Rendello (Sicília), Catalans (Marselha) e Sud-Lavezzi (Córsega) (Étienne, Mayet, 2002: 202-207). 

De facto, a sardinha é o principal componente dos vestígios analisados nos tanques de salga das oficinas lusitanas, nos contextos romanos dos séculos III – V d.C.: “Casa do Governador” (Figs. 5 – 6), “Rua dos Correeiros” (Fig. 2), “Mandarim Chinês” (Fig. 2), além das oficinas I e II de Troia (Figs. 12 – 12ª), “Travessa do Frei Gaspar” (Fig. 8ª), “Ilha do Pessegueiro” (Fig. 15) e a “Quinta de Marim” (Figs. 21 – 21ª), em Olhão (Tavares da Silva, Soares, 1993; Desse-Berset, Desse, 2000; Assis, Amaro, 2006). 

Segundo Reynolds (2010: 40), é possível que a produção ibérica se tenha voltado para a salga de peixes menores durante a fase final da administração romana, incluindo a Antiguidade Tardia. Para o autor, os grandes peixes em posta, ou mesmo inteiros, consistiriam numa produção exclusiva do Alto Império. Bombico (2017: 131) contesta essa posição argumentando que no Baixo Império ainda se produzem ânforas de bocas largas e corpo troncocónicos (Almagro 50 e Keay XVI e Sado 1 = Keay LXXVIII, no caso da Lusitânia), o que sugere uma continuidade de transporte de peixe inteiro. 

Apesar do Édito de Diocleciano ter sido revogado por Constantino, este deu continuidade à política anterior de contenção de gastos do erário público (Pirei, 2005: 147). Sob o seu principado, aumentou o controlo estatal sobre o mercado e o tráfego comercial. A atividade dos corpora naviculariorum torna-se rei publicae causa. Eles passam a ser mais integrados, mas ainda desfrutam de imunidade, em continuidade com a política de privilégios conferidos pelos Severos (Perea Yébenes, 2003: 85). 

Em 331- 333 d.C. os prefeitos pretorianos passam a controlar a circulação anonária, ao passo que a sua distribuição é delegada ao Praefectus Urbs. A prefeitura anonária também perde a sua autonomia financeira (Perea Yébenes, 2003: 93 – 94).  

No século IV as ânforas béticas e lusitanas do tipo Almagro 50 estão presentes na Itália; as Almagro 51, são encontradas na Sardenha até o século V (Garcia Vargas, 1998: 249). A partir do início do século V a retração do comércio de longa-distância dos preparados de peixe béticos e lusitanos pode ser verificada pelos dados anfóricos em diversos pontos do Mediterrâneo (Reynolds, 2005: 385), tal como verificado no caso de Beirute (Tab. 3). 

Em Arles e Narbonne os preparados de peixe béticos e lusitanos estão presentes em quantidades equivalentes. Contudo, em Hispalis, na própria Bética, os preparados de peixe lusitanos correspondem a cerca de 50% das importações (Reynolds, 2005: 385; Garcia Vargas, 2007; Quaresma, 2012: 295, 394). 

A partir da segunda metade do século V muitos centros produtores de preparados de peixe são encerrados ou drasticamente reduzidos na Lusitânia. Também se detecta um decréscimo significativo na importação de terra sigillata em várias cidades (Quaresma, 2012: 276). Centros urbanos, como Ammaia e Chãos Salgados, e grandes villae, como São Cucufate, encerram a sua ocupação aproximadamente nessa época. 

Possivelmente, o avanço meridional dos suevos durante a década de 420 d.C pode ter exercido uma influência significativa sobre esse fenómeno. O último vicarius hispaniae, Maurocello, foi nomeado em 418 d.C., mas já não há qualquer menção a ele após 420 d.C., o que sugere um enfraquecimento da autoridade imperial na região (Diaz, 1992-1993: 298-300). 

Há alguns indícios arqueológicos (armazéns Sommer) de que a margem esquerda do Tejo ainda produziu ânforas piscícolas em quantidades tímidas até inícios do século VI (Quaresma, 2012: 297). Sabe-se que o complexo da Casa do Governador, que tinha originalmente 17 cetárias manteve-se em funcionamento precário até o final do século V, com apenas 2 tanques funcionais (Filipe, Fabião: 2006-2007). 

Um abandono sistemático de cetárias ocorre em Lisboa entre o final do século V e o início do século VI (Assis, Amaro, 2006), Setúbal, Troia e Quinta de Marim (Desse-Berset, Desse, 2000: 86-91). 

No estuário do Sado, em Comenda, a produção anfórica piscícola foi encerrada no primeiro terço do século VI, havendo ainda algum material escasso na área até a metade do século VI (Trindade, Diogo, 1996: 8). 

A instabilidade regional provocada pelas guerras suevo-visigóticas podem ter contribuído de forma determinante para a interrupção da produção nas grandes áreas dos estuários do Tejo e do Sado. Olisipo foi conquistada pelos suevos em 429 d.C., e pelos visigodos em 440 d.C., seguida por uma rápida troca de mãos entre 455 e 469 d.C., ficando a cidade, finalmente sob o domínio visigodo (Tranoy, 1974: 246; Diaz, 1993-1994). 

Contrariamente, a grande área do Algarve tem a continuação da sua produção atestada até inícios do século VI (Lagos, Travessa Silva Lopes) e, possivelmente, também em Cerro de Vila 27 (Diogo, 2001: 110; Ramos, Almeida, Laço, 2006: 93). 

27 A presença de materiais de século VI ou mesmo VII, estão associados a níveis de circulação posteriores ao abandono, cujos dados não ultrapassam os in do V.  

Oficialmente, estipula-se que a produção dos preparados lusitanos teve fim na primeira metade do século V. Todavia, o Algarve permaneceu produtivo, ainda que sob uma nova reconfiguração comercial e logística, até inícios do século VI (Lagos). 

Em um determinado momento, entre os séculos V e VI, os centros produtores já não se articulavam de modo eficiente com os seus meios de distribuição. A redução da capacidade produtiva provocou o abandono de cetárias e, consequentemente, os centros produtores ainda ativos no início da Antiguidade Tardia sofreram uma queda significativa da sua atividade, tal como se constata tanto em Lagos, na Lusitânia (Ramos, Almeida, Laço, 2006) como em Algeciras, na Bética (Bernal Casasola, 2008). 

O desaparecimento de villae e centros urbanos impactou o mercado consumidor de preparados de peixe, que precisou se reajustar para uma demanda drasticamente menor. O século VI oferece testemunhos literários indiretos da reminiscência de um comércio importador de preparados de peixe. 

Em De observatione ciborum, Anthimus, o médico bizantino da corte do rei Teodorico, proíbe o consumo de liquamen. Na Historia Francorum, o bispo Gregório de Tours atesta a continuidade das importações de liquamen através do porto de Marselha (IV, 43) (Curtis, 1991: 184-185). 

Contudo, o declínio da produção dos preparados de peixe também reflete um importante aspeto cultural, característico da transformação do mundo mediterrâneo num mundo germânico. A salga de peixe e os molhos derivados desse processo tinham por objetivo a conservação do peixe e a substituição do uso do sal na culinária. A tradição germânica conservava o peixe seco ou fumado e utilizava o sal diretamente no preparo dos alimentos. 

Além disso, há uma componente religiosa envolvida no processo de transformação cultural ocorrida na Antiguidade Tardia, de orientação cristã. São Pacómio (séc. IV) e São Jerônimo (séc. V) associam os preparados de peixe à gula, e condenam o seu consumo nos feriados religiosos e outros períodos de abstinência. Por outro lado, o peixe salgado ou seco não sofre essa interdição alimentar (Curtis, 1991: 35, n.29, 136, n.120; Bernardes, 2015: 64). 

Neste sentido é importante ter em mente que desde finais do século II existiu uma guerra intelectual e ideológica entre pensadores do mundo cristão e as chamadas “heresias pagãs”, tais como os cultos a Mitra, Isis e Cibele. Clemente de Alexandria, em suas “Exortações aos Gregos” (II, 20p) estabelece uma antítese moral entre “Grego” e “Cristão” que é prontamente reproduzida pela elite intelectual cristã. 

Essa interdição religiosa contra o liquamen reflete perfeitamente essa aversão cristã ao alegado escandaloso modus vivendi pagão, sistematicamente atacado pela patrística até o final do século V (Gurgel Pereira, 2011: 150, n. 348-349). 

Logo, a transição cultural do mundo mediterrâneo para um mundo germânico (romanizado) e mais intensamente cristão não pode ser reduzida simplesmente a uma traumática conquista militar “bárbara”. 

Há todo um lento processo de transformações comportamentais que incluíam os hábitos gastronómicos e que são variáveis importantes na compreensão da fase final da produção dos preparados de peixe. 

III. 3. (Re-)Organização Urbana e de Centros de Produção

Na Hispânia ocorreu um processo de modificação arquitetónica radical entre o período Clássico e a Antiguidade Tardia. Processos graduais de transformação, combinados com inovações súbitas caracterizam o urbanismo hispânico nessa época. 

Todavia, há ainda pouca informação arqueológica para analisar o processo de nova conceptualização do espaço urbano durante essa transição para o mundo medieval. Em linhas gerais, a concentração populacional da cidade diminui. A desestruturação urbana pode ser notada, mas há diferentes possibilidades para explicá-la. 

Tanto o abandono como a transformação urbanística ocorrem por toda a península. 

Na província da Tarraconensis, Baetulo fora construída no século I a.C., experimentou uma fase de prosperidade comercial, graças à integração às rotas mediterrâneas e à produção vinícola (Comas et al., 1994). Porém, no século II d.C. a cidade já apresenta o abandono de algumas ruas e o colapso do seu sistema de coletores públicos, embora a cidade tenha permanecido habitada até o final do século IV d.C. (Padrós Martí, 1999). 

Se em Baetulo ocorre uma readaptação urbanística, surge uma nova em Emporiae, onde ocorrera, no século II, um processo de reassentamento populacional. Carthago Nova apresenta o abandono de edifícios públicos já no século II (Ramallo Asensio, 2000: 587-591). Tarraco experimentou o abandono de população intramuros, e de uma parte considerável das suas domes, entre os séculos III-IV (Marcias Solé, 2000: 261). 

Embora o fenómeno de abandono ou reconfiguração urbanística possa ser diagnosticado precocemente, ainda no século II, é durante o século IV que esse processo terá maior intensidade. 

Emerita Augusta, a capital lusitana, terá uma ocupação privada dos seus pórticos ao longo da Antiguidade Tardia. Essa privatização do espaço público também é um fenómeno peninsular e inclui a construção de novas estruturas em plena rua por iniciativas dos proprietários das domes e, por vezes, o traçado das vias é cortado (Alba Calzado, 2000: 291). 

Outros exemplos do século IV podem ser verificados na Galaecia, em Lucus mas já eram conhecidos na Tarraconensis, no século III em Barcino e, no século II, em 

Baetulo and Emporiae. Contudo, em Valentia, o processo só tem início na Antiguidade Tardia (Gurt Esparraguera, 2000-2001: 447). 

A transformação de edifícios públicos também integra esse fenómeno de transformação urbanístico. O teatro de Malaca, na Bética, converteu-se num centro para salgas de peixe (Rodríguez Oliva, 1993: 194). Em Carthago Nova, o teatro converteu-se em mercado no século V e substituído por um bairro residencial no século VI. Complexos termais foram adaptadas para a produção artesanal (Almagro Gorbea, Abascal, 1999: 148). 

O fórum de Conimbriga aparentemente funcionou normalmente até o século IV, mas atravessou todo um ciclo de destruição, espólio e reocupação no século VI. Há uma questão interessante sobre Conimbriga no tocante à sua situação no século VI. A Crónica do bispo Idácio afirma que a cidade foi destruída em consequência das guerras entre suevos e visigodos. Contudo, o registo arqueológico comprova a continuidade da cidade ao longo da Idade Média (Tranoy, 1974; De Man, 2006: 146ff). 

III. 3. 1. O Panorama Arquitetónico Lusitano

O desenvolvimento urbano da Lusitania e o subsequente aumento da presença de cidadãos romanos no território relacionam-se com a expansão de centros populacionais indígenas, agora elevados em categoria jurídica e uma nova realidade de assentamentos criados ex novo. 

Nessa última categoria incluem-se o porto de Sines, que teria iniciado a sua ocupação em meados do século I, de acordo com a datação da necrópole de Monte da Sardinha (Dias, Viegas, 1976-1977; Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1979). Uma cronologia similar é proposta para a Ilha do Pessegueiro (Tavares da Silva, Soares, 1993) e Troia (Étienne et al., 1994). 

Há pouca informação a respeito da transição estratigráfica entre a fase pré-romana e o período pós-Cláudio na Lusitânia. Aparentemente, não há grandes esforços de romanização dos centros populacionais indígenas até o período Cláudio. 

O centro indígena de Chãos Salgados, situado a ca. 17 km de Sines, foi previamente habitado, pelo menos, desde o final do século IV a.C. (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1979). 

O seu complexo termal foi erguido no final do século I d.C., período que coincide com a construção das domes ao sul do fórum e do diagnóstico do aumento de importações cerâmicas e, especificamente, do consumo de terra sigillata sudgálica (Quaresma, 2003). 

Sabe-se que as cidades lusitanas cresceram e desenvolveram-se até meados do século II. Esse período de urbanização nos séculos I e II coincide com o início da primeira fase da produção dos preparados de peixe na província (Quaresma, 2012). 

Em finais do século I, a partir do período Flávio, uma última vaga de urbanização ocorrera nessas cidades. Estruturas, como o fórum de Conimbriga, foram reformados e as suas proporções passaram a reproduzir padrões pitagóricos a partir de módulos romanos de 10 pés (2,96 m) (Correia, 2017: 19). 

Uma vez estabelecida os padrões geométricos da grelha, foi possível reconstruir as partes perdidas do fórum a partir de aplicações do princípio geométrico e de comparações com exemplares contemporâneos disponíveis, como o pórtico de Cáceres (Correia, 2017: 19). 

Sabe-se que é possível implementar essa técnica para lidar com múltiplas orientações dos muros de uma terma, distinguindo uma intervenção Flávia de subestruturas anteriores (Correia, 2017: 20). As estruturas pré-romanas ou pré-Flávias foram removidas em detrimento do novo plano hipodâmico Flávio. Do mesmo modo, a comprovação do desenvolvimento de uma rede de abastecimento hídrico implica no crescimento das interações entre a construção pública e privada, especialmente nos séculos I e II. 

Esse modelo pitagórico é aplicado também na arquitetura doméstica, posto que foi comprovada a sua aplicação numa residência de Mértola (Rafael e Lopes, 2007). Correia (2017) aplicara-o na arquitetura pública e privada de Conímbriga e, seguindo a sua metodologia, Sousa (2018) estudou uma domus em Chãos Salgados, obtendo resultados similares. 

Sousa argumenta (2018: 99) que, na realidade, no século III ainda ocorreram reformulações urbanas na Lusitânia e cita a Casa del Anfiteatro, em Emerita Augusta, como exemplo, embora a planta já se encontre mais irregular (Beltrán, 2003: 37). 

As unidades romanas adotadas para esse exercício são módulos quadrados de septem pes de largura (214,2m). Contudo, observou que em Chãos Salgados o pes canónico de 29,63 cm fora substituído por uma variante maior, de cerca de 30,6 cm. Esse fenómeno pode ser uma decorrência de falta de rigor ou por necessidades práticas de usos do espaço, ou mesmo uma consequência do processo de transposição do projeto para o terreno (Sousa, 2018: 101). 

Qual seria o resultado se esse modelo arquitetónico fosse também aplicado às oficinas de preparados de peixe? As reformulações que essas oficinas sofreram podem revelar uma rutura com a arquitetura original do edifício. 

A partir do século III, com o início da “segunda fase” da sua produção de preparados de peixe, a Lusitânia ascendeu à posição de principal produtora do império. Embora a produção tenha aumentado, algumas oficinas foram abandonadas e outras tiveram as suas dimensões reduzidas. Isto sugere uma transformação no modelo de exploração dos recursos. 

Troia (Figs. 12 – 12ª) esteve habitada desde meados do século I até, possivelmente, o final do século VI. Durante os séculos I e II o complexo teria experimentado o seu apogeu. Todavia, no final do século II ocorreu uma interrupção de atividade nas oficinas, sendo que algumas das oficinas terão sido abandonadas (Pinto, Magalhães, Brum, 2014). 

Sabe-se que durante a sua fase seguinte, o complexo foi subdividido em quatro oficinas menores (Étienne et. al, 1994; Étienne, Mayet, 1998). Não se sabe se essa redução ocorreu, por exemplo, pela ação individual de herdeiros, ou pelo loteamento do espaço para a coparticipação de múltiplos exploradores comerciais. Todavia, atesta-se uma dinâmica social e económica de grandezas arquitetónicas diferentes contrapondo escalas produtivas distintas (Tab. 1). 

As reformulações que essas oficinas sofreram podem indicar uma rutura com a arquitetura original do edifício. Um futuro estudo aprofundado da arquitetura das oficinas e das cetárias contribuirá para esse debate com informações sobre o processo de estabelecimento das oficinas e os detalhes sobre a sua vida útil. 

Nesse sentido, as subdivisões das cetárias e das oficinas podem inserir as oficinas de preparados de peixe no mesmo fenómeno arquitetónico das subdivisões proposto por Ellis (1988), que caracterizou a arquitetura do Baixo-Império e que prosseguiu na Antiguidade Tardia. 

A arquitetura e a organização dos espaços de produção nas villae lusitanas ainda são objeto de estudo em Portugal. Uma possibilidade para melhor entender a exploração de recursos marinhos em pequena escala das villae pode residir no diálogo com a antropologia, mais especificamente, com a chamada “teoria antropológica do consumo” (Miller, 1987). 

Qual seria o impacto no debate académico sobre a economia romana imperial se aquela sociedade fosse tratada como um caso particular de sociedade de consumo? 

A antropologia propõe o estudo do consumo para compreender comportamentos sociais no contexto da humanidade contemporânea. Pode-se empreender um diálogo similar para o estudo da sociedade romana, a partir de um estudo de sua cultura material e da redefinição do conceito do consumo, a partir das relações e práticas sociais que este mobiliza. 

CONCLUSÃO

A criação da indústria de preparados de peixe no século I d.C. coincide com a intensificação da romanização na Lusitânia. Não está claro se a administração romana deliberadamente criou toda uma infraestrutura com o objetivo de promover transformações económicas na província, ou se os desdobramentos económicos na Lusitânia são consequência de uma trajetória própria e autónoma. 

O litoral e estuários ricos em recursos marinhos e o clima quente e seco favoreceram o desenvolvimento de uma poderosa indústria de preparados de peixe na província. A importância estratégica dos molhos e conservas de peixe na alimentação romana justificam o investimento na exploração da pesca, do sal e dos seus subprodutos em conserva, provocando o desenvolvimento de grandes oficinas de processamento de peixe ao longo do litoral. 

A investigação arqueológica em Portugal produziu um maior volume de informação sobre os centros produtores do Tejo e Sado. Assim, a despeito da alta densidade de centros produtores localizados no Algarve, o maior volume da produção de pesca e conserva até o momento é proveniente dos estuários do Tejo e do Sado. 

O relacionamento entre os centros produtores das villae e os centros urbanos próximos precisa de uma revisão à luz de novos dados produzidos pelos estudos recentes da realidade da grande área do litoral algarvio. Nesse espírito, as interações entre a Bética e a Lusitânia no que toca à logística de produção, envase e distribuição dos preparados de peixe também não estão totalmente esclarecidas. 

Outro elemento digno de nota é a possibilidade de que não se possua ainda uma visão nítida do alcance comercial da produção lusitana no circuito comercial de longa-distância. Os indícios de que produtos lusitanos são envasados em ânforas béticas são acrescentados ao facto de que nem sempre se distingue com exatidão as ânforas lusitanas das béticas. Assim, os dados estatísticos para a presença cerâmica lusitana-bética no oriente podem estar distorcidos. 

De facto, atesta-se a vitalidade do comércio lusitano na península entre o Baixo-Império e a Antiguidade Tardia. Segundo Fabião (2000, 2004), em Hispalis o comércio anfórico lusitano entre ca. 250 e 450 d.C. demonstra que cerca de 50% das importações peninsulares de preparados de peixe vinha da Lusitânia (Tab. 6). 

As ânforas lusitanas continuam atestadas na península no segundo quartel do século V, em Tarraco (Remollà Vallverdú, 2000), Ampúrias, embora escassas, (Reynolds, 2005) e, em grande quantidade, em Portus Sucronem (Hurtado, et. al, 2008). 

A ideia de que os centros produtores do litoral algarvio estariam ligados de alguma forma a algum consórcio hegemónico num “Circuito del Estrecho” carece de dados arqueológicos que permitam o desenvolvimento de uma teoria. No momento, pode-se afirmar apenas que a Lusitânia dispunha de uma estruturação logística diversificada e que as realidades a serem comprovadas numa grande área específica pode não se verificar válida para outras grandes áreas produtoras. 

Possivelmente, o Estreito de Gibraltar terá servido como polo facilitador desse circuito comercial regional. Quaresma (2012: 296 – 297) demonstra que os dados disponíveis sobre os naufrágios Punta Ala B (século II) e Cabrera III (século III), a Oeste da Itália, apresentam uma articulação de ânforas tunisinas e béticas (Figura 24 a-b). 

Fabião (2000: 718; 2004: 404) justifica essa presença de carga anfórica mista hispana e africana como consequência do declínio da produção bética dos preparados de peixe e da ascensão dos produtores lusitanos. A carga do naufrágio Cabrera III 

demonstra a participação mista de empreendedores privados e estatais, ilustrando um “renascimento económico” no século III (Reynolds, 2005: 382). 

Na Lusitânia, o século III marca a ascensão da província como o grande produtor dos preparados de peixe. Mas, uma aparente contradição situa a mesma data como início de um processo de abandono de centros produtores e da sensível redução das dimensões dos tanques e cetárias que sobrevivem. 

Entre os séculos III – V a popularização do consumo dos preparados de peixe no império estimula um fenómeno de substituição de uma tipologia de molho mais encorpada por uma mais líquida e pela gradual especialização ibérica na captura e substituição de peixes grandes pelos de pequeno porte. 

Durante o Baixo-Império, constata-se um novo padrão alimentar no império. Entre os séculos IV e VI o crescimento das importações de preparados de peixe ultrapassa os do azeite e do vinho em grandes centros importadores, como Hispalis (Quaresma, 2012: 297). 

Independentemente da polémica sobre a data da redução dos contentores piscícolas lusitanos e béticos, o envase em ânforas de bordo pequeno tornou-se uma tendência dominante. Para o presente estudo, esta informação é suficiente para apontar para as transformações logísticas ocorridas naquele período. Entretanto, o investimento em dados anfóricos e sobre o consumo de terra sigillata permitirá estudos mais densos sobre essa conjuntura económica. 

Sabe-se que havia um contexto histórico de crise demográfica entre meados do século II e princípios do século III. Segundo Duncan-Jones esse período corresponde a um processo de decadência de sítios agrícolas por todo o império, provocando fenómenos como o surgimento de villae fortificadas e a redefinição de relações laborais (apud Jongman, 2007: 196; Quaresma 2012: 258). Por outro lado, não se sabe com precisão qual teria sido o real impacto da chamada “Praga de Antonino” sobre a quebra económica nas províncias ocidentais (Scheidel, 2012: 11). 

Dito isto, aparentemente as cidades da Hispânia deram início a um lento e diversificado processo de transformação urbanística logo após ter atingido o seu apogeu económico, no século II. Seria correto caracterizar essa primeira fase como decorrência de uma supervisão estatal mais zelosa, considerando-se todo o cenário social e económico da relação entre Roma e as províncias durante a Pax? 

as suas províncias, a partir do século V. Seria possível articular esses dados arqueológicos a uma abordagem antropológica do consumo dos preparados de peixe? 

O consumo é um fenómeno cultural que satisfaz uma necessidade individual, mas é uma consequência de uma proposta social. As inter-relações sociais promovidas para a justificação de uma demanda comercial são um fator cultural que afeta toda a estrutura da atividade económica. 

Quando o mundo romano experimenta a transição para um universo cultural germânico e cristão, o consumo do produto perde legitimidade social e isso reflete-se num declínio económico provocado pela falta de interesse social e consequentemente, o desaparecimento de um mercado local que justifique o investimento na produção de preparados de peixe. 

Se assumirmos a premissa de que a economia romana se baseava numa coletividade de redes concêntricas de mercados locais, justapondo-se momentos de conectividade regional e inter-regional, a quebra do mercado consumidor local inviabilizaria completamente qualquer insistência com aquela atividade económica. 

Bernardes (2015) descreve como o consumo dos molhos à base de peixe transformaram-se de iguaria a medicamento na transição entre os mundos romano e islâmico. Essa recategorizarão do produto é um processo cultural, logo, passível de ser abordado por um viés antropológico. Seria então plausível buscar-se um diálogo epistemológico com a antropologia, de modo a se debater historiograficamente uma “teoria do consumo” (Miller 1987), devidamente adequada à realidades antigas. 

Os tópicos aqui debatidos oferecem um interessante potencial para o aprofundamento, num estágio futuro da investigação. O eventual desenvolvimento da investigação discutiria as particularidades arquitetónicas das cetárias catalogadas, por sítio, seguindo-se um diálogo mais denso com os dados anfóricos e um estudo mais extenso sobre as conjunturas económicas da Lusitânia. 

A reconfiguração urbana reflete-se na redução das cetárias lusitanas. Esse processo estaria, de algum modo, articulado a uma realidade de maior autonomia provincial para a gestão das próprias dinâmicas económicas a partir do século III? 

Um possível desenvolvimento deste estudo centra-se na possível aplicação do modelo pitagórico na orientação das novas dimensões de tanques e cetárias após o processo de redimensionamento dos centros de produção para a segunda fase da sua atividade económica. 

Ocorrem transformações na tipologia do produto, que passa a dar proeminência aos peixes pequenos e aos derivados mais líquidos do produto. Os dados arqueológicos referentes às transformações da produção também refletem transformações culturais do seu consumo, bem como indícios de transformações em todo um modo de vida. 

A retoma comercial que caracteriza a segunda fase de produção lusitana dura até o século V. Por outro lado, o século seguinte testemunha alguma continuidade da produção e distribuição de preparados de peixe. Na Lusitânia, tudo indica que a produção tardia permaneceu sediada no seixo Tejo-Sado. Todavia, desde o século III os centros de produção do Algarve estiveram mais ativos. 

A Lusitânia foi diretamente afetada pelas convulsões sociais provocadas pelas guerras suevo-visigóticas, ocorridas entre meados e terceiro quartel do século V. A importação de terra sigillata africana entra em declínio por volta de 450 d.C., mas resiste pontualmente até meados do século VI (Quaresma, 2012: 292 – 293). Na Bética o mesmo se verifica em meados do século VI, num cenário de declínio económico que envolve focos de peste e instabilidade militar (Reynolds, 1995: 31). 

A produção hispânica cessa até meados do século VI (Bernal Casasola, et al. 2003: 163). Nesse aspeto, sabe-se que a Vectigal, restabelecida por Teodorico, compromete os visigodos com o fornecimento de trigo a Roma, mas não há menções ao azeite ou os preparados de peixe (Perea Yébenes, 2003: 98). 

Existe toda uma conjuntura económica de retração comercial durante as chamadas invasões bárbaras e o gradual enfraquecimento da autoridade imperial sobre 

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As Oficinas de Preparados de Peixe da Lusitânia: arquiteturas e dinâmicas econômicas da sua produção (séculos I – VI d.C.)
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The Roman influence on Sado

O COMPLEXO INDUSTRIAL DE TRÓIA

O COMPLEXO INDUSTRIAL DE TRÓIA DESDE OS TEMPOS DOS CORNELII BOCCHI

The production center of Tróia since the times of the Cornelii Bocchi

Inês Vaz Pinto, Ana Patrícia Magalhães, Patrícia Brum

Troiaresort – Investimentos Turísticos, S,A. contacto  ines.pinto@troiaresort.pt

Abstract

The recent works preparing the redevelopment and presentation of the ruins of Tróia led to the identification of a level of construction from the time of Tiberius, including materials from Augustan times, associated with the walls belonging to the largest fish-salting factory at Tróia. These new stratigraphic data pre-date the Claudian era, to which the foundation of Roman Tróia was previously attributed. This makes more plausible the connection between Cornelius Bocchus and the Fish-salting production center, where an inscription dedicated to him was found.

The main purpose is to bring to light the 25 fish-salting workshops identified in the archaeological site of Tróia and the outstanding production capacity of this settlement. As some of the workshops have not been totally excavated, many of them are half destroyed by the tides, and others still lie hidden under the dunes, the production capacity that can currently be estimated and that is reported in these pages may be considerably less than the true capacity of this exceptionally large production center.

Resumo

Os recentes trabalhos preparatórios da valorização das ruínas de Tróia permitiram definir um nível de construção de época tiberiana, que inclui materiais augustanos, associado a paredes pertencentes à maior fábrica de salga de Tróia. Estes novos dados estratigráficos, que antecipam a datação claudiana anteriormente postulada para a fundação da Tróia romana, tornam mais palpável a relação que não poderá deixar de ter existido entre Cornelius Bocchus e o centro de produção de salgas de peixe onde foi encontrada uma inscrição que lhe é dedicada.

Nesta apresentação, pretende-se sobretudo dar a conhecer as 25 oficinas de salga que foi possível identificar nas ruínas de Tróia e a extraordinária capacidade de produção deste sítio. Tendo em conta que algumas das oficinas não foram escavadas na totalidade, muitas estão já incompletas pela destruição causada pelas marés, e outras estarão ainda escondidas sob as dunas, a capacidade de produção que se pode apontar hoje ficará muito aquém da capacidade real deste centro de produção de dimensão excepcional.

Foi achada em Tróia, no século XIX, uma placa honorífica com uma inscrição dedicada a um Cornelius Bocchus, da ordem equestre, que exerceu os cargos de praefectum fabrum, tribuno militar da III Legião Augusta e .âmine provincial (CIL II 5184, IRCP 207). Pertencia sem dúvida à conhecida família dos Cornelii Bocchi, originária de Salacia (Alcácer do Sal), à qual se referem outras inscrições e da qual se conhecem três gerações. Essa inscrição convida a relacionar a fundação do centro de produção de preparados de peixe de Tróia com esse personagem que terá vivido durante o principado de Augusto. É até possível que as suas várias funções tenham incluído o abastecimento dos exércitos, o que o levaria a investir na produção de salgas de peixe, um dos produtos essenciais à alimentação em campanha (Diogo e Trindade, 1999; Morais, 2007). Contudo, a atribuição da fundação do centro de produção de Tróia a um personagem da época de Augusto não condizia com a data de fundação inferida dos dados arqueológicos disponíveis, que apontavam para a época de Cláudio (Étienne, Makaroun, Mayet, 1994, p. 30). A inesperada identificação, em 2010, de um nível de ocupação da época  de Tibério, com materiais augustanos, associado à maior fábrica de salga de Tróia, veio dar maior  consistência à ligação deste centro de produção ao personagem que aí foi homenageado.

Neste estudo apresenta-se, em primeiro lugar, esse contexto datante, mas o contributo principal da equipa que desde 2006 se ocupa da conservação e valorização do sítio arqueológico de Tróia será o de dar a conhecer as múltiplas oficinas de salga aí identificadas, a maioria nunca publicada, com o objectivo de dar uma noção mais aproximada à realidade da importância e capacidade de produção deste complexo de preparados de peixe. O facto de algumas das oficinas não terem sido escavadas na totalidade, muitas estarem já incompletas devido à acção destrutiva das marés, e outras estarem ainda  escondidas sob as dunas significa, no entanto, que a capacidade de produção que se pode apontar hoje ficará muito aquém da capacidade real deste centro de produção de dimensão excepcional.

Fig. 1. Planta esquemática da área de escavação entre a oficina 2 e o armazém das ânforas.

UM NÍVEL DE ÉPOCA TIBERIANA

Os recentes trabalhos preparatórios da valorização das ruínas de Tróia exigiram a escavação de uma área imediatamente a nordeste da oficina de salga 2, entre a parede nordeste desta oficina e a parede sudoeste do armazém das ânforas há muito aí identificado (Fig. 1).

A oficina de salga 2 pertenceu, na época da sua construção, a uma grande fábrica de salga que não foi ainda completamente escavada, mas que compreendia, pelo menos, duas oficinas de tamanho desigual, interpretadas e publicadas em 1994 por R. Étienne, Y. Makaroun e F. Mayet com a designação de usines I et II. A oficina 1 tinha uma área estimada de 1106 m2 e dela se conhecem dezanove tanques, enquanto a oficina 2 tinha um total de dezanove tanques, alguns deles subdivididos, e uma área de cerca de 346,50 m2. As duas oficinas tinham comunicação directa entre si através de um corredor e só mais tarde, no século III, foram divididas em unidades de produção mais pequenas, tendo a passagem entre as duas sido fechada. A nordeste da oficina 2 situava-se um armazém, identificado nos anos 60 do século XX de acordo com as fotografias de M. Farinha dos Santos, que nos vários momentos da sua escavação conservava ainda ânforas encostadas às suas paredes (Fig. 2), e que nos finais do século II ou inícios do III foi desactivado para dar lugar a um mausoléu cuja parede noroeste assentou sobre a parede sudeste do armazém (Étienne, Makaroun e Mayet. 1994, pp. 81-82).

Fig. 2. Fotografia do armazém das ânforas do Arquivo Fotográfico do Prof. Manuel Farinha dos Santos (1958- 1963), cedido por João Luís Cardoso.

Fig. 3. Fotografia do armazém das ânforas durante a escavação de 2009.

Fig. 4. Fotografia da área de escavação entre a oficina 2 e o armazém das ânforas.

Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos em 2009 e 2010 puseram à vista a parte deste armazém já anteriormente escavada, revelando que tinha 4,40 m de largura e um comprimento de 7 m (Fig. 3). A sudoeste, no espaço que o separava da oficina 2, apareceu uma parede perpendicular e adossada à parede nordeste dessa oficina, alinhada com a parede noroeste do já identificado armazém das ânforas. Foi interpretada como pertencendo a uma fase inicial e delimitaria um espaço que poderia ter a mesma função de armazenagem (Fig. 1).

Este armazém já havia sido parcialmente escavado, permanecendo intacto o piso e parte de seis ânforas que foram deixadas junto à parede noroeste deste compartimento. Apenas numa pequena faixa com 0,80 m de largura, junto ao limite nordeste deste compartimento, se pôde escavar depósitos não perturbados compostos por um primeiro nível de estratos de destruição, um nível com um enterramento infantil em imbrex, associado à necrópole do mausoléu, e finalmente o depósito arenoso que cobriu esta área depois do seu abandono.

A escavação da área entre a oficina 2 e o armazém das ânforas tinha uma grande potência estratigráfica por escavar, revelando uma estratigrafia complexa, composta por várias fases e com uma ampla diacronia (Figs. 4 e 5).

Fig. 5. Perfil estratigráfico realizado no limite sudoeste da área de escavação entre a oficina 2 e o armazém das ânforas.

Nos níveis superiores de escavação foram escavadas unidades estratigráficas (u.e.) possivelmente ainda ligadas à necrópole do mausoléu e identificaram-se algumas estruturas tardias já muito destruídas (ex. escada ([699], [790] e [791]) e troços de paredes) que confinavam um espaço cuja funcionalidade ainda está por definir. A canalização visível na Fig. 4 já era visível na oficina 2, enquadrando-se na sua segunda fase de construção/utilização.

A primeira fase de utilização deste espaço, e consequentemente das oficinas 1 e 2, corresponde ao piso [767]=[768] ilustrado no perfil da Fig. 5. A escavação do piso [767] = [768] revelou um fragmento indeterminado de parede de vidro itálico polícromo (nº1, Fig. 6), oito pequenos fragmentos de terra sigillata de tipo itálico, dois dos quais integráveis no tipos Consp. 22 e 25.1 (nºs 2 e 3, Fig. 6); dois bordos de ânforas Dressel 2-4, uma itálica de fabrico aparentemente da Campânia (com pequenas inclusões brancas angulosas ou sub-roladas, pequenos minerais negros arredondados ou alongados em menor quantidade e alguns óxidos de ferro) (nº 4, Fig. 6) e a outra com pasta granulosa e avermelhada aparentemente do baixo Guadalquivir (nº 5, Fig. 6); um bordo com arranque superior de asa de ânfora de pasta clara calcária típica da baía de Cádis, de forma indeterminada; dois bordos de ânfora Dressel 14 da variante A de fabrico regional (n.º 6, fig. 6); três fundos de ânfora Dressel 14, provavelmente também da variante A, de fabrico regional, (nºs 7-8, Fig. 6); três fragmentos de opercula de fabrico regional (nº 9, Fig. 6); um bordo de dolium igualmente de fabrico regional (nº 10, Fig. 6); um bordo com o perfil incompleto de um pequeno  dolium com pasta bege granulosa típica do baixo Guadalquivir; uma tigela de cerâmica comum de fabrico regional (nº 11, Fig. 6) e três fragmentos de bordo de tampas de cerâmica comum de fabrico igualmente regional.

A u.e. [796] corresponde à preparação de um piso (não visível no perfil) do lado noroeste da estrutura [770]. Esta unidade arenosa com uma grande densidade de brita do mesmo tipo que a brita utilizada nos revestimentos e pavimentos da primeira fase da oficina 2, apresentou um fragmento de parede lisa de terra sigillata de tipo itálico, um fragmento de ânfora de fabrico regional cuja forma é uma imitação da ânfora piscícola bética Dressel 7-11 (nº 12, Fig. 6), um grande fragmento de bojo com arranque inferior de asa de secção circular de uma ânfora Dressel 20 com a pasta bege granulosa típica do baixo Guadalquivir, pequeno conjunto de material que condiz com aquele que foi encontrado no próprio piso anteriormente descrito.

Fig. 6. Materiais recolhidos nas unidades estratigráficas [767], [768], [783], e [796].

 

O enchimento da vala de fundação [787] da parede [770] que encosta à parede nordeste da oficina 2, [782] e [783], apresentou um fragmento de Dragendor. 27 em terra sigillata sudgálica de características antigas (Polak, 2000, pp. 118-121), um fragmento de asa de ânfora Haltern 70 do Guadalquivir e quatro bordos de ânfora Dressel 14, variante A, de fabrico regional (nºs 13 e 14, Fig. 6); um fragmento de operculum de fabrico regional (nº 15, Fig. 6); uma tigela de fabrico regional (nº 16, Fig. 6) que se enquadra na forma III-C-1 da cerâmica comum das villae romanas de São Cucufate (Pinto, 2003, p. 221); dois fragmentos de bordo de panelas igualmente de fabrico regional (nºs 17 e 18, Fig. 6), a segunda das quais equivalente à forma VIII-C-1 da mesma tipologia (Pinto, 2003, p. 376); e um fragmento de tampa de bordo simples e outro de fundo, também estes de fabrico regional.

Sob o piso correspondente à primeira fase de construção/utilização da oficina foi identificada uma unidade de areias de duna amarelada ([794] = [795] = [811]), praticamente estéril de materiais.

Após esta u.e. aprofundou-se um pouco mais a escavação do lado sudeste da escada [699], e foi identificada uma u.e. arenosa esbranquiçada que corresponde ao substrato arenoso original na época romana, u.e. [813].

No seu conjunto, as referidas unidades estratigráficas associadas à parede adossada à parede nordeste da oficina 2 apresentam um conjunto de materiais relativamente homogéneo que associa terra sigillata itálica e um fragmento de terra sigillata sudgálica com um vidro polícromo itálico, ânforas vinárias Dressel 2-4 importadas da Campânia e da Bética, uma ânfora Haltern 70 e ânforas regionais de tipo muito antigo. A terra sigillata itálica indica uma cronologia de Augusto-Tibério (Conspectus 1990, pp. 90 e 96), e o fragmento de terra sigillata sudgálica, provavelmente de um momento inicial do período de Tibério devido à finura da sua parede, sugere uma data não anterior a esse período, datação esta que é confortada pelas ânforas regionais pouco canónicas, embora a maioria enquadrável na variante A da forma Dressel 14, que aparecem em Abul na época augusto-tiberiana (Mayet e Silva, 2002, pp. 30-31, 49-50) e ocorrem igualmente na olaria da Rua da Misericórdia, em Setúbal, datada do segundo quartel do século I, aí consideradas Dressel 14 com afinidades às ânforas Dressel 7-11 (Silva, 1996, pp. 47-48). De notar que ânforas lusitanas com afinidades às ânforas Haltern 70 aparecem já no Castelo da Lousa em época augustana (Morais, 2010, pp. 190-191, 216-217).

Estes contextos datáveis do período de Tibério, com um significativo conjunto de materiais augusto-tiberianos, revelam que a construção da oficina 2, e por conseguinte, da grande fábrica de salga a que pertence, não é posterior a esse período dando maior consistência à ligação da fundação do complexo de preparados piscícolas de Tróia ao Cornelius Bocchus aí homenageado.

Noutra perspectiva, a comprovação da produção de salgas de peixe em Tróia neste período ilustra a produção de salgas mais antiga no estuário do Sado, justificando a produção de ânforas na outra margem do rio nessa época.

UM GRANDE CENTRO DE PRODUÇÃO

A monografia publicada em 1994 por R. Étienne, Y. Makaroun e F. Mayet teve o imenso mérito de pela primeira vez dar a conhecer o centro de produção de preparados de peixe de Tróia e colocá-lo, desde logo, entre os maiores do mundo romano. O estudo das oficinas 1 e 2 (usines I et II) permitiu ainda compreender as principais fases de ocupação deste sítio e o processo de segmentação das oficinas em unidades de produção mais pequenas verificado no século III. A caracterização da oficina 3 (usine III), bem menor do que as anteriores, mostrou a única oficina completa até à data conhecida em Tróia e a variabilidade no tamanho das oficinas deste centro de produção.

Tal como é referido nessa monografia, outras oficinas estavam à vista, algumas devido a trabalhos de escavação, outras postas a descoberto pelas marés que na praia-mar alcançam as estruturas arqueológicas na orla do estuário do Sado.

Em 2007, por ocasião de um enchimento de praia no extremo nordeste da península para protecção das estruturas arqueológicas, procedeu-se à numeração das oficinas que iriam ser cobertas, em parte ou totalmente, por esse enchimento de praia, incluindo-se nessa sequência a grande oficina parcialmente escavada, mas não publicada, perto da necrópole das sepulturas de mesa, que recebeu a designação de oficina 4. As oficinas afectadas pelo referido enchimento de praia foram numeradas de 5 a 10 e deu-se o número 11 a uma oficina com cetárias pequenas, aparentemente tardia, situada num ponto alto da vertente sobre a praia, a nordeste do mausoléu e da necrópole situada nas suas traseiras (Silveira et al., no prelo). Devido ao curto espaço de tempo que decorreu entre a decisão de efectuar o enchimento e o seu início, recorreu-se ao levantamento topográfico feito por técnicos do IPPAR, e procedeu-se à descrição das estruturas e levantamento fotográfico.

Durante o levantamento realizado, perante a sequência de tanques de salga bastante destruídos que se viam na orla do estuário, e a dificuldade em distinguir as diferentes fábricas de salga a que pertenceriam, optou-se por definir as unidades de produção, ou seja, os compartimentos com tanques e pátio, a que se chamou “oficinas” na sequência da terminologia aplicada às unidades de produção de salga de peixe de Sines (Silva, Coelho-Soares e Soares, 2006).

No mesmo ano de 2007 foi necessário realizar uma sondagem preventiva nas traseiras de uma fábrica de salga situada na praia na zona do Recanto do Verde (ou Canto Verde), a noroeste das Instalações Navais de Tróia (Fuzileiros) e posteriormente foi possível empreender uma acção de levantamento arqueológico dessa fábrica já meio destruída pelas marés. Nessa fábrica foram identificadas duas oficinas de salga que receberam a designação de oficinas 12 e 13 (Pinto, Magalhães e Cabedal, no prelo).

Na orla do estuário, entre a zona residencial da Rua da Princesa e o Recanto do Verde, foram identificadas com segurança outras 11 oficinas, algumas delas muito destruídas, que foram numeradas a partir de noroeste e receberam a designação de oficinas 14-24. Imediatamente a sudeste das Instalações Navais de Tróia (Fuzileiros) existe um núcleo de ruínas romanas com uma oficina de salga que foi designada por oficina 25.

A localização das 25 oficinas de salga identificadas na península de Tróia é apresentada na Fig. 7. No presente texto descrevem-se sumariamente estas oficinas, apresentando-se as respectivas plantas esquemáticas feitas com base no levantamento topográfico das ruínas realizado pelo IPPAR em 20061 (Figs. 8-12) e uma tabela com as dimensões e capacidade de produção de cada uma (Fig. 13).

A numeração das oficinas refere-se sempre à sua planta original, mas as plantas incluem as remodelações posteriores. Nas estampas das Figs. 8-11, o cinzento escuro ilustra as actuais estruturas das oficinas, o cinzento claro representa as estruturas adossadas ou sobrepostas à planta da oficina (ex: oficinas contíguas ou a basílica, no caso da oficina 6) e o tracejado é a reconstituição hipotética da oficina.

Fig. 7. Localização das oficinas de salga na península de Tróia (www.earth.google.com).

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1 As plantas esquemáticas das oficinas 1, 2 e 3 baseiam-se nas plantas originais da monografia de R. Étienne, Y. Makaroun e F. Mayet (1994). No âmbito de um protocolo com a Universidade de Coimbra, em 2007 José Luís Madeira fez a planta esquemática das oficinas 12 e 13, e em 2008 actualizou a planta da oficina 2 e desenhou a planta da oficina 15.

Fig. 8. Plantas esquemáticas das oficinas 1 a 5.

Fig. 9. Plantas esquemáticas das oficinas 6 a 10.

Fig. 10. Plantas esquemáticas das oficinas 11 a 16.

Fig. 11. Plantas esquemáticas das oficinas 17 a 22.

Fig. 12. Plantas esquemáticas das oficinas 23 a 25.

Fig. 13. Dimensões, número de cetárias e capacidade de produção das oficinas de salga de Tróia.

Oficina 1 (Figs. 8 e 14)

A oficina 1 era um grande compartimento com tanques dispostos à volta de um pátio com um poço. Tal como acima referido, foi estudada e publicada por R. Étienne, Y. Makaroun e F. Mayet (1994, pp. 69-76) que registaram as dimensões que figuram na tabela da Fig. 13. Embora a sua escavação não tenha sido concluída, a possibilidade de medir o seu comprimento e largura nos lados noroeste e sudoeste permitiu estimar com razoável certeza a sua área total. Trabalhos recentes de desafogamento das areias que punham em risco a estabilidade do poço puseram à vista, no lado sudeste, o topo de paredes tardias que parecem seguir o traçado de cetárias, dando força à hipótese de que a oficina tinha tanques ao longo das suas quatro paredes, e tornando pertinente a estimativa de um volume de produção original, no Alto Império, de cerca de 700 m3 (Étienne, Makaroun e Mayet, 1994, p. 76).

Os novos dados cronológicos apresentados na primeira parte deste estudo mostram que esta oficina, sendo solidária com a oficina 2, data pelo menos da época de Tibério. No século III, a oficina foi segmentada em pelo menos três unidades de produção mais pequenas, as oficinas 1A, 1B e 1C, com capacidades de produção, respectivamente, de 168,21 m3, 157, 559 m3 e indeterminada (por não estar totalmente escavada) (Étienne, Makaroun, Mayet, 1994, pp. 83-88).

A oficina sofreu ainda outra remodelação, provavelmente no início do século IV, que implicou a construção de uma viela entre as unidades 1A e 1B que dava acesso ao pátio central  onde se situava o poço. Enquanto a oficina 1C parece não ter sofrido qualquer alteração, a oficina 1A terá tido algumas das suas cetárias segmentadas em tanques mais pequenos, vendo a sua capacidade de produção reduzida para 154,15 m3. Nesta fase, as cetárias da oficina 1B terão sido incorporadas na oficina 2A situada a nordeste (Étienne, Makaroun, Mayet, 1994, pp. 88-90).

De acordo com os materiais recolhidos nos níveis de lixeira e abandono que se acumularam dentro dos tanques e sobre o pátio, o término da produção terá ocorrido no final do primeiro terço do século V (Pinto, Magalhães, Brum, no prelo).

Fig. 14. Aspecto da fiada noroeste da oficina 1 (cetárias 8-14, vista para sudoeste).

Fig. 15. Aspecto da parte sudeste da oficina 2 (cetárias 1-10, vista para sudoeste).

Oficina 2 (Figs. 8 e 15)

A oficina 2, pertencente à mesma fábrica de salga que a oficina 1, à qual estava ligada por um corredor com dois degraus, era também um compartimento rectangular com tanques dispostos à volta de um pátio central e trabalhos recentes comprovaram que tinha cetárias ao longo das quatro paredes, sugerindo que é esse o modelo das grandes oficinas de Tróia. A data da sua construção será semelhante à da oficina 1, ou seja, não anterior à época de Tibério.

A limpeza, escavação pontual e estudo da oficina 2 levados a cabo em 2007 sugeriram que a segmentação das cetárias desta oficina é original, o que permite calcular que no Alto Império as cetárias escavadas preservadas na íntegra (1-6 e 9-11) tinham um volume de 65,62 m3. Se atribuirmos às cetárias não escavadas ou incompletas (7-8 e 12-19) uma profundidade média de 1,24 m, obtém-se um volume de produção estimado de 142,25 m3.

Fig. 16. Aspecto da oficina 3 (vista para norte).

Fig. 17. Aspecto da oficina 4 (cetárias 3 e 4 com fornos tardios, vista para sudoeste).

Oficina 3 (Figs. 8 e 16)

A oficina 3 foi descrita e publicada por R. Étienne, Y. Makaroun e F. Mayet que registaram as dimensões indicadas na tabela da Fig. 13 (1994, pp. 93-96). Trata-se de uma oficina bastante pequena quando comparada com as oficinas 1 e 2, mas que perfazia 103,10 m3 de volume de produção.

A planta desta oficina segue um modelo diferente, em U, com cetárias em apenas três dos seus lados, mas igualmente à volta de um pátio. As cetárias têm volumes entre 7,46 e 15,17 m3 e a sua profundidade varia entre 1,75 m e 1,95 m.

Oficina 4 (Figs. 8 e 17)

A oficina 4 é uma grande oficina cuja parte sudoeste foi parcialmente escavada nos anos 70 do século XX e objecto de uma sondagem em 2005 mas que nunca foi publicada. As grandes dimensões dos seus tanques e os múltiplos sinais de remodelação sugerem que data do Alto Império e que no Baixo Império foi segmentada (paredes tardias entre as cetárias 2 e 3, sobre a parede nordeste da cetária 4 e sobre a parede sudoeste da cetária 5) e viu o seu pátio invadido por um pequeno edifício com um lance de escadas, certamente de acesso a um primeiro andar. Depois de abandonada a produção de salgas, foram construídos dois fornos dentro das cetárias 3 e 4. Pela largueza do pátio, tinha certamente uma planta rectangular com cetárias ao longo das quatro paredes.

Actualmente apenas são visíveis cinco cetárias, quatro da fiada noroeste e uma da fiada sudeste, mas a base de um pilar a sudoeste, que devia sustentar o telhado sobre os tanques da fiada sudoeste, sugere que esta fiada se estendia desde a cetária 1 até outra cetária no canto sul alinhada com a cetária 5 e separada desta por outra cetária que também não está à vista. Assim, a fiada sudoeste teria pelo menos seis cetárias (incluindo a cetária 1), talvez sete, a fiada noroeste teria pelo menos as cetárias 1 a 4 e uma a nordeste da cetária 4, e a fiada sudeste teria também, pelo menos, outras três (incluindo a cetária 5), provavelmente cinco ou seis como a fiada noroeste. A fiada nordeste, onde se devia situar a entrada principal, teria um mínimo de quatro cetárias, perfazendo no mínimo dezassete cetárias. No entanto, é provável que as fiadas noroeste e sudeste se prolongassem para nordeste.

No que respeita à capacidade de produção, as três cetárias que estão suficientemente escavadas para que o seu volume seja medido têm 29,61 m3 (cetária 5) e 35,18 m3 (cetárias 2 e 4), num total de 99,97 m3. Se se calcular um volume médio e mínimo de 30 m3 para as 17 cetárias, obtém-se um valor mínimo estimado de 510 m3.

Num último momento de utilização, as cetárias 3 e 4, já parcialmente entulhadas, abrigaram fornos de adobe e uma mó, talvez para o fabrico de pão, e nesse ou noutro momento a parede noroeste da oficina foi reforçada com contrafortes que obstruíram parcialmente a viela imediatamente a noroeste. Não se conhece a data das remodelações e reutilização do espaço, nem a data do término da produção de salgas na oficina.

Oficina 5 (Figs. 8 e 18)

A oficina 5 é composta por duas fiadas de cetárias dispostas em L ao longo de dois lados de um pátio, mas falta-lhe certamente uma cetária a sudoeste das cetárias 8 e 9 e a fiada sudoeste.

Esta parte da oficina terá sido destruída por ocasião da construção, na primeira metade do século XX, da grande casa a sul conhecida como Palácio Sottomayor. A oficina é hoje delimitada a sudoeste pelo muro da envolvente dessa casa. Presume-se que originalmente tivesse uma planta em U, com cetárias dispostas em três lados, à volta de um pátio estreito e alongado.

Numa primeira fase, as cetárias conservadas teriam um volume total de 183,29 m3, destacando-se uma desproporcionadamente grande, a cetária 7, com m 45,70 m3 de volume, enquanto as outras não ultrapassam os 25 m3. Se a oficina tivesse outra cetária igual à cetária 6, com 24,89 m3, e uma fiada sudoeste semelhante à fiada nordeste, com 50,84 m3 de volume, a capacidade da oficina seria de 259,01 m3. O único vestígio de remodelação nesta oficina é a segmentação da cetária 5, cujo volume inicial foi reduzido de 24,11 m3 para 15,11 m3 distribuídos por três tanques mais pequenos (5a, 5b e 5c).

Não se conhece a data da sua construção nem dados sobre a sua escavação, certamente levada a cabo por iniciativa de D. Fernando de Almeida no final dos anos 60 ou no início da década de 70 do século XX.

Fig. 18. Aspecto da oficina 5 (vista para nordeste).

Fig. 19. Aspecto da parte central da oficina 6 (cetárias 4-6, vista para noroeste).

Oficina 6 (Figs. 9 e 19)

Só a parte nordeste da oficina 6 está à vista, estando a sua parte sudoeste sobreposta pelo edifício identificado como basílica paleocristã. No entanto, dentro da basílica, delineados nas áreas onde o pavimento abateu, são visíveis os contornos ou vestígios das cetárias reconstituídas a tracejado na planta esquemática.

Constata-se que a oficina 6, apesar de ser relativamente grande, tinha cetárias dispostas apenas ao longo de três paredes, com a particularidade de as suas fiadas laterais abrirem levemente em V. Esta disposição explicar-se-á pela necessidade de articulação do edifício com a viela a sudeste para a qual tinha saída, com a provável rua a noroeste e com os edifícios a sudoeste. Dada a forma irregular da oficina e a sobreposição da basílica, o cálculo da sua área (462 m2) é aproximado.

As suas cetárias são grandes, com uma profundidade entre 2,07 e 2,22 m, e as cinco cetárias que foi possível medir, entre as quais se destaca a maior cetária conhecida em Tróia (a cetária 1 com um volume de 57,06 m3), tinham um volume de 177,93 m3. Se considerarmos que as outras seis cetárias teriam um volume médio de 29 m3 (as cetárias 3 a 6 têm entre 29,53 e 31,90 m3), a capacidade de produção estimada da o>cina seria de 351,93 m3. Num segundo momento, a cetária 4 foi segmentada em quatro tanques mais pequenos reduzindo-se a sua capacidade de 31,90 m3 para 24,09 m3 no total dos quatro.

A oficina 6 foi dividida em unidades mais pequenas num segundo momento. Uma parede foi construída sobre a parede que divide as cetárias 3 e 4, e outra sobre a parede entre as cetárias 5 e 6, formando-se um novo compartimento a nascente da cetária 5, mas não se conhece o momento das suas várias remodelações. É provável que sejam contemporâneas da segmentação das oficinas 1 e 2 no século III, mas nada o prova. No entanto, pela dimensão das suas cetárias e vestígios de segmentação, é razoável supor que a oficina tenha sido construída no Alto Império.

A escavação de um enchimento no fundo da cetária 3, por ocasião do enchimento de praia de 2007, mostrou que essa cetária não terá laborado para além do século IV (Silveira et al., no prelo), contrastando com o abandono das cetárias das oficinas 1 e 2 no final do primeiro terço do século V.

Na parte sudoeste da oficina instalou-se uma necrópole, provavelmente no decurso do  século IV, que no final desse século terá sido sobreposta pela basílica paleocristã.

Fig, 20. Aspecto da oficina 7 (vista para sul).

Fig, 21. Aspecto da oficina 8 (cetárias 1 e 2, vista para sudoeste).

Oficina 7 (Figs. 9 e 20)

Antes do enchimento de praia, da oficina 7 era visível uma fiada de cetárias muito destruídas, embora com as paredes sul conservadas, e uns compartimentos a sul destas resultantes de uma remodelação tardia. As bases de quatro pilares sobre a parede sul, pilares esses que serviriam para sustentar a cobertura das cetárias, indicam que o pátio se situava a sul e que as restantes fiadas de cetárias estarão ainda sob a duna que existe nessa área. É provável que a entrada se situasse na viela a oeste, que separa esta oficina da oficina 6, e que esta oficina tivesse as cetárias dispostas em U.

É muito provável que houvesse, a sul, uma fiada paralela e semelhante à que se conhece a norte, e que a fiada que ligava as duas se situasse a nascente, orientada no sentido norte-sul. Se esta fiada tivesse apenas três cetárias, a oficina teria dezassete cetárias.

Não foi possível medir o volume de nenhuma cetária, pois embora se conheça a largura destas, variável entre 1,96 m e 3,60 m, não se conhece o seu comprimento. A parede de cetária norte-sul mais bem conservada tem 2,90 m e está incompleta, o que indica que as cetárias visíveis tinham pelo menos 3 m de comprimento. As duas cetárias em que foi possível medir a profundidade têm 1,93 e 1,95 m. Se as outras tivessem 1,90 m de profundidade e 3 m de comprimento, as oito cetárias da fiada norte teriam um volume estimado de 115,52 m3. Se houvesse outra fiada igual e outra cetária na fiada nascente com cerca de 15 m3, pode-se estimar que a oficina tivesse uma capacidade de produção de 235 m3.

Além da remodelação visível que terá subdividido a área do pátio, há sinais de significativas alterações na cetária 8, a nascente. Além desta cetária estar entre paredes-mestras, o seu pavimento está acima do nível dos outros, tem um pequeno tanque construído no canto sudoeste e uma entrada aberta na parede sul.

Não existem dados que permitam datar a construção, remodelação ou abandono da oficina, mas a sua articulação com a mesma viela que a oficina 6 e os vestígios de remodelação permitem  pensar que tenha sido construída no Alto Império, tendo laborado igualmente no Baixo Império.

Oficina 8 (Figs. 9 e 21)

A parte visível da oficina 8 foi completamente coberta de areia pelo enchimento de praia realizado em 2007 e outra parte estará ainda sob a duna a sul. Antes do enchimento foi possível constatar que estava muito destruída e a sua organização espacial deixa grandes dúvidas. A planta esquemática, feita a partir do levantamento topográfico muito incompleto e das observações feitas em 2007, tenta reconstituir parte da oficina.

O que se pode afirmar é que era uma oficina com cerca de 21,50 m de comprimento noroeste-sudeste e com uma fiada de cetárias nesse sentido com três pares de cetárias geminadas de origem.

O espaço entre as cetárias 5-6 e 7 seria uma entrada. A cetária 8, da qual só resta a parede sudoeste, desenvolvia-se para nordeste da fiada constituída pelas cetárias 1, 3, 5 e 7, devendo ser parte da fiada orientada no sentido nordeste-sudoeste.

Só foi possível medir a cetária 2 com 15,97 m3 de volume e outra pequena, a 7, com 3,16 m3, o que perfaz uma capacidade de produção mínima de 19,13 m3. A incerteza quanto ao traçado da oficina desaconselha a estimativa da capacidade de produção.

Fig, 22. Aspecto da oficina 9 (cetárias 1 e 3 e área do pátio, vista para sudoeste).

Fig, 23. Aspecto da oficina 10 (vista para sul).

Oficina 9 (Figs. 9 e 22)

Também a oficina 9 ficou coberta pelo enchimento de praia de 2007. A descrição então feita registou que tinha cerca de 12,75 m no sentido este-oeste, e cetárias com paredes que não excedem os 1,55 m de profundidade, o que indica serem das mais pequenas de Tróia. Eram visíveis três cetárias e a área do pátio. A fiada que tem as cetárias 1 e 2 tem uma parede mestra a sudoeste que parece ser o limite sudoeste da oficina, o que significa que esta se desenvolveria para nordeste.

Dada a reduzida dimensão das cetárias e a largura relativamente estreita do pátio, seria talvez uma oficina com cetárias dispostas em U, ao longo de três paredes, com um pátio estreito e comprido no sentido sudoeste–nordeste. Outra particularidade desta oficina, além da sua pequena dimensão, é a pouca largura da sua fiada noroeste-sudeste, mas a falta de visibilidade do conjunto pode ser enganadora.

Apenas foi possível calcular a capacidade de produção da cetária 1, com 2,70 m por 1,85 m de lado e 1,55 m de profundidade, o que significa um volume de 7,74 m3. Dada a configuração atípica desta oficina, não é seguro fazer uma estimativa quanto à sua capacidade de produção original.

Oficina 10 (Figs. 9 e 23)

A oficina 10 estava muito destruída pelas marés mas conserva ainda uma boa parte das suas estruturas, escondidas pela duna de areia a sudoeste. Em 2007, ficou totalmente coberta de areia pelo enchimento de praia. Eram visíveis sete cetárias dispostas em L, duas delas geminadas, e que formam uma fiada noroeste-sudeste e parte de outra fiada no sentido nordeste-sudoeste perpendicular à primeira. É nítido que a oficina se desenvolveria para sudoeste. Era delimitada por uma parede mestra a noroeste, que corria ao longo de uma viela, e por outra a sudeste, sendo possível medir o seu comprimento (ou largura) completo, que é de cerca de 16,70 m. Tudo indica que se trata de mais uma oficina de planta rectangular, com cetárias dispostas ao longo das paredes, mas não é possível depreender se teria três ou quatro fiadas de tanques.

Não é possível calcular o volume exacto das cetárias, pois nenhuma conservou todas as medidas originais, mas foi possível registar que podiam atingir 3,80 m de lado e 2,20 m de profundidade, o que significa cetárias de grandes dimensões. No entanto, conhecendo o comprimento nordeste-sudoeste da cetária 5 (3,80 m), conhece-se a largura da fiada, e é possível estimar a capacidade aproximada da cetária 1, com 2,20 m de profundidade, e das cetárias 5, 6 e 7 considerando que a sua profundidade seria de 1,90 m (próximo da profundidade da cetária 3 que era de 1,94 m). No total, estas quatro cetárias teriam volumes respectivamente de 31,77 m3, 21,80 m3, 20,94 m3 e 14,15 m3.

Se a cetária 4 tivesse uma profundidade igual à da 3, teria um volume de 5,45 m3. Considerando que a cetária 3 era semelhante à 4, as cetárias teriam um volume estimado de 99,56 m3, valor correspondente a uma só fiada de cetárias quando a oficina teria pelo menos três.

Oficina 11 (Figs. 10 e 24)

A oficina 11 seria uma pequena unidade de produção tardia pois situa-se num ponto muito acima da cota das oficinas 1 e 2, e sobre uma grande duna que se acumulou contra a parede traseira do mausoléu, o que significa que não é anterior ao século III, data em que esse edifício foi construído, e provavelmente ao século IV, dado o tempo necessário para a formação da duna.

Devido à sua situação actual numa vertente inclinada, a maior parte da oficina já se terá desmoronado e não é possível depreender a forma da sua planta original. Sobressai, no entanto, a pequenez das suas cetárias. Actualmente apenas são visíveis três, cuja profundidade não ultrapassa 1,25 m, tendo a maior 1,98 m por 1,15 m de lado, com uma altura de 1,14 m. No seu conjunto têm um volume de apenas 7,11 m3. No entanto, as dimensões das construções actualmente visíveis, na tabela da Fig. 13, poderão estar bastante aquém das originais.

Fig. 24. Aspecto da oficina 11 (vista para oeste).

Fig, 25. Aspecto da oficina 12 (cetárias 1-10, vista para sudoeste).

Oficina 12 (Figs. 10 e 25)

A oficina 12, situada na praia e totalmente alagada nas marés vivas, conserva apenas uma fiada completa de cetárias, e vestígios de três cetárias das fiadas perpendiculares a esta. O seu comprimento (ou largura) é de 34,15 m e o comprimento (ou largura) do pátio é de 28,5 m. Esta oficina estava geminada com a oficina 13 e pertenceriam ambas à mesma fábrica de salga. Uma sondagem realizada nas traseiras da oficina em 2007 revelou que a entrada entre as cetárias 10 e 11 levava a uma área murada mas sem cobertura que seria um quintal com área de cultivo, eventualmente também uma área de armazenagem (Pinto, Magalhães e Cabedal, no prelo).

O levantamento arqueológico desta oficina, realizado em 2007 (Pinto, Magalhães e Cabedal, no prelo), permitiu escavar a cetária 3 e registar que media 4,12 m por 3,84 m de lado, com 2,20 m de profundidade, perfazendo essa cetária 34,8 m3 de capacidade. Multiplicando a profundidade de 2,20 m pelo comprimento e largura das outras dez cetárias com o traçado conservado, obtém-se um volume global de 276,83 m3 que corresponde apenas ao valor estimado de uma fiada de cetárias.

Pela sua configuração, supomos que a oficina fosse do mesmo tipo que as oficinas 1 e 2 com cetárias dispostas ao longo das quatro paredes e um pátio grande e largo em proporção à área total da oficina.

Os trabalhos arqueológicos realizados nesta área revelaram que esta oficina não tem qualquer sinal de remodelação e apenas laborou no Alto Império, tendo ficado abandonada após esse período.

Fig. 26. Aspecto da oficina 12 (cetárias 10-12) e da oficina 13 (vista para noroeste).

Fig. 27. Aspecto da oficina 14 (vista para sudoeste).

Oficina 13 (Figs. 10 e 26)

A oficina 13, geminada com a oficina 12, está muito pior conservada do que a anterior.

Apenas se conserva a base das paredes e algum fragmento de pavimento, mas é possível delinear sete cetárias, alinhadas com as cetárias 3-11 da oficina 12, o que permite reconstituir o seu limite sudoeste. O comprimento noroeste-sudeste das cetárias varia entre 3 m e 3,97 m, o que aponta para uma oficina semelhante à 12. No entanto, o seu estado de destruição desencoraja qualquer estimativa.

Articulando-se com a oficina 13 e estando situada numa área onde não há vestígios de ocupação do Baixo Império, trata-se sem dúvida de uma oficina do Alto Império.

Oficina 14 (Figs. 10 e 27)

A oficina 14 situa-se, tal como a oficina 11, a meio da vertente inclinada de uma duna, sendo certo que a maior parte da oficina já se terá desmoronado, e não é possível depreender o traçado original da sua planta. A sua situação a uma cota muito alta e as dimensões relativamente pequenas das cetárias, comparáveis às da oficina 11, sugerem que seja uma oficina do Baixo Império. As duas cetárias que sobreviveram ao desmoronamento da duna têm apenas preservada a largura completa de um lado, que é 1,27 m no caso da cetária 1 e 1,80 m no caso da cetária 2.

Fig. 28. Aspecto da oficina 15  (cetárias 1a e 1b, vista para sudoeste).

Fig. 29. Aspecto da oficina 16 (vista para sudoeste).

Oficina 15 (Figs. 10 e 28)

A oficina 15 seria bastante comprida, com, pelo menos, 22,50 m de comprimento, mas relativamente estreita, com cerca de 10,9 m de largura. O seu pátio, com 1,90 m de largura, seria muito estreito, em forma de corredor.

Conserva-se essencialmente parte da fiada noroeste de cetárias, tendo a fiada sudeste desaparecido quase totalmente. As cetárias mais a nordeste da fiada noroeste foram totalmente destruídas pelas marés, mas as cetárias mais a sudeste parecem estar conservadas no interior da duna. As duas pequenas que estão visíveis (1a e 1b) são fruto da subdivisão de uma cetária maior que tinha 3,40 m de lado. Ainda é visível, em corte, o nível do pavimento do pátio. Não é possível calcular o volume total de nenhuma das cetárias, nem estimá-lo com razoável probabilidade.

Não há dados sobre a data da sua construção mas a solidez das paredes, os sinais de remodelação e a cota baixa a que se encontra sugerem que tenha sido construída no Alto Império.

Oficina 16 (Figs. 10 e 29)

A oficina 16 situa-se a uma cota elevada, na vertente de uma duna em erosão, e já se desmoronou em parte. Apenas é visível a parede de uma cetária de pequenas dimensões e uma parede mestra 4,80 m a sudoeste, que poderá ser a parede que delimita a oficina a sudoeste. No entanto, não é possível depreender a disposição da oficina no seu todo.

Dado o reduzido tamanho da sua cetária, cuja única parede preservada tem apenas 0,90 m de lado, e a cota alta a que se encontra relativamente à oficina 15, muito próxima, depreende-se que seja uma oficina tardia, certamente do Baixo Império.

Oficina 17 (Figs. 11 e 30)

Situada na praia, ao alcance das marés, a oficina 17 está muito destruída e a sua parte melhor conservada está coberta de areia e vegetação. São visíveis, no entanto, duas fiadas de cetárias, com vestígios de seis tanques, separadas por um espaço onde, a um nível superior, se situaria o pátio.

A planta e as proporções do que é visível da oficina sugerem um pátio estreito e alongado, em forma de corredor, ao estilo da oficina 15. A largura da oficina é de 12 m e a largura do pátio de 3,40 m.

As cetárias situadas na praia, já muito destruídas, estão actualmente cobertas por uma espessa camada de areia, só tendo sido possível medir a cetária 1, que tem precisamente 3,63 m por 3,20 m de lado e 1,20 m de altura incompleta. No entanto, o levantamento topográfico do IPPAR mostra as dimensões das cetárias 2, 4 e 5. Trata-se, sem dúvida, de cetárias de grandes dimensões, mas não é possível estimar a sua capacidade de produção, apenas parte do volume da cetária 1.

Fig. 30. Aspecto da oficina 17 (vista para sudoeste).

Fig. 31. Aspecto da oficina 18 (vista para sul).

Oficina 18 (Figs. 11 e 31)

Situada em grande parte na praia, na zona intertidal, só são visíveis duas cetárias da oficina 18, uma muito destruída, de grandes dimensões (cetária 1 com 3,72 m por 4,16 m de lado), e outra coberta de areia e vegetação (cetária 2). A altura incompleta das paredes da cetária 1, 0,90 m, permite calcular o seu volume mínimo, que é 13,92 m3. No entanto, é provável que tivesse pelo menos 2 m de profundidade.

Não foi possível compreender a disposição original da oficina 18, nem sequer de que lado estaria o pátio e a fiada de cetárias oposta.

Oficina 19 (Figs. 11 e 32)

A oficina 19 tem duas cetárias visíveis, separadas por um espaço com 2 m de largura onde, a uma cota superior, se situaria o pátio. É nítido que estas duas cetárias pertenciam a duas fiadas distintas e paralelas, alinhadas no sentido nordeste-sudoeste, que têm continuidade sob a duna a sudoeste. Parece tratar-se de mais uma oficina com o pátio estreito e alongado, em forma de corredor.

Nenhuma das cetárias conserva as dimensões originais mas são grandes cetárias das quais se pode calcular a capacidade mínima. A cetária 1 media 3,80 m de comprimento por 1,70 m de largura incompleta e 1,20 m de profundidade também incompleta, o que resulta num volume mínimo de 7,75 m3. A cetária 2 tinha 3,45 m de comprimento por 3,10 m de largura e 1 m de altura incompleta, o que permite e calcular um volume mínimo de 10,70 m3. Dada a pouca visibilidade desta oficina, não é possível estimar a sua capacidade de produção original.

É nítido que a sudoeste da cetária 2 foi feita uma construção mais tardia, a uma cota superior à do topo da parede. A dimensão relativamente grande dos tanques, a cota baixa a que se encontra e o facto de apresentar estruturas de diferentes fases construtivas sugerem que a oficina seja do Alto Império.

Fig. 32. Aspecto da oficina 19 (cetária 2, vista para oeste).

Fig. 33. Aspecto da oficina 20 (cetárias 1-2, vista para oeste).

Oficina 20 (Figs. 11 e 33)

A oficina 20 é muito difícil de compreender pelo aspecto atípico das suas estruturas, que decorre de vários momentos de construção e remodelação, e do avançado grau de destruição. São nítidos os restos de duas cetárias que seriam parte de uma fiada orientada no sentido noroeste-sudeste.

A cetária 1 tem a parede sudoeste conservada até ao topo, e o revestimento dessa parede cobre o topo da parede e prolonga-se na horizontal para sudoeste formando um pavimento que cobre uma zona entulhada com pedras pequenas, configuração esta atípica, pois é o único exemplo de um pátio feito sobre um entulhamento e cujo pavimento está ao nível do topo da parede das cetárias.

É possível que seja fruto de uma remodelação mais tardia do espaço da oficina e não o pátio original. Sobre este pavimento assenta uma parede mais tardia. Este pavimento e o entulhamento subjacente estão adossados a uma estrutura pré-existente a sudoeste, com um canto arredondado e de interpretação difícil.

A sudoeste há um troço de parede paralelo à parede sudoeste da cetária 1 que pode delinear a parede nordeste de outra fiada de cetárias. Com efeito, a sudeste das cetárias 1 e 2 há um grande número de fragmentos de parede e pavimento de cetárias fora da sua posição original e são visíveis paredes de cetária in situ, na vertente da duna, que poderiam formar a fiada sudeste da oficina.

Na planta da Fig. 14 propõe-se, a tracejado, esta possível fiada. Esta oficina parece ser outra com o pátio em forma de corredor, mas dado o grau de destruição e a dificuldade de leitura é preferível não tirar conclusões sobre a sua organização espacial.

As cetárias parecem ser relativamente grandes tendo em conta que a cetária 1 tem 4,20 m por 2,50 m de lado mas a sua profundidade é apenas de 1,47 m. Esta cetária está subdividida por uma parede com 0,42 m de largura, revestida com opus signinum dos dois lados (perfazendo 0,50 m de espessura) que assenta sobre o seu pavimento e meia-cana. Note-se a utilização do opus signinum (com cerâmica triturada) muito pouco habitual nas oficinas de salga de Tróia e sem dúvida uma característica tardia.

Por conseguinte, o estado de destruição desta oficina apenas permite calcular o volume de uma cetária (15,44 m3), e não há dados seguros para estimar a sua capacidade original.

Fig. 34. Aspecto da oficina 21 (vista para sudoeste).

Fig. 35. Aspecto da oficina 22 (vista para sudoeste).

Oficina 21 (Figs. 11 e 34)

A oficina 21 tinha originalmente 19,40 m no sentido noroeste-sudeste mas não é possível saber se este era o seu lado mais comprido pois a parte nordeste da oficina está completamente destruída e desaparecida.

Adivinha-se com razoável certeza uma fiada de cetárias ao longo da parede sudoeste. O pilar que existia a noroeste da cetária 1 sustentava a cobertura dessa fiada de cetárias, que devia ser composta por seis cetárias. As únicas cetárias visíveis, a 1 e a 2, encostavam às cetárias dos cantos oeste e sul, e pertenciam a fiadas orientadas no sentido sudoeste-nordeste. Entre as cetárias 1 e 2 e a fiada sudoeste, actualmente escondida pela areia, subsistem partes do pavimento do pátio.

Numa segunda fase, a oficina foi subdividida em duas oficinas mais pequenas por uma ou duas paredes que assentaram no pavimento do pátio. As paredes da nova oficina 21A, a sudeste, mantêm a altura original. A parede sudoeste conserva os orifícios onde encaixavam as traves de madeira que sustentavam o telhado e a parede sudeste conserva uma janela-lucernário. Como estas paredes apenas circundam a oficina 21A, depreende-se que sejam da fase de segmentação das oficinas.

Na segunda fase, a oficina 21A, a sudeste, ficou com 10 m de comprimento e a 21B, a noroeste, com 9,40 m de comprimento.

Dada a largueza do pátio, esta oficina, na sua fase original, seria do tipo de oficina com o pátio grande e proporcionado, como as oficinas 1 e 2, e provavelmente teria cetárias dispostas ao longo das quatro paredes. As cetárias não são das mais profundas, com 1,50 m e 1,70 m de altura, mas a cetária 2, que conserva as dimensões originais, é relativamente grande, com 3,40 por 2,70 m de lado, e a cetária 1 seria um pouco maior com um comprimento mínimo de 3,80 m. No que respeita à sua capacidade de produção, apenas se conhece o volume incompleto das duas cetárias visíveis, 31,21 m3 no total. Mas calculando que a oficina tem pelo menos a fiada sudoeste com seis cetárias sob a areia e teria pelo menos mais uma cetária em cada fiada perpendicular, se cada uma dessas oito cetárias tivesse um volume de apenas 13 m3, pode-se estimar um volume de 135,21 m3. Na verdade, pensamos que a oficina tivesse também uma fiada nordeste de cetárias, não só porque há outras plantas desse tipo em Tróia, mas também porque há uma cetária toda fragmentada, já desligada do resto da oficina, no espaço equivalente a essa fiada.

Embora não se tenham recolhidos dados sobre a datação da oficina, supõe-se que seja do Alto Império, tendo sido segmentada e remodelada no Baixo Império.

Oficina 22 (Figs. 11 e 35)

Com 20,80 m de comprimento, a oficina 22 tem cetárias de grandes dimensões, três delas com mais de 4,50 m de lado (4,52 m, 4,53 m e 4,57 m) no sentido nordeste-sudoeste, e com uma profundidade entre 1,92 e 2,10 m. Conservam-se, no todo ou em parte, sete cetárias. A capacidade de produção das cetárias 2, 4 e 5 perfaz 96,18 m3. Estimando que as outras quatro visíveis tivessem uma média de 30 m3 cada, a oficina teria uma capacidade de produção mínima de 215 m3.

O traçado global da oficina não é muito óbvio. Dada a grande dimensão das cetárias, e o espaço necessário para a entrada a nordeste, é possível que não tivesse uma fiada noroeste-sudeste, e que tivesse as cetárias dispostas ao longo de apenas três lados do pátio, como a oficina 6, mas é uma suposição. Esta oficina não tem sinais de remodelação e não existem dados referentes à sua cronologia, mas a grande dimensão das suas cetárias, a sua situação a uma cota baixa e junto a outras oficinas com sinais de remodelação são fortes indicadores de que seja igualmente do Alto Império.

Oficina 23 (Figs. 12 e 36)

A oficina 23 era uma grande oficina com um poço no pátio que lembra a oficina 1. Tinha certamente cetárias ao longo das quatro paredes e um pátio largo. Actualmente está muito destruída pelas marés.

Conservam-se apenas parte de dez cetárias cujos lados medem entre 3,95 e 4,25 m, à excepção das cetárias geminadas 7 e 8 (com 1,70 m e 1,85 m por 3,95 m) e da grande cetária 1 com um comprimento maior que 6,35 m por 4,23 m, lembrando a cetária 1 da oficina 6. A única profundidade que foi possível medir com precisão foi a da cetária 2, com 2,12 m e um volume de 35,59 m3.

Se estimarmos que as outras cinco cetárias mensuráveis (1 e 5-7) tinham cerca de 2 m de profundidade, no seu conjunto teriam cerca de 160 m3 de capacidade, o que pode ser menos de um terço da capacidade real da oficina.

Embora não se tenham recolhido dados concretos, a oficina tem sinais de remodelação e pelas suas dimensões é certamente do Alto Império.

Oficina 24 (Figs. 12 e 37)

A oficina 24 encosta à oficina 23, partilhando ambas a parede mestra que as separa e lembrando a ligação entre as oficinas 1 e 2 e também 12 e 13. No entanto, dela resta apenas um canto, o que não permite grandes ilações. Restam vestígios de três cetárias, mas apenas se conserva a largura completa da cetária 2, que é 3,87 m.

Fig. 36. Aspecto do poço e canto norte da oficina 23 (vista para norte).

Fig. 37. Aspecto da oficina 24 (vista para sudoeste).

Oficina 25 (Figs. 12 e 38)

A oficina 25, a sudeste das Instalações Navais de Tróia (Fuzileiros), é a última oficina a sudeste da grande estação arqueológica de Tróia. Conserva apenas parte de uma cetária e parte de uma bacia de limpeza com revestimento semelhante ao da cetária. Tendo em conta que é visível a parede mestra a sudeste da cetária e que a bacia de limpeza se situa a noroeste desta, depreende-se uma fiada de cetárias no sentido sudoeste-nordeste e que o pátio se situava a noroeste desta. A cetária é de grandes dimensões, com 3,30 m de comprimento, 2,20 m de largura incompleta e 2,26 m de altura, o que perfaz um volume mínimo de 16,41 m3. Não é claro se outras estruturas visíveis na área (não representadas na planta) faziam parte da oficina ou da fábrica de salga em que esta se inseria.

Fig. 38. Aspecto da oficina 25 (vista para sudoeste).

ASPECTOS CONSTRUTIVOS DAS OFICINAS

No que respeita ao tipo de construção, pode-se dizer que, no geral, as oficinas de salga de Tróia foram construídas em profundidade no solo arenoso, exigindo a escavação de largas áreas. O nível de circulação nos pátios situava-se acima do fundo das cetárias e um pouco abaixo do topo das paredes destas, verificando-se desníveis que podem atingir 1,5 m.

O primeiro passo da construção foi cobrir a areia de base com uma camada de argila avermelhada, visível sob os pavimentos de várias oficinas muito degradadas. As paredes exteriores foram feitas em opus incertum, com blocos não aparelhados ou grosseiramente talhados, na maioria dos casos com ligante argiloso. As paredes internas das cetárias são geralmente feitas com pedras mais pequenas, por vezes num opus vittatum irregular feito com pequenos blocos de pedra talhados de forma pouco regular, e quase sempre ligados com argamassa de cal, e só excepcionalmente com ligante argiloso, como é o caso na oficina 2. As principais pedras utilizadas são o calcário

Note-se que todo o material de construção, seja pedra, argila, tijolos ou telhas, teve que ser trazido da outra margem, visto a península de Tróia ser uma formação geológica exclusivamente arenosa.

As cetárias têm uma forma quadrada ou rectangular. Nalgumas oficinas as fiadas de cetárias parecem formadas por módulos quadrados que ocasionalmente são divididos em dois tanques rectangulares geminados (bem visível nas oficinas 12 e 23, por exemplo). Noutras, todas as cetárias são rectangulares, como no caso das oficinas 3 e 5. Mesmo nas oficinas em que a forma das cetárias é tendencialmente quadrada, um dos lados é ligeiramente maior do que o outro, como nos casos das oficinas 1 e 22.

Na realidade, as medidas das cetárias da mesma oficina e da mesma fiada são raramente regulares, verificando-se uma variabilidade relativamente grande no volume das cetárias, o que sugere que a construção das oficinas não seguiu um projecto rigoroso.

Algumas oficinas têm uma cetária muito maior do que as restantes, como é o caso da cetária 7 da oficina 5 (5,37 m por 3,70 m com uma profundidade de 2,30 m), da cetária 1 da oficina 6 (7,45 m por 3,70 m com 2,07 m de profundidade) e da cetária 1 da oficina 23 (6,35 m de comprimento incompleto por 4,23 m de largura com profundidade indeterminada). Estas grandes cetárias têm paralelo na cetária 2 da oficina da Casa do Governador (Belém), com 6,30 m por 3,40 m de lado e 1,60 m de altura, tendo sido posta a hipótese de ter a função de depósito de água (Filipe e Fabião, no prelo).

As cetárias foram revestidas com uma argamassa de cal com brita calcária, que preferimos não designar por opus signinum para não confundir com a argamassa com cerâmica triturada, de cor rosada, conhecida por esse nome. Excepcionalmente, foram usados pequenos seixos rolados em vez de brita, no caso da oficina 9. Os cantos interiores dos tanques eram arredondados e a junção do pavimento com as paredes era colmatada por uma meia-cana horizontal em argamassa igual ao restante revestimento.

Esta opção pela argamassa com brita calcária repete-se na região de Setúbal, na região de Lisboa, em Sines e Lagos, pelo menos no Alto Império. Em Setúbal, foi utilizado na fábrica de salga da Travessa de Frei Gaspar (só no século IV ou V se usou opus signinum) (Silva, Soares e Soares, 1986) e também no Creiro (Arrábida) (Silva e Coelho-Soares, 1987); foi utilizado em Sines (à excepção de um pequeno tanque revestido a opus signinum numa das cinco oficinas conhecidas, a oficina B do Largo João de Deus) (Silva e Coelho-Soares, 2006), na Rua dos Correeiros (Lisboa) (Bugalhão e Sabrosa, 1995) e em Belém, na Casa do Governador (Filipe e Fabião, no prelo), a título de exemplo.

Em Lagos, as cetárias da Rua Silva Lopes da primeira fase de construção são revestidas a argamassa com pequenos seixos rolados (Ramos, Almeida, Laço, 2006, pp. 87-88). Este tipo de argamassa com brita calcária, e excepcionalmente seixos rolados, foi utilizada em Tróia ao longo de todo o período romano, não se conhecendo uma única cetária revestida a opus signinum, nem mesmo nas oficinas consideradas do Baixo Império. A cetária 8 da oficina 7 tem uma cetária com pavimento em opus signinum grosseiro, mas é fruto de uma remodelação visto que sobre ele foi construído um pequeno tanque semi-circular e numa das paredes da cetária foi aberta uma porta (Silveira et al., no prelo). Conhecem-se, no entanto, alguns remendos em opus signinum em paredes de tanques das oficinas 1C, 6 e 10. A oficina 20, por sua vez, tem ténues vestígios, num dos seus tanques, de uma parede de subdivisão tardia revestida a opus signinum.

ORGANIZAÇÃO ESPACIAL NAS OFICINAS DE SALGA

Todas as oficinas com o traçado completo a descoberto apresentam planta regular e simétrica, presumindo-se que todas tivessem essa característica. No entanto, distinguem-se vários modelos de oficinas.

As oficinas 1 e 2 sugerem que o modelo das oficinas grandes de Tróia era um compartimento rectangular, com cetárias dispostas ao longo das quatro paredes, e um pátio grande e largo em proporção à área total da oficina. Assim, a oficina 1, com 1106 m2 de área, tem um pátio com 514,5 m2, ocupando quase metade da área total, enquanto a oficina 2, com 346,5 m2 de área tem um pátio que ocupa 101,4 m2, ou seja, quase um terço da área total. Outras oficinas com plantas do mesmo tipo seriam a 4, a 12, a 21, a 22 e certamente a 23. Este tipo de oficina tem um paralelo próximo na oficina da Casa do Governador (Belém) (Filipe e Fabião, no prelo), embora essa tenha uma planta rectangular um pouco mais alongada.

Nestas oficinas, o pátio seria um espaço de trabalho de preparação do peixe, deposição temporária do sal e envasamento dos produtos retirados dos tanques e provavelmente também de filtragem dos molhos.

A oficina 6 é também uma oficina relativamente grande mas apresenta um modelo alternativo, com cetárias apenas em três lados. Além disso, as suas fiadas laterais abrem ligeiramente em V, o que se deverá ao facto desta oficina ter sido instalada entre ruas e edifícios pré-existentes.

As oficinas mais pequenas têm geralmente cetárias dispostas em U, ao longo de três lados do pátio. O melhor exemplo é a oficina 3, completa, mas também a oficina 5 devia seguir esse modelo.

No caso da 3, o pátio ocupa menos de um quinto da área total, mas também estes pátios têm largueza para serem áreas de trabalho. A planta em U, bastante comum, lembra o exemplo paradigmático da oficina de Cotta (Ponsich e Tarradell, 1965, p. 68).

A oficina 15 é um exemplo de oficina com pátio estreito e alongado, entre duas fiadas de cetárias, em forma de corredor, com 1,35 m de largura, que lembra a oficina da Rua Silva Lopes, em Lagos, com uma “zona central de acesso ou de trabalho” estreita e alongada, designada por “corredor”, com entrada num dos lados mais estreitos e tanques ao longo dos outros três lados (Ramos, Almeida, Laço, 2006, pp. 87-89). No entanto, o pátio da oficina 15 será proporcionalmente mais estreito.

Em Tróia, também as oficinas 17 e 19, e possivelmente a 20, têm esta disposição. No entanto, nenhuma está completamente preservada e não se conhece, por isso, uma planta completa deste tipo de oficina. Estes espaços internos das oficinas em forma de corredor mais dificilmente seriam espaços de trabalho que não fosse o de encher os tanques com peixe e sal e envasar as ânforas com os produtos retirados das cetárias.

As oficinas 7, 8, 9, 10, 18, 24 e 25 estão demasiado destruídas para que se possa depreender a sua organização espacial.

Nota-se, nas oficinas de Tróia, a ausência do modelo com fiada dupla de cetárias, que se verifica em Setúbal na Travessa de Frei Gaspar (Silva, Soares e Soares, 1986), na Oficina A do Largo João de Deus e na Oficina A da Rua Ramos da Costa em Sines (Silva, Coelho-Soares e Soares, 2006) e na unidade 1 do complexo fabril da Rua dos Correeiros (Bugalhão, 2001, p. 70), a título de exemplo.

O espaço disponível terá afectado a certo ponto a planta das oficinas. Enquanto as oficinas 1 e 2, e mesmo a 4, parecem ter-se espraiado em zonas amplas, sem constrangimentos de espaço, outras parecem ter sido condicionadas pelos espaços pré-definidos em que se inseriram. Os exemplos mais óbvios são as oficinas 3, 5 e 6, construídas em lotes situados entre vielas, no caso das oficinas 3 e 6, ou entre um edifício e uma viela, no caso da oficina 5. No caso das oficinas muito destruídas actualmente na orla do estuário, não há visibilidade suficiente para se poder avaliar.

No que respeita às oficinas situadas na vertente de dunas, a cotas altas, têm cetárias muito pequenas, certamente tardias, mas não é possível visualizar o seu traçado global.

Pode-se dizer que as oficinas de Tróia têm tendência para uma planta regular e simétrica mas apresentam uma relativa variabilidade e irregularidade no seu traçado e nas suas proporções.

A DATAÇÃO DAS OFICINAS DE SALGA

Só as oficinas que foram alvo de trabalhos arqueológicos bem documentados oferecem dados cronológicos. É o caso das oficinas 1 e 2, alvo de sondagens e interpretação que definiram que a sua fundação ocorreu no Alto Império. Os trabalhos descritos na primeira parte deste estudo mostraram que a sua construção começou pelo menos na época de Tibério. As oficinas 12 e 13 revelaram uma ocupação exclusivamente no Alto Império e as oficinas 4 e 6 são igualmente dessa época. A oficina 4 pela sua dimensão e pelas extensas remodelações que sofreu, e a oficina 6 porque foi parcialmente coberta por um edifício do Baixo Império, tendo sofrido alterações na parte que ficou a descoberto.

No que respeita às oficinas 3 e 5, de dimensão média, parece-nos provável que sejam igualmente do Alto Império pois articulam-se com um rua que ladeia a oficina 6 e com os edifícios que antecederam a basílica paleocristã.

As oficinas 11, 14 e 16, pela sua situação em pontos altos de dunas, terão sido construídas tardiamente, certamente no Baixo Império, e destacam-se pela pequena dimensão das suas cetárias.

Esse facto e a tendência para a segmentação das grandes oficinas e até de algumas grandes cetárias, sugere que já não se construíram grandes oficinas em época tardia.

E como datar as oficinas que estão hoje na orla do estuário do Sado, meio destruídas pelas marés? O abandono precoce das oficinas 12 e 13 no final do Alto Império explicar-se-á pela subida do nível das águas na embocadura do Sado desde a época romana. É provável que as outras oficinas implantadas a uma cota muito baixa (oficinas 7-10, 15 e 17-25), hoje na praia à mercê das marés, e que têm todas uma construção sólida e grandes cetárias, tenham sido construídas no Alto Império, com continuidade de utilização, muitas delas com remodelações, no Baixo Império.

A CAPACIDADE DE PRODUÇÃO DAS OFICINAS DE SALGA NO ALTO IMPÉRIO

A segmentação das grandes oficinas, e por vezes das próprias cetárias, na primeira metade do século III, como se verificou nas oficinas 1 e 2, sugere que o complexo de produção de Tróia viveu o seu auge durante os séculos I-II. As oficinas que são fruto da segmentação de grandes oficinas, que não são tratadas neste estudo, e as que são nitidamente tardias (oficinas 11, 14 e 16) têm uma capacidade de produção nitidamente reduzida.

Voltando ao objectivo inicial de dar uma noção da capacidade de produção do complexo de salgas de peixe provavelmente fundado por um Cornelius Bocchus, considera-se, pelas razões acima apontadas, que as infra-estruturas de produção do complexo de salgas de peixe de Tróia do Alto Império hoje conhecidas são as oficinas 1-10, 12-13, 15 e 17-25.

Pretende-se calcular a capacidade de produção das oficinas que resulta da soma do volume das suas cetárias, tendo consciência de que a capacidade máxima não terá sido utilizada frequentemente ou mesmo nunca, o que não significa que não seja indicativa em termos comparativos.

Reunidos os dados relativos ao Alto Império na tabela da Fig. 39, verifica-se uma capacidade de produção comprovada de 1398 m3 e estima-se uma capacidade de produção com razoável probabilidade de 3209 m3, à qual se deve somar a capacidade real de produção da oficina 3, obtendo um valor de 3312 m3, que ficará muito aquém da capacidade real deste centro produtor, tendo em conta que não foi possível registar qualquer valor para as oficinas 13, 15 e 24 e não se fizeram estimativas relativamente às oficinas 8, 17-20 e 25.

A contagem das cetárias hoje visíveis aponta para um mínimo de 153 existentes no Alto Império, embora de dimensões muito variáveis.

Estes dados permitem comparar Tróia com algumas outras oficinas e centros produtores de salgas e molhos de peixe com significado no Alto Império (>g. 40), embora se trate de uma comparação nem sempre muito significativa, dadas as características diversas dos sítios de que se dispõem dados, e a insuficiência de dados sobre outros complexos produtores. Apontam-se sítios de referência na Mauritânia Tingitana como Lixus (Ponsich et Tarradell, 1965, pp. 9-37) e Cotta (ibid., pp. 5-68) mas também Sabratha, na Tripolitania, um aglomerado urbano com múltiplas pequenas unidades de produção (Wilson, 2007). À Bética, vai-se buscar o exemplo clássico de Baelo Claudia (Bolonia), onde as unidades de produção estão integradas nas próprias casas do bairro industrial, e cuja capacidade de produção é apontada sem distinção clara de épocas, indicando-se que seria superior na época tardo-romana (Bernal et al. 2007, p. 213). Na Lusitânia, é incontornável a Casa do Governador, em Belém (Filipe e Fabião, no prelo) pela sua dimensão excepcional e pelos dados quantitativos que oferece; a Travessa de Frei Gaspar (Setúbal) (Silva, Soares e Soares, 1986) e o Creiro (Arrábida) pela sua proximidade a Tróia, e porque permitiram a estimativa da sua capacidade de produção (Étienne, Makaroun, Mayet, 1994, p. 109); Sines por revelar um conjunto de oficinas relativamente próximas como as de Tróia (Silva, Coelho-Soares e Soares, 1996); e Lagos, donde se indica a Rua Silva Lopes (Ramos, Almeida, Laço, 2006), apesar de não espelhar a importância do importante aglomerado industrial em que se insere. Omitem-se sítios importantes como Olisipo, onde se conhecem várias unidades de produção que laboraram no Alto Império (Bugalhão, 2001, pp. 52-54) mas faltam dados quantitativos significativos para esse período.

Nesta tabela, Tróia destaca-se, em primeiro lugar, por ser o sítio com mais unidades de produção identificadas. Pode-se dizer também que será o centro produtor com unidades de produção ou oficinas com maior dimensão, tendo em conta que as 18 unidades de Sabratha têm um volume de apenas cerca de 100 m3, o que indica serem muito pequenas, e mesmo Lixus tem unidades de produção com uma capacidade média de 100 m3. Embora Tróia tenha uma unidade com essa capacidade (oficina 3), tem várias com capacidade mínima comprovada (oficinas 1, 5 e 6) ou capacidade estimada (oficinas 4, 7, 22 e 23) nitidamente superiores (Fig. 13).

Nesta comparação, destaca-se pela sua dimensão a oficina da Casa do Governador, em Belém, que ocupava uma área (1525 m2) maior do que a da oficina 1 de Tróia (1106 m2). No entanto, talvez não tivesse uma capacidade de produção tão elevada quanto esta pois embora as duas oficinas estejam incompletas, as 19 cetárias escavadas de Tróia têm um volume de 465 m3 (Étienne, Makaroun e Mayet, 1994, pp. 75-76) enquanto as 34 cetárias escavadas da Casa do Governador têm um volume de 335 m3 (Filipe e Fabião, no prelo).

As oficinas de Setúbal, Creiro e Sines, apesar de situadas na mesma região ou em região próxima, são bastante mais pequenas do que as oficinas de Tróia. Já a oficina de Cotta tem uma capacidade de produção comparável à capacidade estimada da oficina 5 de Tróia, que se pode considerar de dimensão média neste complexo de produção.

Não havendo o propósito de fazer uma comparação exaustiva, fica o contributo para a uma melhor noção da dimensão do complexo de produção de Tróia.

Fig. 39. Número de cetárias e capacidade de produção das oficinas consideradas do Alto Império.

Fig. 40. Comparação da capacidade de produção de Tróia com outros sítios ou centros de produção.

CONCLUSÃO

Os dados recolhidos no trabalho de identificação e caracterização das oficinas de salga de Tróia só vêm reforçar o carácter excepcional deste centro de produção de conservas e molhos de peixe, onde se conhecem à data 25 oficinas de salga com uma capacidade de produção preservada e mínima de 1398 m3 no Alto Império, aquém da sua capacidade real, mas sem paralelo conhecido no mundo romano.

Se a nova cronologia de ocupação do espaço envolvente da oficina 2, do período de Tibério, permite aproximar a construção do complexo industrial do Cornelius Bocchus que aí foi homenageado, também o excepcional investimento que este complexo implicou, ou mesmo só a grande fábrica composta pelas oficinas 1 e 2, exige que tenha sido construído por uma pessoa, família ou sociedade com um excepcional poder económico e garantia do escoamento dos produtos. Sem o  provar, os novos dados dão consistência à hipótese de o Cornelius Bocchus homenageado em Tróia ter tido um papel fundamental na fundação do complexo de salgas de peixe aí situado.

O COMPLEXO INDUSTRIAL DE TRÓIA DESDE OS TEMPOS DOS CORNELII BOCCHI

Inês Vaz Pinto, Ana Patrícia Magalhães, Patrícia Brum
Categories
The Roman influence on Sado

An overview of the fish-salting production centre at Tróia (Portugal)

An overview of the fish-salting production centre at Tróia (Portugal)

Inês Vaz Pinto, Ana Patrícia Magalhães, Patrícia Brum

in FISH & SHIPS

Bibliothèque d’Archéologie Méditerranéenne et Africaine – 17

Production and commerce of salsamenta during Antiquity

éditions errance | Centre Camille Jullian

 

Introduction

The site of Tróia is located in the southwestern coast of Portugal on a sandy peninsula that separates the estuary of the Sado River from the Atlantic Ocean (fig. 1 and 2). In Roman times this sand spit was probably still a line of islands and the Roman settlement was possibly in the island of Achale referred in this area by Rufus Avienus in Ora Maritima (v. 182-184) 1.

It was certainly part of the territory of the civitas of Salacia (modern Alcácer do Sal) and the closest urban centre, c. 4 km away across the waters of Sado River, was the city of Caetobriga (modern Setúbal).

The heavy erosion the site suffers from the tides coming into the Sado estuary strongly contributed for its early discovery. Tróia appears in the literature since the 16th c. as a Roman settlement with fish-salting vats 2 and is frequently visited and referred by authors in the following centuries 3.

The first acknowledged excavations took place in the 18th c. by future Queen D. Maria I 4 and in the 1850’s an important series of excavation campaigns were carried on by Sociedade Archeologica Lusitana, from Setúbal.

The main results of these works were the discovery of habitation buildings and a bath complex. In the 20th c., from 1948 up to the 70’s, excavations were carried on by the directors of the today National Museum of Archaeology, exposing, in particular, several fish-salting factories, the bath complex, cemeteries and a Christian basilica.

A number of articles on specific aspects and materials resulting from these works were published, but only in 1994 was there a consistent presentation and interpretation of the industrial complex by R. Étienne, Y. Makaroun and F. Mayet 5.

In 2006 began a new project, promoted by troiaresort, for the conservation and presentation of the Roman ruins to the public. The necessary archaeological works, carried on by the authors, provided new information and an overall perception of the site that justifies this updated overview of the site of Tróia. It will focus in particular on the importance of the fish-salting facilities, the occupation rhythms and the nature of the settlement.

1. Referred by Alarcão 2004, p. 323.
2. Barreiros 1561; Resende 1593.
3. Castelo-Branco 1963.
4. Costa 1933, p. 19.
5. Étienne, Makaroun, Mayet 1994.

Fig. 1. Location of Tróia (www.googleearth.com)

Fig. 2. Aerial photo of the northwest end of the peninsula of Tróia © Troiaresort.

1. A large fish-salting production centre

The environment of Tróia is highly favorable to fishsalting production. The shores of the Sado River have a long tradition of high quality salt exported in large quantities and its estuary and the surrounding ocean waters are extremely rich in fish up to this day providing an important fishing activity.

In 1987 J. Edmondson referred the site of Tróia as a vast fish-processing complex but only presented a rather late workshop resulting from the segmentation of a larger one 6. In 1994 R. Étienne, Y. Makaroun and F. Mayet documented the evolution of two large “factories”, presented also a small one and referred several others in the shore of the estuary demonstrating Tróia as the largest fish-salting production centre in the West 7.

A recent survey of the fish-salting facilities at Tróia 8, either uncovered by excavations or exposed by the tides, revealed twenty five “fish-salting workshops” or production units, that is, compartments with vats along the walls around a patio. Sometimes workshops were connected by a corridor (e.g. workshops 1 and 2 (fig. 3)) or in the same building (e. g. workshops 12 and 13 (fig. 4)) and it is assumed that they belonged to the same “factory”. But for most workshops it is impossible to know if they were autonomous or belonged to more complex facilities, or if distinct workshops had the same management. In the 3rd c. or later the large workshops were divided in smaller units not always easy to define and count.

Fig. 4. Fish-salting factory with workshops 12 and 13 (1st – 2nd c.) (A. P. Magalhães based on J. L. Madeira (Pinto, Magalhães, Cabedal in press)).

Fig. 3. Fish-salting factory with workshops 1 and 2 in its three phases (A. P. Magalhães based on Étienne, Makaroun and Mayet, 1994, fig. 51 and J. L. Madeira (2008, unpublished).

The fish-salting workshops, located inland or more often next to the waterline, spread along the Sado estuary shoreline (fig. 5). They vary considerably in size but only three types have been recognized.

The most common type is a four-side vat workshop with a rectangular plan with lines of vats along the walls and around a proportionate patio. Some would be quite large, like workshops 1, 4, 12, 13 and 23 (fig. 6), and others smaller, like workshops 2 and 21 (fig. 7).

Fig. 5. Location of fish-salting workshops at the site of Tróia (A. P. Magalhães (www.googleearth.com)).

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Fig. 6. Large four-side vat workshops with proportionate patios (A. P. Magalhães based on topographical survey by IPPAR (2006, unpublished)).

The second type is a U-shaped workshop with vats along three walls around a patio with the entrance in its longer side, like workshops 3, 5, 6 and possibly others rather incomplete like 10 (fig. 8).

The third type, with no complete example preserved, has two parallel lines of vats separated by a narrow patio or corridor and is probably also U-shaped, with a short line of vats in one top. There is no complete example but workshops 15, 17, 19 and 20 fit in this type and workshop 9 may be an example of its top (fig. 9).

Nine very incomplete workshops were not classifiable because they may fit in more than one type (fig. 10).

Since workshop 2 dates from the Tiberian period, and is the earliest building known at Tróia, we know the rectangular four-side vat workshop was built at Tróia since the beginning of the production centre. Workshop 1 was connected and therefore contemporaneous to workshop 2, and workshops 12 and 13 were abandoned in the 2nd c., meaning the larger and smaller version of the four-sided vat workshop were both common in the 1st-2nd c. All but 12 and 13 were divided in smaller workshops certainly in the 3rd c. for workshops 1 and 2, and probably at the same time for the others.

Even if no other workshop is dated, the three-side vat U-shaped workshop is also certainly from the 1st – 2nd c. since workshop 6 was divided in smaller units with a vat divided in a second moment, and was abandoned in the early or mid 4th c. Since we believe the workshops built at a low level, today in the waterline (workshops 3, 5-10,12-13, 15, 17-25) and most of them with large vats, are from the 1st – 2nd c., workshops 3 and 5 must be also from the first phase. In what concerns the third type, it includes another four workshops on the waterline, some of them were subdivided in a second moment (19 and 20) or with a vat subdivided (15) and therefore they must also belong to the first phase.

Only three workshops with very small vats located over sand dunes at higher levels (11, 14 and 16 (fig. 10), too incomplete to be classified in any type, are certainly late and may date to the 4th – 5th c.

Therefore the three types recognized are certainly from the 1st – 2nd c. Yet the four-side vat type may be slightly earlier at Tróia since workshops 1, 2 and 4 seem to occupy larger areas, but this is a mere hypothesis.

Fig. 10. Unclassifiable workshops (A. P. Magalhães based on topographical survey by IPPAR (2006, unpublished)).

Fig. 7. Four side vat workshops with proportionate patios (A. P. Magalhães based on topographical survey by IPPAR (2006, unpublished), Étienne, Makaroun and Mayet, 1994, fig. 51 and J. L. Madeira (2008, unpublished)).

Fig. 8. Three-side vat U-shaped workshops with the entrance on the large side of the patio (A. P. Magalhães based on topographical survey by IPPAR (2006, unpublished)).

Fig. 9. Workshops formed by two lines of vats separated by a narrow patio or corridor, probably U-shaped (A. P. Magalhães based on topographical survey by IPPAR (2006, unpublished)).

Since all workshops except for the small 11, 14 and 16 are considered from the 1st – 2nd c., it means the fishsalting production centre of Tróia reached its highest production capacity in that period. Measuring the preserved vats (length, width and depth) from the original workshops and calculating their volumes results in a minimum production capacity of 1,429 m3 but only 80 of the 165 visible vats were measurable (fig. 11). With this production capacity Tróia surpasses the largest recognized western fish-salting production centre at Lixus, with a capacity of 1,013 m3 9. Since no larger centre was yet discovered in the Mediterranean, in the Black Sea or elsewhere, Tróia was certainly one of the largest fish-salting production centres of the Roman Empire in the 1st – 2nd c. AD.

This high production capacity at Tróia is due not only to the number of workshops but also to the large size of many of the vats. Twenty four measurable vats from six workshops (1, 4, 5, 6, 12 and 22) had a depth of 1.90 to 2.30 m and an inside volume between 20 m3 and 35 m3 while eight vats from five workshops had a volume over 35 m3 with similar depth. Two of these were exceptionally large: workshop 23 vat 1 (7.03 x 4.25 x 2.25 m) 10 had a capacity of 67.22 m3 and workshop 6 vat 1 (3.70 x 7.45 x 2.07 m) had a capacity of 57.06 m3.

Other workshops, on the other hand, had smaller ones, like workshop 2, whose largest vat was 1.38 m deep with a capacity of just 12.19 m3.

After the rupture of the late 2nd – early 3rd c., discussed in the following pages, some workshops were abandoned, many were subdivided and some had vats divided in smaller ones meaning a downsizing of Tróia’s production capacity.

Not knowing the moment of abandonment of many of the workshops on the shoreline, we prefer not risking a calculation of the general production capacity of Tróia after the 2nd c. for now. But the factory with workshops 1 and 2, the best studied even if not fully excavated, is an example of the effects of the economic retraction that affected Tróia after the 1st – 2nd c. production peak (fig. 12), even if the table presented only considers fully preserved vats and therefore excludes the non-excavated vats of workshop 1 and thirteen visible but not measurable vats of workshop 2.

According to these numbers, workshops 1 and 2 together suffered a reduction in their volume of 1/8 of their initial capacity, but workshop 2a managed, in the third phase, to triplicate its capacity, suggesting economic growth in the 4th c.

Other areas were more affected. The abandonment of workshops 12 and 13, some of the peripheral workshops, after the 2nd c., may indicate a shrinking of the occupation area. And the inactivation of workshop 6 in the first half of the 4th c. suggests a more drastic production reduction that was not at all compensated by the very small new workshops 11, 14 and 16.

Fig. 12. Production capacity of workshops 1 and 2 in their three phases.

Fig. 11. Area, number of vats and production capacity of the workshops considered from the 1st – 2nd c.

2. The rhythms of occupation

The consistent study and interpretation by R. Étienne, Y. Makaroun and F. Mayet of the fish-salting factories uncovered at Tróia revealed three phases of occupation, the first one in the 1st – 2nd c., the second corresponding to the 3rd c. – early 4th and the third to the 4th and 5th c. 11

The research developed by the authors from 2007 to the present confirmed these conclusions bringing more evidence, more detail and sometimes more precision to the dating.

2.1. The first phase (1st – 2nd c.)

New data concerning the beginning and the end of the first phase of occupation of the large factory of workshops 1 and 2 resulted from works in workshop 2 and in the storeroom area next to it.

An excavation in this area, next to the northeast wall of workshop 2 (fig. 13), exposed stratigraphic units with Italic type terra sigillata Consp. 22 and 25.1, one fragment of the South Gaulish terra sigillata cup form Drag. 27, Italic and Baetican Dressel 2-4 and regional Dressel 14 var. A amphorae that point to a date in the Tiberian period. They date the construction of workshop 2 and since these are the earliest levels ever detected in Tróia, they also date the founding of the production centre at Tróia for now 12.

That also means Tróia is the earliest fish-salting centre so far known in the low valley of the Sado river but contemporaneous to amphora kilns in Largo da Misericórdia (Setúbal) 13 and Abul (Alcácer do Sal) 14, located on the other shore of the river where clay was abundant. These kilns would provide Tróia, always dependent on amphorae made on the other shore.

The large number of workshops believed to have been built and active during this phase suggests great economic activity. The only change detected in the course of this period is the digging and building of the well located in the patio of workshop 1 15. A trench opened for conservation purposes along the wall of the staircase of that well revealed a stratigraphy with three successive floors (fig. 14). The earliest one (unit [738]) covered the layers related to the construction of the well with a number of ceramics from the 1st – 2nd c. with several fragments of Gaulish terra sigillata with marks, but also 2nd c. amphorae, the regional Dressel 14 var. C and Dressel 20 from Hadrian’s period, meaning the well was most probably built in the first half of the 2nd c.

It accounts for the progressive investment in this large workshop along this phase.

10. Étienne, Makaroun, Mayet 1994, p. 99.

11. Étienne, Makaroun, Mayet 1994.

12. Pinto, Magalhães, Brum 2011, p. 135-138.

13. Silva 1996.

14. Mayet, Silva 2002.

15. Pinto, Magalhães, Brum 2010.

Fig. 13. Location of excavation area next to workshop 2 (A. P. Magalhães based on Étienne, Makaroun and Mayet, 1994, fig. 51 and J. L. Madeira (2008, unpublished)).

Fig. 14. Northeast section in the sounding next to the well of workshop 1 (A. P. Magalhães).

Based on the filling of workshop 1 vats 1 and 15, R. Étienne, Y. Makaroun and F. Mayet inferred, at the end of the first phase, a period of abandonment in the late 2nd c. before destruction 16. This abandonment also happened in workshop 2 where vats 6, 8 and 9 were excavated in 2007 to reveal that they only served in the first phase of occupation, having been abandoned in the second half of the 2nd c.17. They were clean from fish remains and their deposits contained Hispanic terra sigillata (Drag. 27, Drag. 37, And. 1), African Red Slip type A (Hayes 9B), amphorae Dressel 14  and Late Dressel 14 (Dressel 14 Tardia) among other things. Moreover, vat 9 revealed wall lining fragments fallen over the broken pottery in the bottom of the vat confirming a period of abandonment before reuse.

In contrast to workshop 1, those vats did not hold any signs of destruction from collapsing walls or roof, the refuse deposits and wall lining in vats 8 and 9 having been covered by a sand filling destined to support pavements on top belonging to the second phase.

The southeast workshops 12 and 13 (fig. 4), certainly belonging to one sole “factory”, were studied in 2007 18.

It was clear these workshops and the surrounding area were only occupied in the 1st – 2nd c. and abandoned at some imprecise moment of the 2nd c. Vat 3 of workshop 12 was excavated to reveal no signs of fish remains or refuse, just a layer of fallen roof tiles and clay with rare fragments of ceramics, two of them of Dressel 14 amphora. Apparently the area was abandoned not long after the vat was emptied from its last production since the roof material fell on an empty pavement and the collapse seems to have been due to its decay and not to any sudden event.

The absence of refuse on the floor of the vat and of any ceramics after the 2nd c. in the courtyard behind the  workshop suggests the area was abandoned when the factory became inactive.

Was the abandonment due to the same causes as in workshops 1 and 2 or was it due to others reasons, like an early advance of the waters, since nowadays more than three quarters of these workshops have been taken away by the tides?

The fact is that in the excavated 1st – 2nd c. vats in three workshops there were no remains of the last production, the vats having been carefully cleaned. Did it mean, as F. Mayet and C. Tavares da Silva have pointed out, that the vats were ready for the next production? 19 Was there a non previewed interruption of the usual seasonal labor? Planned or not, what caused this interruption? There is no satisfying answer.

It is clear that it was not a local event, since the rupture after the late 2nd c. is well known as the 3rd c. crisis and was a reality in the Southwest of Hispania and in the Northwest of Morocco as F. Mayet and C. Tavares da Silva have documented 20. These authors claim that only a major natural catastrophe may explain such a general destruction and abandonment at the same moment. An earthquake followed by a tsunami would have destroyed everything in the shoreline, like salt marshes, fish-salting factories, fishing boats and amphora kilns, causing a long lasting negative effect on the economy of these regions 21.

At Baelo Claudia, in the near province of Baetica, the works of the University of Cadiz revealed clear evidence of abandonment in the late 2nd c. in several areas including a building in the industrial quarter where it was very obvious the collapse of the walls only happened over a thick filling of refuse 22. Moreover, multiple evidence point to a possible “general abandonment” or of good part of the insulae of the barrio meridional that includes the industrial quarter. This abandonment was not due to any violent episode or fire, and fishing and fish-salting activities kept going since the abandonment levels were rich in residues of these activities 23. The real cause is not known.

Neither at Tróia did the archaeological record give the answer so far. There is no evidence, at the end of the first phase, of a major sudden destruction of the buildings just as at Baelo Claudia. But while at Baelo the industry kept going for a while, at Tróia the abandonment is testified by the inactive vats. And the effective interruption of the production was recently confirmed by a tomb built in the patio of workshop 1, next to the well, and violated and refilled in the second quarter of the 3rd c. 24

2.2. The second phase (3rd – early 4th c.)

The socio-economic changes in the 3rd c. are more than evident at Tróia at different levels. The large fishsalting workshops appear divided in smaller ones; there is a radical change in the amphorae with a diversification of their shapes; and even the funerary practices change with the introduction of inhumation in the late 2nd c.

The recent works have brought some evidence on the dating of the beginning of the second phase in workshops 1 and 2.

Workshop 2 was divided in two smaller workshops and one of them, workshop 2B, was covered by a new pavement with a layer of pottery fragments. Among many fragments on the surface, only regional Dressel 14 and Baetican Almagro 50 amphorae were detected.

The presence of this last amphora and the absence of Almagro 51c var. B, omnipresent by mid 3rd c., points to a date between the late 2nd c. and the second quarter of the 3rd c. In a second moment, vat 8 was filled with sand and covered by a pavement that had one fragment of African Red Slip type C Hayes 50 indicating a date not earlier than the second quarter of the 3rd c. These construction moments are not dated with precision, but since the vat had refuse in the bottom, we presume that only a short period ran between the construction of the new pavement of the patio and the remodeling of that vat into a compartment.

In workshop 1 the only datable evidence is the clay floor that covered the above mentioned tomb in the patio next to the well. We proposed to date this floor to the second quarter of the 3rd c. due to the abundant 2nd c. and some 3rd c. ceramics it contained, the latest being African Red Slip type C and amphorae Almagro 51c, var. B 25.

Since this floor was built after a period of abandonment, confirmed by the tomb, we believe it is the new floor resulting from the remodeling of the workshop when it was divided in several smaller units, leaving the well in a central yard.

Therefore both workshops 1 and 2 may have restarted the production in the first half of the 3rd c. but workshop 2B at an earlier moment than the others.

According to R. Étienne, Y. Makaroun and F. Mayet, the new workshop 1B resulting from the division of workshop 1 was attached to workshop 2 still undivided 26. The evidence and interpretation just presented point to the division of this workshop probably in the first quarter of the 3rd c. and we believe workshop 2A was not connected to workshop 1B during this phase since there are signs of the entranceway between the two having been blocked and later on reopened (in the third phase). Workshop 1B would then be autonomous with its patio with access to the well as the other production units of workshop 1.

The above mentioned workshops subdivided possibly in the 3rd c. (workshops 6 and 21) suggest the activity restarted in different areas of the settlement reusing the old workshops but on a slightly reduced scale.

This phase lasted until there were cases of abandonment and remodeling in the first half of the 4th c., but the break between the second and the third phase is not well defined and different areas had different developments and possibly timings.

The one example of abandonment is workshop 6 vat 3 whose bottom was excavated before it was recovered by a beach refilling 27. The vat was partially destroyed and regularly flooded by the tides, but surprisingly the lowest units of its filling were preserved in the southwest part, including a layer of fish products remains (fig. 15).

This last unit [1307] just had rims of African Red Slip type C Hayes 50 var. A and amphora African II C pointing to a dating in the late 3rd c. – first half of the 4th, but possibly not later than the early 4th c.

Even if this workshop was divided in smaller ones, the abandonment could probably extend to the whole productive unit, since its southwest part was reused as a cemetery and later built over by a Christian basilica. It is the only documented case, so far, of a vat or workshop abandoned in the first half of the 4th c.

Fig. 15. Aspect of the excavation of the fish products remains layer in workshop 6 vat 3 ((I. V. Pinto).

21. Id., p. 128-129.

22. Bernal et al. 2007, p. 383-389.

23. Id., p. 452.

24. Pinto, Magalhães, Brum 2010, p. 140-141 and figs. 6, 8-9.

25. Id, p. 139-140.

26. Étienne, Makaroun, Mayet 1994, p. 84-85 and fig. 56.

2.3. The third phase (4th-5th c.)

The third phase was inferred by R. Étienne, Y. Makaroun and F. Mayet from the walls built over vat 15 later than the first wall subdividing workshop 1. The northeast line of vats was then definitely separated from the rest of the workshop by a wall over its southwest limit and connected to workshop 2A 28.

Workshop 2A had the entranceway to workshop 1 reopened and considerably augmented its production capacity by acquiring at least four new vats (workshop 1 vats 16-19), three of them very large.

Workshop 2 did not give any dating element to this enlargement neither did workshop 1 for the second walls over vat 15. R. Étienne, Y. Makaroun and F. Mayet suggested the first half of the 4th c. but could not confirm it.

The recent works next to the well of this workshop revealed a second floor [721], this one paved with mortar and not well preserved (fig. 14). It contained African Red Slip type C (Hayes 58A and 50A/B) and a few fragments of type D (Hayes 58), regional amphorae Almagro 51c, var. B and Keay 78/Sado 1, Baetican amphorae Almagro 50 and 51c and some African amphorae, probably Tripolitania III and African II or III, datable from the end of the 3rd c. to the mid 4th c. 29 This is the evidence of works having been done in workshop 1 in the first half of the 4th c. even if it is not possible to physically connect them with the new dividing walls in the northeast area.

Other areas of Tróia showed changes in the first half of the 4th c. Part of workshop 6, as mentioned above, was turned into a funerary precinct and so was the probable house southwest of this workshop whose last wall paintings were dated to the end of the 3rd c., early 4th. 30 A sounding in workshop 6 vat 8 revealed that before the pavement of the basilica was built, this vat had been reused as a collective sepulchre with several tombs and sealed with a cover of opus signinum. Under the cover there was a Keay 78/Sado 1, var. B amphora rim not earlier than the mid 4th c. Therefore the cemetery may have been installed in the 4th c., after the production ceased in this workshop.

But if the downsizing of the fish-salting facilities is evident in the 3rd and 4th c. with productive units giving place to other uses, the production continued in other workshops and workshop 2A triplicates its production facilities in the late 3rd or first half of the 4th c.

This last phase of fish-salting production ends in the first half of the 5th c. The best evidence is the filling of the abandoned vats and the layers that covered the whole area of workshops 1 and 2 documented both by old and recent excavations.

One of the authors (APM) recently studied the terra sigillata and African Red Slip from workshop 1 from old excavations (1956-1961) and a 2008/2009 excavation of an area southeast of the well 31. The pottery came essentially from garbage dumps accumulated in the vats and in the large patio of workshop 1. Their study revealed significant imports of African Red Slip type D (Hayes 59, 61, 67, 80, 91 being the most abundant) with a peak in the late 4th – early 5th c. pointing to an abandonment of the production in the second quarter of the 5th c. The study of the amphorae comforts this chronology with the predominance of Almagro 51c var. C over other types and some rare examples of 5th c. imported amphorae like Keay XXXV B and Late Roman 1a 32.

Vats 1 and 5 and vat 7c in workshop 2 33 had pointed to a mid 5th c. dating based mainly on the presence of Hayes 80A in African Red Slip type D. Since their set of forms is similar to that recently studied, those levels should also be assigned to the second quarter of the 5th c., including form Hayes 80A.

2.4. Later phases

Vat 19 and vats 1 and 5 in workshop 2, certainly as others excavated in the past, were left with the fish remains from the last production and were then filled with refuse and later with wall debris. It is clear people stopped producing not bothering to clean the vats, but did not abandon the area for a certain time. In workshop 2 a number of late small walls, some forming small compartments and the removal of vat 7c 3rd c. floor 34 suggest this workshop was still in use for other purposes.

In a second moment tombs were built in the area, at different levels, some on the floor of the patio of workshop 2, one inside workshop 1 vat 16 and many were excavated in the debris layers.

In the northwest area of workshop 2, untouched, it was possible to register the destruction layers of the workshop. In the southwest area units of roof and wall collapse were interposed by sand layers that suggest decay over a rather long period of time with collapsing episodes followed by accumulations of windblown sand.

There is a severe decline since the midst of the 5th c. 35 but the latest imported fine ware, though quite rare, lasts through the 6th c. 36 meaning other unexcavated areas may have had a longer occupation. The site was abandoned to be covered by sand dunes. A popular quatrain tells Tróia was razzed to the ground by a “sand rain”.

27. Silveira et al. in press.

28. Étienne, Makaroun, Mayet 1994, p. 88.

29. Pinto, Magalhães, Brum 2010, p. 139.

30. Maciel 1996, p. 235-238.

31. Silva 2010.

32. Pinto, Magalhães, Brum 2012.

33. Id., p. 529.

34. Id., p. 534-537.

35. Silva 2010, p. 112.

36. Étienne, Makaroun, Mayet 1994, p. 43-49.

37. Alarcão 2011, p. 326-327.

3. An industrial quarter, a vicus or a city ?

The Roman remains at Tróia spread along 1.5 km in the shoreline but the deep sand dunes and the pine forest difficult the definition of the proper limits of the site. Yet the two southeastern factories (workshops 12-13 and 25, fig. 5) seem rather isolated and were certainly peripheral.

Those southeast of workshop 15 to workshop 24 are implanted in a nearly continuous line of constructions but it is not clear if the area to southwest was also urbanized. It is the area from workshop 15 to northwest that would be densely constructed even if a large part hasn’t been excavated. This area represents approximately 4 hectares but it originally extended further to the northeast, this part having been taken away by the tides.

There is no doubt that it was a large settlement.

Since Roman Tróia has not yet been identified with any of the settlements referred by classic texts, only with Avienus’s island of Achale, the question is if it ever became a real city or if it was an industrial vicus or simply an industrial quarter.

Referring only the most recent interpretations, J. Alarcão presented Tróia as a secondary urban agglomerate or a vicus, possibly the Caepiana of Ptolemy 37.

J. Soares and C. Tavares da Silva, on the other hand, referred Tróia as the main industrial quarter of the city of Caetobriga, its location on an island reinforcing its dependence on the urban agglomerate on the other shore 38.

It is obvious that Roman Tróia had some town planning since buildings generally have the same alignment northeast-southwest with small variations, and a proposal  of the cadastre plan of Tróia was presented by Jorge de Alarcão in 2011 39. An essay to draw, in the top plan of Tróia, the visible pathways bordering and separating several workshops and other buildings brought unexpected results. Prolonging those bordering workshop 4 to northeast revealed they were perfectly aligned with the narrow paths that separate workshops 8 from 9 and workshop 10 from a building to northwest, forming a long rectangular lot. Since workshop 4 is c. 33 m wide, this lot would be c. 35 m wide, this measure coinciding with one actus, the basic unit of Roman agrimensura (120 Roman feet equal to 35.52 m). Since the factory with workshops 1 and 2 seemed to fit into a similar long narrow lot, a grid of one actus wide lots was applied to the supposed “urban” area of Tróia (fig. 16). In fact, that factory fits roughly in one of those lots. Only the southeastern part of the baths, considered from the 3th c., is on the next lot, and a second phase wall prolonging workshop 2’s southwestern wall invades the lot to northwest.

The buildings of the residential quarter exceed the northwest limit of another supposed lot but they do not belong to the first construction phase as J. Alarcão has pointed 40. At the northwest end of the urban area, including workshops 3, 5, 6, 7 and 8, the orientation of buildings and streets is irregular and more chaotic. It was probably originally a peripheral area where the buildings and the street grid adjusted to the shoreline. The southeastern workshops 20 to 24 do not seem to be implanted on a regular grid either. This cadastre plan coincides roughly with that proposed by Jorge de Alarcão even if we are not able to propose perpendicular axes.

It is quite evident there was a delimitation of the land consisting on a cadastre plan of rectangular equidistant lots one actus wide even if it is not obvious how far southeast that went.

This cadastre plan is not that of a city (colonia or municipium) since there is no cardus or decumanus  nor real streets, only narrow sand paths between buildings, sometimes as narrow as 1.20 m and not wider than 1.80 m. The paths dividing the lots seem also too narrow for a vicus. It is also certain these lots were not for cultivation for the white sand soil of Tróia was not suitable for agriculture.

Fig. 16. Possible cadastre plan of Tróia (A. P. Magalhães based on topographical survey by IPPAR (2006, unpublished)).

Looking at the buildings exposed at Tróia, the omnipresent fish-salting factories stand out by their number and some by their size, and they are scattered through the whole excavated area. Apparently the reason to occupy the sandy land of Tróia was to install a large fish-salting production centre since the size of the lots seems adjusted to that purpose and factories seem to have occupied the largest part of the lots. Its location at the mouth of the river next to the ocean, on a flat area of easy access, was convenient for fishermen to deliver their catch and for trade boats to fetch their cargoes. Salt-marshes and pottery workshops would deliver by boat, from shore to shore, the salt and the amphorae.

Either Salacia, the civitas capital, or Caetobriga, across the river, could have taken the initiative to prepare the land of Tróia for the installation of fish-salting factories. Did Caetobriga install an industrial quarter 4 km away to protect itself from the nasty smell of the fish sauces preparation ? Since Caetobriga has the same strategic position as Tróia, and its own fish-salting factories, it seems possible that Salacia, upriver, would install an industrial centre at the mouth of the river. The homage referred in an incomplete inscription to L. Cornelius Bocchus, provincial flaminius, military tribune of the III Legio Augusta 41 and member of an important family from that city, may recall the intervention of Salacia in its beginnings.

Even if it started as an industrial quarter, the development of the fish-salting business brought economic prosperity and trade connections that gave Tróia a reasonable autonomy. It remained dependent on building materials and foodstuffs and the tights with Caetobriga, the nearest city, were certainly very strong. But the wealthy residences with wall paintings and mosaics, the Mithraic and Christian temples, the cemeteries with funerary epigraphy, the abundant imports in terra sigillata and amphorae as the quality  of metal and bone objects are signs of the dwelling of rich as well as common people, slaves, freedman and foreigners. They point to a very lively and dynamic urban agglomerate whose name will hopefully be revealed in the future.

38. Soares, Silva 2012, p. 63-65.

39. Alarcão 2011, p. 337.

40. Id., p. 337.

41. CIL II 5180; Encarnação 1984, p. 276. V. also Diogo, Trindade 1999 and Morais 2007

Conclusion

The twenty five fish-salting workshops identified at Tróia make this production centre one of the largest in the Roman world from the 1st to the 5th c. AD. The evidence points to the planned occupation of the sandy soil of Tróia with the purpose of installing an industrial complex with fish-salting factories. Recent works have confirmed the rhythms of occupation proposed by the first studies and confirm a period of great prosperity in the 1st-2nd c. followed by an unexplained temporary abandonment in the second half of the 2nd c. The fishsalting activities restarted apparently in the beginning of the 3rd c. reusing the old factories but the production capacity was reduced by the division of workshops and vats and the abandonment of some production units. The beginning of the 4th c. must have been another moment of change with the abandonment of one large workshop, or part of it, and the reorganization of others. Active at least up to the middle of the 5th c., Tróia was definitely a very productive pole of the large fish-salting centre of the low Sado valley.

An overview of the fish-salting production centre at Tróia (Portugal)

INÊS VAZ PINTO, ANA PATRÍCIA MAGALHÃES ET PATRÍCIA BRUM
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The Roman influence on Sado

Jóias do passado em Portugal – Tróia

Jóias do passado em Portugal - Tróia

Texto de Inês Vaz Pinto
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Garum What’s Going On

Garum

Garum

Garum was arguably the Roman’s favorite condiment. Made from rotted, fermented fish guts, it was a type of fish sauce produced across the empire. Ancient sources describe the different types of garum and how it was made.

The generic name GARUM is normally used to define a series of products of different composition and consistency, such as sauces and pastes obtained through fermentation in brine, through enzymes, part of fish or all of them.

 The picture of fish sauce that emerges from the ancient literature is complex. The ancient writers who discuss these products do so without the precision we need and often contradict each other sothat a precise understanding of which sauce corresponds to which recipe, production process or name is less than clear in Sally Grainger

The highly proteic garum enhanced the flavor and was very appreciated in classic times. It could be obtained from different types of fish - anchovies, mackerel, tuna, morays and others - which determined quality and price.

We tried to summarize in general terms the most common designations and what they correspond to, based on the works that can be accessed through the attached links.

In Search of Garum. The “Colatura d’alici” from the Amalfitan Coast
(Campania, Italy): an Heir of the Ancient Mediterranean Fermented Fish
Sauces. Alfredo Carannante, Claudio Giardino, Umberto Savarese

GARUM

Originally realized with a not well identified ichthyic species whose Greek name was garos (from which came the name of the sauce, garon, in Greek), the Roman garum was produced from different species of fish: Isidore states “ex infinito genere pisciorum”. However, many other species, among which morays, eels and grey mullets, were used to produce garum, sometimes realized through the fermentation of different species together. 

NIGRUM - BLACK GARUM

The best garum nigrum was produced from mackerel (Scomber scombrus Linnaeus 1758)

SOCIORUM

In the 1st century A.D. the garum sociorum, produced in Spain from the maceration of mackerel, was considered the best garum. Its cost was comparable only to that of the best perfumes (with a thousand sesterces you got two congi, equivalent to about six liters). Marcus Valerius Martialis (1st centuryA.D.) praises the luxury of the garum produced from the first blood spurted from mackerel just slaughtered, considered a particularly luxurious and appreciated present.

MURIA

The muria was produced from tuna (Thunnus thynnus Linnaeus 1758), but also anchovies (Engraulis encrasicolus Linnaeus 1758) were at the basis of a valuable kind of garum.

BUZZONAGLIA

Other times the garum was produced only with fish entrails, such as those of the tuna, mixing some entrails with blood and the fat abdominal fascia, the so-called “buzzonaglia". The origin of this product might be traced back in the recycling of fish rejects such as entrails, blood and fat parts, and whole smaller fish which were more difficult to keep.

FLOS GARI LÍMPIDO & LIQUAMEN GARI

The quality of the garum derived not only from the species and the parts used, but also from the filtering process. At the end of the maceration, in fact, the garum was filtered through baskets and different qualities were obtained: the limpid flos gari (“flower” of garum) obtained from the first filtered liquid and the liquamen gari, less valuable liquid part, with solid elements, obtained from the filtering of the roughest deposits.

LINQUAMEN

The general product made from preserving fish with salt. Later becomes interchangeable in word use with liquamen. Earlier sources indicate that this particular classification was made from blood and innards of larger fish, such as tuna and mackerel.

In Apicius, liquamen is the universal term for the primary fish sauce and even when we find garum, with two exceptions, it is part of a compoundterm directly transliterated from the Greek : όıνογαρον (oenogaron = oenogarum) and therefore referring to the original whole fish sauce.

FLOS FLOS GARI

Besides those two qualities ( Flos Gari e Linqumen) another one must be added: the “flos flos gari”, “the cream”, whose origin and the species used, usually mackerel or tuna, were always specified.

ALEC

The paste collected in the filters, often containing fish bones, was called allec (with the variations of hallec, hallex o allex), word which originally meant “putrefaction” or “dregs”, and represented the worst product often given to the slaves as companage. The allec, however, could also derive from the production of the best qualities of garum; in this case, the product resulting from the filtering after the maceration of the entrails, blood, or chosen pieces of mackerel or tuna, was considered valuable and was served seasoned with salt and pepper, wine and carrots, to stimulate the appetite before meals.
Moreover, there were luxurious variations of allec, produced from oysters, eggs of sea-urchin, sea anemones and mullet livers.

GARUM WITH INGREDIENTS

The best garum was obtained without adding other ingredients, but there were several varieties obtained adding vinegar (oxygarum), oil (oleogarum), wine (oenogarum), water (hydrogarum), honey (melligarum / mellogarum)

Apicius, in his famous treatise about cuisine, gives a recipe of oenogarum to dress tubers, composed by spices, liquamen, honey and little oil, and another recipe of oxygarum used as a digestive sauce, composed by a mixture of spices kneaded with honey and diluted with liquamen and vinegar.

OXYGARUM

adding vinegar

OLEOGARUM

adding oil

OENOGARUM

adding wine

HYDROGARUM

adding water

MELLIGARUM/MELLOGARUM

adding honey

"Colatura d’alici"

Today in the village of Cetara, on the Amalfitan Coast, a fish sauce which presents strong resemblances with the ancient garum is produced: the “colatura d’alici” whose name means “filtering of anchovies”. The “colatura” is an amber-coloured liquid obtained from the process of maceration of the anchovies under salt.

HAIMATION

In the first centuries of our era the production and the commerce of garum were important elements for the economy; after the Roman Empire fall the economical scenery in the Mediterranean changed. Nevertheless, the production on small scale of pickle fish continued with different destinies as it can be seen in all the cultural realities heirs of the Romans.

In Byzantium, in the 10th century, the Geoponica, an important collection of books about agriculture promoted by Constantine VII Porphyrogennetos (913-959 A.D.), were drawn up. In this work a recipe is given for the production of garum, significantly “in pot”: “Put in a container entrails of fish and small fish with salt and leave them in the sun mixing frequently. When the pickle has been obtained filter everything in a basket, where the solid part, the allec, remains. Those who want to use this garum soon without leaving it in the sun, can boil it filtering carefully the pickle two or three times, until the filter is clean. The best granum is called “haimation” and it is made with tuna entrails, gills, serum and blood. They are left to ferment in the salt for about two months, in a pot. Then the pot is holed and the garum is stilled.”

MURRI

In the medieval Islamic cuisine although a lot recipes byApicius and a lot of cuisine from the Roman times were used, the garum was substituted by a new product widely mentioned by Iraqi gastronomes since the beginning of 9th century: the murri. The murri was very different from the garum: it was a powder of fish dried in the sun and salted, diluted in sweet wine with oregano and put in ferment in an oiled amphora with quince apples and pieces of onions. It also existed a kind of murri produced from toasted cereals, with a simpler and faster processing.

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Garum

The archeology of taste

The archaeology of taste: Gargilius Martialis’s Garum

Lara COMIS Corrado RE (IT)

De gustibus non disputandum – Cicero

In this article, after a brief description of garum and its history, a preliminary experiment based on Martialis’ recipe provides a taste of past.

Introduction

When Rome came into contact with the Greek world, a great amount of information, culture, technology and grandeur entered the then rural roman way of living.

It is in fact from the second half of the III century BC that Greek influence in many aspects of life was acknowledged by the ancient authors.

Among these, we find influences on cuisine and cooking. Garon, as it was known among the Greeks, was a culinary preparation made mainly of fish, salt and herbs and was in use in Greek cuisine from at least the 5th century BC (Pliny, NH XXXI, 93). The production and trading of garum lasted for at least one millennium: its taste could be called a golden thread of the Ancient World.

But what was it like? And, more importantly, what was it that made it  taste like itself? It is to answer these questions that this project came to life. In this article we will illustrate the first steps taken for searching the answers. The analysis needs to be carried on deeper and wider, many written sources have to be read (and found!), many archaeological finds are there to be researched: we are perfectly aware of the fact that this is just a beginner’s log.

A brief history of garum production, fortune and trade will be given in the first part. In the second part methodology and specific information from written sources will be discussed and in the third the preliminary experiment will be illustrated.

In the conclusions problems, variables and further experiments will be analysed.

1. Garum in the Roman world: archaeology of production

In his Liber de Agricultura Cato (between the 3rd and 2nd century BC) refers to allec, which seemed to have been a paste obtained by the working of fish, herbs and salt.

The etymology of such a term appears to find its roots in the word putrescence (Dosi, Schnell 1984: 181). Interestingly, he refers to it when describing food needed by the family who run a rural farm once the olives run out (Cato, LVIII).

Because of the amount of nutritive substances (such as amino acids, nitrogen, and many different trace elements), garum and allec were quite important in the mainly vegetarian diet of ancient Rome (Hubert 2001).

Garum was a liquid or semi liquid sauce obtained by the decomposition of fish and herbs in salt. According to Pliny, it was at first obtained from one selected kind of fish which might be compared to anchovies. Common garum, on the contrary, was created by the decomposition of fish entrails in salt. Its exotic taste entered firmly into the roman world in the time of Apicius and was considered a fundamental ingredient to many recipes. The liquid garum (another term used to indicate it is liquamen) was so popular that it was also added to fruit jams (Dosi, Schnell 1984: 210).

Many archaeological remains witness the importance of the product.

The Atlantic coast of Spain and Morocco, as well as the Mediterranean coasts and the Black Sea were sites of production of garum. The centres of industry in the transformation of fish, in which tuna and other fish was cleaned and salted, were also the sites in which salt was extracted (see Purpura 1982). These industries consisted of a series of cocciopesto (lime mortar with crushed pottery) covered vats (called cetaria) in which the fish was worked and, probably, entrails, salt and herbs were left in the sun for transformation into garum. Usually, amphorae sherds found nearby the vats help to give an idea of the duration of the production. The most famous garum was made only with mackerel and was produced in Spain (Pliny NH XXXI, 94) and sold all over the empire in Dressel 7-9 amphorae (Purpura 1982). The north African coast was rich in this sort of industry which produced a typical amphora to contain the sauce. The African amphorae sherds for garum trade can be found across the empire from Severian times and a sign of change in the market trends of that time (Purpura 1982).

Thiis mode of production is not so common on the Tyrrhenian coast of Italy. Scholars believe the reason for this can be found in the garum officina (garum’s factory) found in Pompeii. Even though Pliny acknowledges Pompeii as a famous site for the production of garum (NH XXXI, 95), the witnessed procedure differs slightly from the others. Here the mixed ingredients were left to ferment in dolia, not in vats, but were sold in amphorae as the other garum (Salza Prina Ricotti 1999).

An interesting note of the edictum de pretiis by Diocletian (301 AD) states two different prices for the first liquamen and the second liquamen (III, 7), probably reflecting a difference in quality.

The production of garum was carried on until the 5th century AD in Morocco, and the consuming of garum is witnessed into the early medieval times and later (8th century AD, Salza Prina Ricotti 1999, Purpura 1982 footnote 10; Encyclopaedia Romana under “Garum” states that there is trace of production of garum as late as 1345 AD).

It seems therefore that production of garum was strictly linked with the industry of fish transformation: it actually used the same facilities. But this is not the only production witnessed as another method used dolia to obtain the same product.

2. Exploring garum’s taste: methodological approach, written sources, ethnography

Th e curiosity about the taste of such a famous and renown ingredient lead us to approach garum from the experimental perspective. The first aim of our experiment was to be able to evaluate variables which may affect garum’s taste. To attempt a reconstruction of a “taste” might be considered as rather an impossible mission. Experimental archaeology has already demonstrated in the past decades how an “accurate” reconstruction is not only impossible to obtain, but also does not necessarily improve our knowledge of the past. We can imagine, therefore,  how subtle the results could be when the object of the experiment is not an object but a taste, which certainly lacks both materiality and assessment measurements which can aid the evaluation. This  theme has entered many times into the discussion of those who participated in the experiment, and lead sometimes to a great discouragement for the task. Even so, after having eviscerated the problem in many ways, we decided that experimental methodology could be a great help in such an attempt. The preliminary experiment on garum production was therefore planned to assess the variables and their consequent relationship. An organoleptic  evaluation of the final product was programmed to have a standardised description of the taste, useful to provide a comparison for further experiments.

As the starting point should be the archaeological record but we did not find any convincing sources and studies made on the subject.

In popular books the stereotypes of garum being a putrescent and morbid thing were not sustained by experiment on actually making or tasting it according to the ancient procedure (Dosi, Schnell 1984: 28, 246). On the contrary, in the same source, the experimental approach in the creation of garum was gladly encouraged, as the importance of that ingredient was evident both by written and material sources (ibidem: 254). The information about taste was limited to a link to nuoc-mâm, an oriental preparation still in use. The origin of it were referred to as an error made in the conservation of fish, ending in some sort of not-toobad waste (ibidem: 210).

Even the ancient world seems to be split into those who liked garum and those who did not. Martial refers to garum made only with the blood of freshly killed mackerel as a sumptuous gift (Xen. XIII, 102), but points out also that common garum had a terrible smell. Apicius, on the other hand, gives a recipe to change the smell of garum with the aid of herbs and honey (Apicius De Re Coquinaria, I, 6). The first liquid was called gari flos (flower of garum). The most appreciated was called garum nigrum and was sold in small jars. The banqueters could use it as they pleased directly on the table (Dosi, Schnell 1984: 212).

As we said, allec was the remaining paste after all the liquid has been extracted, but some scholars say that originally allec was garum at the midfermentation point. In recipes allec was used as an appetiser.

At some point, it seems to become an independent preparation, as we can also read about allec made only with one type of fish or molluscs.

Let us move to consider present day information about fish sauces of that kind. As we said, nuoc mân from Vietnam and naam-pla from Thailand are the closest existing sauces to ancient garum.

To make it, fish and salt layers are alternatively put into an earthenware big jar with a percentage of 20% salt on the total. The jars are then closed with a mat and left to ferment from one to three months.

The first extracted sauce is the best quality. Then subsequently adding brine and filtering produce second and third quality choice sauce. The obtained liquid is put into glass bottles and exposed to sunlight to acquire a clear caramel colour. As it is today, different hues were associated with different qualities of sauce (see above, garum nigrum).

The process of transformation from solid to liquid, is not, as it was thought commonly, decomposition or fermentation. If the percentage of salt is kept 20% or higher, the process of fermenting stops at a certain point and gives way to what is known as autolysis, an actual maturation of the compound (Hubert 2001, Purpura 1982, footnote 7). The presence of viscera probably aids the process because of the presence of active enzymes (Rovere et al. 2008, “garum”). The knowledge of this biochemical process lead modern garum-makers to obtain good results with a yogurt-maker in which heat can be kept controlled (Wunderlich’s webpage).

An Italian product, called “Colatura di Alici”, is quite similar to the ancient garum made with anchovies collected in spring and summer, it is created by the fish being put under pressure with salt. The raw fish is cleaned of entrails and put in salt for at least 24 hours. It is then transferred to wooden barrels between layers of salt. The closing cap is then charged with extra weight and the resulting liquid collected in glass bottles and left for four or more months exposed to sunshine to gain concentration. After this, the liquid is then put again in wooden barrels with anchovies and then collected from a little opening.

It is then ready in December. Its use is traditional for Christmas’ eve on non-salted pasta (Colatura di Alici webpage).

3. Garum’s taste: preliminary experiment

Written sources that illustrate the “recipe” for making garum are very  few and very late. No one states the quantities, and the most accurate are those of the Geoponica  collection, dating to medieval times (Curtis R. I. 1991: 194). We decided therefore to start from a late source that seemed to be sufficiently clear to elaborate a proportion of the ingredients. This source comes from a collection of works made in medieval times and its supposed author is Gargilius Martialis as quoted from Dosi Schnell 1982 and Gozzini Giacosa  1992. Gargilius Martialis, a writer from the third century AD, in “De medicina et de virtute herbarum” writes: 

“Use fatty fish, for example sardines, and a well-sealed (pitched) container with a 26-35 quart/litre capacity. Add dried aromatic herbs possessing a strong flavour, such as dill, coriander, fennel, celery, mint, oregano, and others making a layer on the bottom of the container; then put down a layer of fish (if small leave them whole, if large use pieces); and over this add a layer of salt two fingers high. Repeat these three layers until the container is filled. Let it rest for seven days in the sun. Then mix the sauce daily for twenty days. After that time it becomes a liquid (garum)” (Gozzini Giacosa 1992: 27).

Fig. 1 Brushing the vase with pine tar

Fig. 2 Hardening the tar with a gas flame

Since our aim was to assess the variables included in the process, we decided to scale down the quantities and to adapt them from an industrial standard to a more family like method of making garum. The container used was an earthenware vase of 2,7 lt. capacity at the brim. The vase was tarred to prevent leaking (this method had been used since Cato’s times). Tar was considered an important part of the experiment, not only because of  the impermeability needed for the procedure of fermentation, but also because it was thought that the resulting taste could be aff ected by the use of vegetable tar. The chosen one was natural pine tree tar, spread onto the inner surface of the vase with a brush (Fig. 1).

To harden the tar, a common flame device was used (Fig. 2).

Fig. 3 A subtle olive oil layer to ensure impermeability

Subsequently, for ultra-safety of impermeability, it was isolated with a veil of olive oil (Fig. 3).

Fig. 4 Closing the vase

Subsequently, for ultra-safety of impermeability, it  was isolated with a veil of olive oil (Fig. 3). During the experiment, it was clear that a soft er way of hardening the tar, possibly with embers, would have produced a more reliable result and avoided damage to  the vase. To prevent insect contamination, a wooden cap wrapped with a cotton cloth was prepared to be put on the brim of the vase (Fig. 4).

Beeswax was considered to be the best material to be used to seal the cap. This system was very useful as it permitted an easy re-opening each time mixing was needed.

Fig. 5 Mixed dried herbs

Fig. 6 Minced celery

After preparing the vase, a selection of herbs as described by Martialis was prepared.

We used:


dill (Anethum graveolens L., dried seeds),
coriander (Coriandrum sativum, dried seeds),
fennel (Foeniculum vulgare, dried seeds),
celery (Apium graveolens, leaf and stem), 
mint (Mentha Longifolia, dried leaves),
pepper (Piper Nigrum, grains and dried leaves),
saffron (Crocus sativus, dried stigma)
and
oregano (Origanum vulgare, dried leaves).

We also used saffron as we found it quoted into an Italian translation of the recipe that also quoted this spice (Wikipedia). Since the proportion of the herbs were not described, we decided to use a mixture of the essences in equal parts, except for saffron, added as 1/100 against the other herbs. As saffron has always been an extremely expensive spice since ancient times, as the process of collecting  it has actually remained the same over the millennia. Other spices may as well have been imported, but the collecting methods were surely different and affected the final presence in the recipe differently. Since celery was added fresh, the quantity was increased to 4/1 against other herbs, considering the amount of water in fresh vegetables. All the dried herbs were carefully mixed in a soup dish to obtain an even compound (Fig. 5).

Celery was added later with the other ingredients (Fig. 6).

Fig. 7 Blue fish cleaning

Bluefish and mackerels were partially cleaned (Fig. 7-8) – intestines were only taken from the bluefish, whereas fishbone, intestines and gills were taken away from mackerels – and cut into small pieces (Fig. 9-10).

It was felt that, considering the small dimension of the vase, cutting the fish would aid the process.

Salt was carefully chosen to prevent contamination from industrial chemical substances. We used whole organic marine salt naturally gathered from Trapani (Sicily).

Fig. 8 Mackerels cleaning

Fig. 9 Minced blue fish

Fig. 10 Minced mackerels

The actual procedure of preparing garum, started with a bottom layer of herbs (Fig. 11) of 2/3 cm height being put in the vase complete with celery (Fig. 12).

Fish was then laidin a layer 3/4 cm high (Fig. 13).

Fig. 11 The first layer of dried herbs

Fig. 12 The first layer of celery

Fig. 13 The first layer of fish (one of three )

Fig. 14 Stirring with a wooden spoon

The next layer was salt, “two fingers in height” as Martialis says (3/4 cm).

The vase contained 9 layers in total and then was closed with the above described cap. The preparation ended at midday on the 15th August 2008. For the whole duration of the experiment (until 13th September) the vase was left in the sun from just after dawn to a little before sunset.

The temperature reached above  30 ºC. For only two days bad weather prevented the vase to be exposed.

After 7 days excluding the first, the vase was opened to begin stirring (Fig. 14)

On this occasion an intense perfume of fish and Mediterranean spices was released from the compound. The volume seemed to be diminished by 0,2 l and a liquid  part was noted among the cloggy compound. For seven days the garum was stirred daily, whereas for the remaining two weeks it was stirred only 3 to 2 times per week.

On the third day of stirring, a yellowish liquid begun to leak from a fissure in the vase. This yellowish liquid had a very acrid smell and become crispy on drying. The fissure in the vase, probably caused by the hardening of the tar within using the flame, was sealed with natural beeswax. The liquid started then to turn into a more greenish colour, probably because of the herbs.

After 28 days, the compound was taken out of the vase and put into a fine linen cloth with medium large texture and compressed to extract the liquid. This method proved to be a failure as the amount liquid was very small and too dense to drip from the cloth. This made us think that a slow dripping method might be more effective as described in the Geoponica. The mixture was then suspended in a natural fibres basket from which to extract the liquamen.

A small amount of garum was indeed collected and tasted. The taste resembled that of anchovy paste with a strong accent on raw fish and a background of spices which made it quite pleasant. At the organoleptic examination the product obtained with the experiment turned out to have the following characteristics:

Consistency: granular with fragments of spices and salt to which the fish are amalgamated.

Colour: olive green.

Smell: the blue fi sh one is predominant, rounded off by spices. Smells are well amalgamated.

Taste: very intense salt and fatty fish, the initial impact vanishes fairly rapidly with the dissolution of salt, leaving a clean aftertaste.

(Examined by Cristiana Minelli, laboratory technician for food industry)

4. Conclusions

There are few conclusions that we can point to at this stage of research.

The preliminary experiment, in fact, lead us to evaluate many other possibilities in experimenting with garum making. The procedure we used was not successful as very little liquid sauce was obtained. Among the many explanations, lack of extra viscera (besides the utilized fish ones), an over abundance of salt and doubt on the scaled proportion used are to be explored deeper.

As said above, viscera from the fish could aid the autolysis process.

Salt could also be kept at a lower percentage of the total (being almost-at volume 1:1 in our procedure) or, more likely, added in form of brine as happens in Oriental fish sauces and as probably happened in the fish-salting industries in ancient times. Another point seems to be the overall quantity of ingredients, probably standardised at the times of the description for the success of the procedure.

This experiment lead us to distinguish the different variables present in the process, some of which came to light by accident during the experiment itself. For example, we felt that the failure of the process of extracting the liquid was due to the need for a different technique: probably the original recipe for the colatura di alici, using weight put on top of the anchovies, could have helped. Temperature was not a problem as the experiment had been planned for a season in which weather was hot and sunny. Probably air has to be considered carefully in the next experiments in relation to the autolysis.

There is another question regarding the relation between allec and garum, and garum to liquamen.

Sources of the time seem to distinguish between different consistencies.

The archaeological record could be analysed to assess whether there exists a distinction in the container morphology which could be linked to ceramic morphology, content and production procedure.

The archaeology of taste: Gargilius Martialis’s Garum

Lara COMIS Corrado RE (IT)
Categories
Garum

X. Garum, Liquamen, and muria: A new approach to the problem of definition

X. Garum, Liquamen, and muria: A new approach to the problem of definition

Sally Grainger

 Introduction 

The picture of fish sauce that emerges from the ancient literature is complex. The ancient writers who discuss these products do so without the precision we need and often contradict each other so that a precise understanding of which sauce corresponds to which recipe, production process or name is less than clear. The ancient literary evidence is largely provided by two quite distinct kinds of text : on the one hand 1st c. AD elite Roman consumer perspectives from letters, Natural Histories, poetry and particularly satire, and on the other texts that are perceived as late-Roman from users such as cooks, doctors, and vets. These texts often derive from much earlier Greek sources so the evidence appears to be polarised both by time and by culture. 

The early elite consumer tells us only of the exclusive and expensive types of garum which may have had quite a narrow culinary role and appear as the primary product, while the everyday cooking fish sauces used by millions of ordinary Romans and Greeks around the empire are hardly comprehended at all in the literature 1. In zooarchaeology we have the reverse situation, as the only recognised evidence for fish sauce is the bone fragments from small clupeidae and sparidae, which are identified as part of the apparently bony fish paste known as allec, the consumption of which is viewed as low status 2. This stark contrast in the perceived status of the consumer of each kind of evidence makes for confusing conclusions, such as the tendency for fish bone specialists to consider certain forms of this fish paste as an elite product with reference to the discussion in Pliny 3. 

 In the course of this study it will become clear that many ancient elite consumers of fish sauce did not actually understand the products at all well and it is their confusion that is directly responsible for ours. At the heart of this ancient and modern confusion is the failure on the part of modern researchers to comprehend fully that there were multiple varieties and qualities of fish sauce, some for cooking, some for the table, just as there are today in south east Asia. We can and must attempt to differentiate between them through a synthesis of the archaeological and literary sources. Only with this level of analysis can we hope to disentangle the complex problem of nomenclature. The ultimate aim is to gain a greater understanding of the relative value of the different fish sauces within in the ancient economy, and not least within Roman cuisine. In what follows I will offer a radically new way to approach the dilemma of how to differentiate between the various fish sauces which takes account of the opinions of those who made, traded and used these products. 

 1 Corcoran 1962, p. 205. 

2 Van Neer 2002, p. 208. 

3 Cotton 1996, p. 223-238. Pliny The Elder HN 31.96. « Allec is the sediment of garum, the dregs neither strained nor whole. It has, however begun to be made separately from tiny fish, otherwise of no use. The Romans call it apua, the Greeks aphye, because this tiny fish is bred out of rain… Then allex became a luxury and its various kinds have come to be innumerable… Thus allex has come to be made from oysters, sea urchins, sea anemones, and mullet »s liver and salt to be corrupted in numberless ways so as to suit all palates ». The Geoponica is very clear that the residue makes allec not that the entire residue is allec. 

4 Corcoran 1963, p. 204-209 ; Curtis 1991, p. 13 ; Curtis 2009, p. 713 ; Studer 1994, p. 195 ; Etienne 2007, p. 7 ; Van Neer 2002, p. 208.  

 1. The single sauce hypothesis 

Within ancient historical and archaeological research there is currently an assumption that there was only one type of Roman fish sauce. This sauce was called garum ; all the varieties of fish, different components of fish, recipes and qualities were all defined within the generic term garum. The distinction between the fish sauce made from small and medium whole-fish with extra viscera and that made from just fish viscera and blood is acknowledged by the leading scholars in the field but they are all considered forms of garum 4. This belief stems largely from the statements on fish sauce  by Pliny the Elder. Pliny’s garum is the luxury product made from fermented viscera and « other parts that would otherwise be considered refuse »(31.93). Pliny has stressed the viscera which is associated with the expensive sociorum garum and not directly referred to whole fish but his « other parts » have nonetheless been taken to mean small fish otherwise of no value : thus he seems to be referring to a whole-fish sauce not a blood/ viscera sauce. As he subsequently suggests that the residue of this garum makes allec and that this is a fish paste derived from whole fish, he must not comprehend that there were two types. The surviving Greek recipes for fish sauce also affirm the importance of the distinction between blood/viscera sauce and one made from whole fish. It is clear from the Geoponica too that the term garon, with an additional adjective to designate the blood/viscera sauce, did function generically in Greek 5. To make matters worse some ancient commentators, largely elite consumers, also seem to use the Latin term garum in a generic sense ; however it will be my contention that garum, for those who manufactured and traded these products, was a specific term in Latin referring to the blood/viscera sauce rather than a general term and that for most of the Roman period the word liquamen actually represented the primary product : a fish sauce made from whole-fish 6. 

Manufacturer, trader and user didn’t use the word garum, as the elite writers seem to, as a term for the general idea of fish sauce in Latin, they employed a far more specific and technical terminology, which we may suppose involved precise use of all the terms at their disposal and which survives in ancient texts and on amphorae – in both Greek and Latin 7. There are a number of instances where fish sauce is described in term of colour. The blood/viscera sauce will necessarily be darker because of the blood and in fact we do find « black » and « bloody » adjectives being used in Greek texts 8. However in Latin the literary sources do not use specific adjectives with garum referring to colour. Instead we only find the singular garum, garum sociorum or liquamen. The use of the word sociorum « of our allies » we are told by Pliny refers to the luxury mackerel garum made in New Carthage in Spain. Martial describes this sauce being « made from the blood of a still breathing mackerel » and it therefore implies this black and bloody sauce 9. Whether we can say that all the sauce made by this company of allies in New Carthage was the luxury blood/viscera sauce is unclear and probably quite unlikely. The terminology used in the dining rooms of Rome may well have been different to those used by the manufacturer. Crucially we cannot know which sauce is being referred to when garum occurs singularly in Latin texts. Writers may not actually know or care which one they are referring to, especially in satire. 

The meaning in Latin of liquamen has always remained obscure and has long been assumed to be a Late Latin equivalent for garum 10. Garum only appears in the early period, liquamen in the late and it is generally assumed that the word garum fell out of favour and liquamen simply became the more popular word. Not only has no one thought to question why this should be the case but no one has considered that multiple varieties of fish sauce require multiple terms in Latin and they do not seem to exist 11. If one looks closer at the literary evidence it becomes apparent that all the early elite Latin consumers refer to garum and there is no reference to liquamen at all. Liquamen is not a term used by elite/ educated Romans 12. Liquamen exists only in apparently late and vulgar Latin didactic literature such as veterinary and cookery books, which though considered to be written in the Late Empire, often can be seen to derive from much earlier Greek material 13. The situation is clearly more complex than a simple switch in terminology. It is admittedly clear that Latin garum is hardly mentioned in any forms of elite Latin literature after the mid 3rd c. AD, though the term does not disappear entirely as Ausonius makes an obscure reference to it in the early 4th c.14 We can also see parallel use of garum and liquamen in their occurrence on amphorae tituli picti from Rome and Pompeii in the 1st c. AD. That garum always meant something different to liquamen can be seen in its presence along side liquamen in the medicinal and veterinary and culinary texts 15. The employment of both terms suggests that garum had a meaning distinct from liquamen in the early period which was still current when the later fish sauce had apparently been renamed liquamen. Curtis acknowledges that liquamen must have had a separate meaning to garum in the first century AD but he maintains that it was the 2nd and subsequent washings of the residue of garum which is the only way to explain the later convergence of the terms 16. I would disagree here as the tituli picti do not suggest this and there is no evidence at all to this effect. 

5 Geoponica 46. Dalby 2011, p. 348-349. The difference between the two sauces concerns the fish blood rather than viscera which, from my experiments, provide additional digestive enzymes rather than distinctive characteristics. The flavour of a liquamen made with and without extra viscera is indistinguishable and dominated by fish flavours while the blood sauce taste and smells quite distinctly of iron and is not fishy at all. 

6 Curtis 1991,p. 7. 

7 In Greek : garon, garou melanos,(black) : Galen, Kuhn 1965, p. 637. garon haimation (bloody) : Geoponica 20.46.6, Dalby 2011, p. 348-349 ; P. Anst. inv. no 44. In Latin garum, garum sociorum, gari nigri, garum flos, liquamen, liquamen flos, muria and allec. 

8 For other ref. to gari nigri : Aetius 3,83 and Latin translations of Galen, see note 37. Pliny talks of garum blended to look like « aged honey wine » : Pliny HN 31.93.  

9 Pliny HN 31.94 ; Martial 13.102, Curtis 1991 p. 8, n. 11. 

10 In Greek liquamen is a hapax legominon appearing only in the Geoponica where it appears to be a direct translation of garon. For the standard view Etienne 2007, p. 7. 

11 Curtis 2009, p. 713 ; Cotton, Lernau and Goren 1996, p. 231. 

12 It is cited in Columella three times at 6.2.7 ; 9.14.3 and 9.14.17 but each time liquid generally are meant. 

13 Grocock and Grainger 2006, p. 13-23, 61 ; Adams 1995, p. 663. Much of Pelagonius and Vegetius is derived from writers such as Celsius, Columella and Apsyrtus : the Greek horse doctor. 

14 Ausonius Epist 25. 21.  

2. Studies on fish sauces 

2.1. The origins of fish sauce in the Mediterranean 

Garum was clearly derived from the original Greek word garos and seems to have been the name of a fish used to make the sauce in Greece according to Pliny. This fish is unknown but we may reliably assume that it was small clupeidae and sparidae. We know that 5th c. BC Greek comedy refers to garos from the Black Sea and by the 4th c. Cadiz was shipping garos to Athens 17. We know very little about this early fish sauce apart from the fact that it was considered rotten. Crucially the image of fish sauce use from the early Greek sources never appeared to have a luxury tag : the foods it was associated with were simple poor man’s vegetables and pulses and it formed a very basic dressing or dipping liquid with oil and vinegar or wine 18. The formal Greek cuisine that emerged during the Hellenistic period seems to have been defined around the use of this garos and it is this cuisine that arrived in Rome in the 2nd century BC when the Roman elite fell under the spell of Greek dinning culture 19. At this point we must assume that this garos was made from small fish, otherwise of no value, and the term simply became latinised into garum. At this early period we seem to be dealing with a single sauce of the whole fish garos type. 

However the cuisine associated with elite dining as described by Archestratus in the late 4th c. BC in Sicily does not appear to use a garos fish sauce, despite its apparent importation into Athens at this time, but does make use of a similar dipping sauce blended with vinegar and oil made with a salted fish « brine » called αλμη (almē) 20. If Archestratus reflects elite practices a century before the Romans acquired a liking for Greek dining practices then the use of halme and its Latin counterpart muria would seem to be the more elite product and the knowledge and use of it would also be widespread. There was clearly more than one type of fish sauce at the end of the Hellenistic period. Garos and muria were sufficiently different to require separate names though whether the blood/viscera garum had yet been developed is not clear. 

2.2. Apicius : the Roman recipe collection 

The text where we find fish sauce in use most often is the recipes collection known simply as Apicius. In 2006 I along with Dr Christopher Grocock published a new edition of this text 21. The text had been interpreted by Brandt to be a collection of recipes written down if not actually compiled by an elite gourmet in the late Empire 22. This was due to the use of vulgar Latin which is the literary register most common in the late Empire among the elite as well as the rest of society. However it was clear to us that the individual recipes had actually been written by the slave cooks who would speak and write their own « blue collar » Latin. The Latin was grammatically inferior and displayed no literary merit of any kind. Brandt’s imaginary compiler is also absolutely silent : there is no authorial voice in the text at all and one would expect an author/compiler to make himself known. The silent compiler suggested to us that this text was actually a functional collection designed by and for the cooks who devised and used the recipes. This conclusion has repercussions for dating the text too as it may be concluded that any vulgar/late Latin written by an elite gourmet would date the text to the late 4/5th c. AD but vulgar Latin from cooks cannot be so precisely dated : « Vulgar Latin…is just a collective label to refer to all those features of the Latin language that are known to have existed from textual attestations and incontrovertible reconstructions, but that were not recommended by the grammarians » 23. It is quite clear that a grammatically inferior written Latin co-existed with the more learned registers in 1st century imperial Rome and there is no reason why many of the recipes could not have been written down at that time. In fact some of the recipes contain internal evidence to suggest that they were originally written down as early as the 1st c. AD 24. We may also suppose therefore that many of these recipe collections, of which Apicius is just one surviving version, began the process of compilation in the early empire and under particular Greek influence as the surviving recipe collection retains its Greek chapter headings and contains numerous technical culinary terms which are hybrid Greek/Latin terms 25. 

15 For Apicius see below. Pelagonius liquamen : 9 ; 11.2 ; 13 ; 98 ; 455 ; 457, garum : 428;13. Vegetius liquamen : 1.10.1 ; 1.17.10, 16 ; 2.91.2 ; 2.108.2 ; 2.132.4 ; 4.6.1, garum : 2.28.8 ; 3.28.10. Marcellus Empiricus, 5th c. medical writer from Gaul « Medicinae » liquamen 30.52 ; garum 30.41. 

16 Curtis 2009, p. 713. Ausonius Epis.t 21. 

17 Pliny HN.31.93. Dalby 1996, p. 75-76 ; Athenaeus, II, 67.b-c. 

18 Dalby 1996, p. 25 Galen On the properties of food 1.25.2. 

19 Grocock, Grainger 2006, p. 17.  

20 Olson, Sens 2000, p. 159 (fr. 38). Athenaeus VII, 329b : where the brine is identified as from pilchard. 

21 Grocock, Grainger 2006. 

22 Brandt 1927, p. 30, 36, 130-3. 

23 Herman 2000, foreward ; Grocock, Grainger 2006, p. 95 and note 1. 

In relation to the issue of fish sauce terminology these conclusions have profound consequences. There is very little garum qua blood garum in Apicius : in these recipes the cook does not appear to use this sauce and in fact we have no reference to cooking with the blood/viscera sauce anywhere in the literary evidence. This would seem entirely logical too, as an expensive and intensely- flavoured blood sauce would be lost in the cooking process and wasted, while an expensive sauce needed to be seen by the gourmet to be experienced, valued and discussed. In Apicius, liquamen is the universal term for the primary fish sauce and even when we find garum, with two exceptions, it is part of a compound term directly transliterated from the Greek : όıνογαρον (oenogaron = oenogarum) and therefore referring to the original whole fish sauce. In Apicius oenogarum is a slightly more complex version of the Greek wine/ vinegar, oil and fish sauce dressing 26. These sauces are widespread throughout the text and represents a hot or cold, thin or thickened sauce used both within a cooked dish and served as a dip 27. When the recipes themselves were firmly dated to the late empire, the use of liquamen to designate the « single » fish sauce was at least rational. Now the recipes do not necessarily fit neatly into that early/late pattern, the lack of black garum in Apicius is striking. Apicius is supposed to be the epitome of high status cooking and black garum is the luxury sauce par excellence, so why is it barely mentioned ? 

From modern South East Asian cuisine we learn of a fermented squid blood viscera (and ink) sauce that is used today in Japanese cuisine. It is known as ishiri and is used as a finishing sauce for sushi as well as cooked food. Its taste neither fishy nor salty, and smells of the iron compounds from the blood. Japanese cuisine also has a whole-fish sauce called ishiru and many dishes are prepared with both i.e the whole fish sauce is used for cooking and the blood/viscera sauce finishes the dish 28. 

I would suggest that black garum was never part of the cooking process and its absence perfectly natural in both early and late recipes. It was too strong for cooking and was designed to be used at table by slaves or diners as a « finishing » sauce. It became popular among the elite to blend oenogarum sauces with black garum in the 1st c., but by the time the recipe collections had been finalised in the 4/5th c. its use in this way was limited. In Apicius garum occurs just twice : as a non compounded word, it is found at 7.13.1 where mushroom are served with garum and pepper : « Ash tree fungi : boil and serve while hot and dry in garum and pepper, as long as you pound the pepper with liquamen ». The recipe is of course ambiguous and we might use it to retain the current belief in the « single sauce ». However taken literarily the pepper is pounded into a mash with liquamen and then the mushroom are served with this mash and blood garum 29. 

2.3. Garum and Diocletian’s Price Edict 

The single sauce hypothesis is reinforced by the wording for fish sauce on Diocletian’s price edict. The inscription is a controversial source for many reasons which are not of concern here 30. Dated to AD 301 it lists the prices, in Greek for the eastern Empire and Latin for the west, of common commodities and services available when inflation was very high throughout the empire. We find that in Latin 1st and 2nd quality liquamen is rendered as 1st and 2nd quality garos in the Greek inscriptions 31. This is however what we should expect : the primary product of trade and commerce was liquamen and it corresponds to the original primary product from Greece. It is more surprising to find that a separate blood/viscera sauce or a muria is not listed. I would argue that the rarity of black garum in texts in the late empire, particularly in Apicius, reflects a rarity in commerce too and that it was not sufficiently popular at the time of the edict to warrant its own price. It was clearly commercially available as Ausonius’ letter confirms but may simply have been such a small percentage of the overall market that it didn’t warrant its own listing. It is possible that black garum always had a relatively small market in comparison to liquamen and lost what popularity it had in the late empire. I believe black garum was made to appear more important because of the unusually close view we get of the elite at table in the early empire through satire. The obsession in luxury foods in dining was largely concentrated in the early empire and later Romans looked on their ancestors 

24 Grocock, Grainger 2006, p. 13-23 ; 369-372. 

25 Oenogarum, oxygarum, hypotrimma, tisane, thermospodium, oxyporium, melizomum : Grocock, Grainger 2006, p. 27. 

26 Dalby 1996, p. 25. Other compound sauce were oxygarum with vinegar ; hydrogarum which is a cooking liquor not a sauce per se ; garelaeum with oil (Orebasius 4.28). 

27 A sauce poured over a dish (4.5.3 ; 8.8.7) ; a salad dressing for vegetables (passim book 4) ; a sauce used within a dish (4.5.1 ; 4.2.31 ; 4.2.5) and a dressing for fish or meat (7.3.1 ; 10.3.11,12). A translation for the word oenogaron is found in a late gloss to the Gargilius Martialis text. This text provides the other important recipe for fish sauce manufacture and the sauce is entitled « Confectio liquaminis, quod oenogarum vocant » « a liquamen sauce which is called an oenogarum.  

28 http://www.ishiri.jp/en/ This sauce is truly fermented with bacteria and low salt. It is quite remarkable that the Japanese word for viscera is gari ! 

29 For a similar pepper mash : Apicius 2.2.8. Vegetarian version of these fish sauces existed it seems and the terminology used is indicative of the primacy of liquamen/garos. Pseudo-Pollux Quotid. 112v : a text with Greek and Latin has « with a garos of turnip » is equivalent to « with a liquamine » ; Palladius Opus Agri. 3.25.12 « Liquamine ex piris » ; Pseudo-Galen De Remediis vol 14, p. 546m. 

30 Lauffer 1971, p. 124. 

31 Id., p. 104. 

2.4. The uses of black garum 

If we look elsewhere at the references to garum in satire it becomes clear that the sauce being discussed is a visible thing as opposed to being hidden away in the kitchen. That the term liquamen is unrecognised by the gourmet is not surprising given that the « cooking sauce » would never be visible. We find garum poured onto oysters ; Ausonius when discussing the garum he has received says he will « fill my patina » with it : a patina is a thick set frittata delivered cooked from the kitchen ; fish is served as if floating in garum ; a garum piperatum pepper sauce is poured on to fish in a dish from a wine skin ; a garum sociorum made from mullet viscera is used to drown and serve with mullets while an allec is made from their livers ; a cook is expected to blend Falernian with aged garum and pepper to serve with a roasted boar ; a cheap mistress begs her lover for a small amount of garum ; Garum and in fact muria too is used to make special oenogarum sauces and the host discusses the ingredients being used in such detail that we may be able to say that these sauces were blended at table 33. Certainly finely decorated Samian wear mortaria are often found with wear pattern of use and this is difficult for  archaeologists to comprehend as they are assumed to be table ware. Most mortaria are course kitchen wear vessels and the labour involved in their use would normally be hidden 34. It may be said that there are too few references indicating that blood garum was always used in different ways to liquamen. It is also apparent that all three types of sauce (muria, garum, liquamen) could be blended with wine and oil to make the dipping sauce oenogarum which was a visible component of ancient cuisine yet it seems clear from the recipes that the black sauce was not used in cooking. It may be possible to determine the quantities of garum to liquamen consumed through analysis of amphora size. The urceii or table top jugs that fish sauce was sold in at Pompeii came in many sizes (fig. 1). 

All are very much smaller then the average fish sauce amphorae which can stand up to 90 cm. From published tituli picti in CIL, the majority of liquamen labels are on amphorae, while named and exclusive garum is largely found on the much smaller urceii. Curtis has also noted that these urceii labelled simply garum have been found in Pompeii in relatively modest dwellings and bars and, though he was at the time using garum to mean fish sauce generally, this must mean that black garum was also consumed among the sub-elites probably as a table sauce in the bars 35.

Urceus found in Terzigno near Pompeii (from Cicirelli 1996, fig. 10-41 p. 166).

32 Ausonius’ text is discussed in detail below. While living in Southern Gaul in the 4th c. he had to have his garum specially delivered. Macrobius a century or so later « not that I am saying we should be though superior to the ancients…. but I am just stating the facts : people were keener on luxuries in those days than they are now » (Macrobius Saturnalia 111.13.16). 

33 Martial Epi 13.82 ; Ausonius Epist 21 ; Seneca 3.17.2 ; Petronius Satiricon 36.3 ; Pliny HN 9. 66 ; Martial 7.27.8 ; 11.27.  

34 Horace Sat 2.8 ; 2.4.63-9 ; Willis 2005, p. 8.4.4 ; Biddulf 2008 p. 91-100. 

35 Curtis 1991, p. 159-175 ; The difference in volume sold can not be calculated as capacity of amphorae are rarely recorded but it does seem as though by volume more liquamen was sold than garum. 

36 Grant 2000, p. 138 ; 141 ; 146. 

37 Galen Opera Omnia ed. C.G. Kuhn (1965 reprint of 1823 edition Hildesheim George Olms) Bk 12.637. (comp. med.sec.loc) « For the stench of wounds that (remedy) which is called “of the Spanish”. Take : black garos, called oxyporum by the Romans, 1 sextarius, squill vinegar, 1 sextarius, Attic honey, 1½ ; boil until it binds, and put it away in a glass vessel and use ». Translation with gratitude : Justin Mansfield. 

38 A Latin translation of this remedy made in the Renaissance, gives the following translation of the 2nd line »gari nigri quod Romani sociorum appellant.« (black garum which the Romans call « of our allies »). Galeno 1537, p. 361. 

39 Apicius 1.32 ; Columella 12.59.4. Garum in a remedy : Columella 6.9.1 to treat fever in ox ; 6.34.2 to treat horses ; 7.10.3 to treat scrofulous pigs. Liquamen is used in veterinary remedies c.f. note 17.  

2.5. Fish sauce in Galen 

Galen’s use of fish sauce in his treaties on food and diet is valuable as there are numerous references to what we now know is a simple whole-fish garos which is blended with wine/vinegar and oil as a simple dressing for vegetables as we have come to expect. Lettuce for instance is boiled in the winter and served with olive oil, garos and vinegar while mallow and cabbage are served with olive oil and garos in order to ease their passage through the body. Galen also lists many pot herbs such as celery, hyacinth and rocket which are all served in a similar way 36. There is just one reference to black garos in Galen and it requires more consideration. The text is not that on food and diet which makes no reference to the black sauce at all which also supports the view that it was not used in the preparation of food, but one called « Medical compounds according to places » 37. The remedy is apparently called an oxyporium and considered a Spanish digestive and later versions of the text reference the idea that black garum was also called sociorum after the Spanish traders 38. Other medicinal recipes for oxyporium also make use of garum. In Apicius this remedy is mixed with vinegar and garum and this is in fact the only other direct reference to garum in Apicius that is not combined in a compound term and subsequently listed as a liquamen. This source indicates that black garum had a continuing medicinal role throughout the period even if it appears to be used less at table 39. 

We cannot know when the blood viscera sauce was introduced into ancient cuisine. It certainly does not seem to be part of the early Greek evidence and its introduction may have been instigated by influence from Rome as the knowledge of these sauces spread. As a theory I offer the following : as fish sauces became generally more popular in Rome the elite would have been concerned with differentiating their foods from everybody else’s. 

If the consumption of liquamen fish sauces made from small fish was widespread then the elite would create a demand for a luxury version. The manufacturer may have instigated new developments in fish sauce types to meet this demand. One of these would have been the blood and viscera sauce, though how they thought of it is quite bizarre to comprehend. Its expense meant that it functioned as a table condiment and the gourmet could control the bottle and discuss its merits to demonstrate his culinary knowledge. Other developments at this time may have been the use of much larger fish, that did have a market value as salted fish, such as mackerel, tuna and larger clupeidae and sparidae. We may surmise that the fashion for Greek culinary culture at this time would mean that the original term was retained to designate the new luxury black table sauce forcing the merchants and traders to coin a new term ; liquamen to designate the original small whole-fish sauce 40. Liquamen remained in the kitchen and invisible to the diner who only saw and valued expensive sauces at table. In the later Roman period as black garum was not as visible either in commerce or at the table, it was naturally taken for granted among some commentators, as it has been today, that garum was just the Latin for garos and it began to be used to designate the single primary product. Only this seems to explain the group of late and early medieval references that claim that garum was equivalent to liquamen 41. They must have genuinely believed at the time that it was and simply did not comprehend the complexity behind these products. 

2.6. Muria and the Ausonius letter 21 

The letter sent by Ausonius to his friend Paulinus in the early 4th century is quite intriguing and deserves to be quoted in full. 

« Fearing that the oil you sent me was not pleasing, you repeated your gift and distinguished yourself  more fully by adding a condiment (of muria 42) from Barcelona. But you know that I have neither the custom nor the ability to say the word muria, which is in use of the common folk, although the most learned of our ancestors and those who shun Greek expressions do not have a Latin expressions for the appellation garum. But I, by what ever name that liquor of our allies is called, “now will soon fill my patinas so that that juice (sucus), more sparingly used on our ancestors tables, will flood the spoons” …. » 43 

The issue of the difference between garum and liquamen can be dealt with quite easily : if he believes that there is no Latin expression that he can use to replace garum then liquamen clearly cannot be equivalent to it. That he associates it with sociorum suggest he has received a blood/viscera sauce and there is no term in Latin for this. What requires explanation is his apparent use of muria to designate the sauce he has received. 

Muria is primarily a brine ; that is, salt and water. It is also defined as the brine that salted fish are stored in (muria salsamenti) 44. Muria appears very rarely in Apicius and seems not to have been a regular part of the cook’s seasonings in the preserved recipes. This product is seen as a lower status form of seasoning but we have seen that a form of fish-brine was used in elite 4th c. Greek cuisine as an ingredient in dipping sauces and this combination is also found in references to food in Roman satire, so muria could potentially be desirable and especially if aged 45. Muria may have been valued because it was a « clean » sauce i.e. free of fermenting viscera, which was perceived as putrefaction 46. 

Martial’s epigram on muria that follows the one for garum sociorum has often been seen as evidence that muria could in fact designate another garum made from tuna blood and viscera 47. 

« Amphora Muriae 

I am the daughter, I admit it, of Antipolitan tunny. Had I been of mackerel, I should not have been sent to you ». 

It is fair to say that it is not logical, to have another term to designate the blood/viscera sauce which can also mean a completely different less valued product entirely. However the perception of muria as low status is deceptive as we must ask for whom is it inferior and where it fits in the sliding scale of fish sauce quality. Martial has, I think, juxtaposed garum with muria here because they represented the two different types of sauce that could be valued in Roman cuisine rather than offering two that were virtually the same. After all what can be said of the differences between one lot of fish viscera and another ! 

We do not know the volume of tuna caught in the Mediterranean but given the potential size of this fish it is likely to be large and the volume of muria generated clearly had a market. However I suspect that tuna was not used to make a liquamen but only made garum or muria as a secondary product to the salted fish 48. It is apparent that tuna muria could be aged and would mature in flavour and value 49. Tuna would also generate vast quantities of viscera and blood which would make tuna garum just as the Geoponica advocates and archaeological evidence confirms the use of tuna blood in the production of garum haimation 50. This poem and amphorae tituli picti suggest that mackerel actually served as the best fish to use both for muria and garum. The elite therefore would consider tuna muria a product for everyone else to consume. Everyone else actually represents the thriving middle in Roman society, not the poor. We may also propose that garum could be made from a mixture of many types of fish blood and viscera and this would ultimately represent the lowest quality garum. Horace has one gourmet tell his guests that their oenogarum was made with muria and another who makes it with garum 51. I had considered that this muria consuming gourmet was being ridiculed by the poet but clearly it is not that simple. The choice of which sauce to use in a given circumstance will depend on factors we do not necessarily understand. In the late empire liquamen is also described as a vulgar term in contrast to garum, but this does not mean that liquamen « per se » was necessarily lower class or cheaper ; this would depend on its origin, variety, manufacturer and recipe used 52. I have conducted many experiments to manufacture liquamen fish sauce and though they cannot be dealt with here in any detail it has been possible to demonstrate that long term storage of the unfiltered sauce results in exceptional nutrition 53. An image of an unfiltered mackerel liquamen sauce can be seen in fig. 2 where the residue or allec is floating on the top of the clear enriched sauce. When this bone-free residue was re-brined and left for a few months, a relatively good quality second sauce was generated and which we find described on the price edict 54. 

Returning to Ausonius’ letter, these discussions have allowed us to see that he strikes a lofty pose and looks down on muria which he suggest is a vulgar term and we therefore assume it is a cheap and commonplace ingredient but vulgar is clearly a relative cultural idiom and from his lofty position is clearly the term that everybody else uses. He appears to be discussing the very idea of fish sauce seasonings generally and, as he does not want to use garum and as he has not received liquamen, he is using the only other term at his disposal : muria, which is only slightly lower quality than the garum sociorum that he values. At the same time he acknowledges that it is inadequate and expresses some frustration over the issue of what to call whatever he has received : « by what ever name that liquor of our allies is called. » That he has received a black garum is fairly clear but this letter also demonstrates that in the late empire fish sauce terminology had become a complicated issue. 

40 The term liquamen is cognate with liquere/liquescere meaning « to be liquid » and « liquefy ». Isidore of Seville in the 6th c. defines liquamen as « little fish dissolved during salting produce the liquid of that name » and defines garum as the « juice of fish » Etymologiae 20.3.20. Corcoran 1962, p. 205 was the first to be confused by the Isidore definition and combine the liquor from salted fish (muria) with the sauce derived from dissolved fish. 

41 Caelius Aurelianus 5th c. medical writer Chron 2.3.70 « ex garo quod vulgo liquamen appellant » ; 2.1.40 « vel garum quod appellamus liquamen » See partic.Beda Gramm. 7.279,10 « muria id est garos » which in the 7th c. may refer to the fact that in Roman Palastine muria/ies seems to have been the term for the primary product i.e. liquamen (Weingarten 2005).  

42 This first muria is out of place and is not needed in the sentence. It seems strange that he used it at all having subsequently declared that he doesn’t like the term. Andrew Dalby (per. com.) has suggested that this first muria is a gloss and I am inclined to agree. 

43 Ausonius Ep. 21 (Translation C Grocock) That he claims this sauce was « more sparingly used on our ancestors tables » is difficult to comprehend as noted by Corcoran (1963, p. 205). 

44 Cato RR 7 ; Columella 12.55.4 ; Gargilius Martialis, Curae boum ex corpore. 4 ; Pliny, HN. 31.83-92 For its low status image c.f. Isidore of Seville Etym. 20.3.20. 

45 Horace 2.4.63-9. An amphora tituli picti from London suggest that young tuna could be aged for 2 years. This cannot be whole fish as it would not be fit for consumption at that age and therefore muria is likely though un-named. Tituli picti also suggest muria could be aged Curtis 1991,p. 197. http://www.museumoflondon.org. uk/Collections-Research/Research/Your-Research/Londinium/Lite/ classifieds/sauce.htm (19/10/2012). 

46 Seneca. Epist 95.25 « A costly extract of poisonous fish which burns up the stomach with its salted putrefaction ».  

47 From the use of tuna viscera to make the haimation or bloody sauce in the Geoponica. Martial Epigrams 13.103 ; Corcoran 1963 p. 206 ; Studer 1994, p. 195. 

48 Curtis 1991 p. 6. One may imagine the non-viscera waste matter from such a large fish generating a cheap muria too. 

49 See above note 45. There is a modern fish sauce called colatura di Alici tradizionale made in Salerno Italy which involves very time consuming evisceration of tiny anchovy. The absence of viscera which provides digestive enzymes makes this sauce unusual. The sauce takes a year to completion and the tradition may go back ancient times and derive from a desire to make a « clean » fish sauce. It claims to be a garum, but has more in common with a muria. http:// www.youtube.com/watch?v=GVGaz5yT67E. 

50 Tiny gill bones from tuna have been found in a storage vessel in Aila Aqaba Jordon (Van Neer 2008).  

3. Conclusion 

It has been possible to see that each type of fish sauce could have had different roles within Roman cuisine. The sauce made just from blood and viscera is clearly sufficiently different in taste and flavour from the whole-fish sauces and fish brines to warrant the development of specific and sophisticated roles for all three sauces, which may have been instigated by apparently proactive Roman gourmets. 

There is a complex social order behind the consumption of these multiple varieties and qualities of fish sauce which would benefit from further study. When talking of fish sauces in archaeology and history it is now necessary to be much more precise and stipulate if possible which kind of fish sauce is being referred too. One could buy aged elite black mackerel garum, ordinary black tuna garum, elite liquamen cooking sauces made from mackerel or cheaper cooking sauces made with a mixture of clupeidae and sparidae, or a tuna or mackerel muria, both of which could also be aged or new. All of these products could also come in second or even third grade versions. Distinguishing between them will not always be possible in the archaeological record but a recognition of the diversity is essential. It is also no longer adequate to simply refer to a single product called garum as the term cannot convey the complexity of these products and its use actually confuses more than it aids our understanding of the fish sauce trade. It is clear that the perception of the quality of these products depends on many factors : the particular taste of the consumer, the particular role the sauce will have in the meal and whether that meal is everyday or a rite of passage feast as well as the purchasing power of the consumer and where the consumer is placed and places himself in the social order. 

51 Horace sat 2.4.63-9;2.8. 

52 See note 8 above. Curtis 1991, p. 195 where he sites many tituli picti of named manufacturers. 

53 Grainger forthcoming ; Grainger 2010. 

54 see note 3 with ref to the bone free allec.  

Sally Grainger

X. Garum, Liquamen, and muria: A new approach to the problem of definition
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Garum

Garum na Lusitania rural?

GARUM NA LUSITANIA RURAL? Alguns Comentários sobre o povoamento romano do Algarve

Carlos Fabião

Centro de Arqueología e Historia. Facultada de Letras de Lisboa. Cidade Universitaria 1699- Lisboa Codex. Portugal.

OS DADOS DA QUESTÃO

Em 1987, J. C. Edmonson, na tese que consagrou á exploração dos recursos mineiros e marinhos na Lusitânia, tentou tratar de um modo sistemático e racional o heterogéneo conjunto de informações disponíveis sobre cetariae, fornos de ânforas e articulá-lo com as formas de povoamento da antiga província romana do extremo ocidental da Hispânia. Esboçou, então, um modelo de explicação, retomado em texto posterior (Edmonson, 1990), que tentava cobrir as diversas realidades observadas. Em sua opinião, a exploração de recursos marinhos, produção de preparados de peixe e contentores para os exportar poderia enquadrar-se em três regimes diferentes, embora, naturalmente, complementares: um sediado em centros urbanos do litoral, outro instalado em centros (vici) de carácter suburbano e um terceiro, de âmbito rural, associado ao povoamento de tipo villa. Este último regime seria particularmente observável no Algarve, onde a exploração destes recursos assumiria um carácter subsidiário das atividades agrícolas (Edmonson, 1987; 129). Na sua opinião, os preparados de peixe produzidos neste mundo rural destinavam-se fundamentalmente ao autoconsumo, com um eventual escoamento dos magros excedentes para os centros urbanos mais próximos, em contentores de morfologia peculiar, as «local type amphoras» (Edmonson, 1987: 276-278 e 1990: 137).

Esta hipótesis é articulável com as opiniões expostas por J. G. Gorges, sobre o carácter original das villae algarvias, no contexto da Lusitânia, com implantações supostamente diferentes da norma da atração por centros urbanos e grandes vias observada em outras regiões da província (Gorges, 1979: 65-6 e 1990: 96 e 101-6).

Os fundamentais trabalhos destes dois autores constituíram o natural ponto de partida para o presente estudo. No entanto, a revisão global dos dados atualmente disponíveis permite questionar os fundamentos desta presumida originalidade algarvia, já que, por um lado, não parece correta a ideia de um regime de produção de preparados de peixe em âmbito rural, nem se deteta a existência de quaisquer tipos locais específicos de contentores para transporte e comercialização dos mesmos; por outro lado, não parece ser especialmente diferente a estratégia de implantação das villae em território algarvio, como se procurará demonstrar. Estas observações, que se colocam a discussão, em nada diminuem os contributos de Edmonson e Gorges, procuram somente retificar a ideia estabelecida de uma pretensa originalidade do extremo meridional do território hoje português que, aparentemente, não existiu de facto.

O ALGARVE

O Algarve constituí uma região bem individualizada no atual território português.

A norte é delimitado pela serra, que o separa da peneplanície alentejana, e é constituída por duas grandes massas de relevo a Serra do Caldeirão, a oeste, e a de Monchique, a este, que descem em anfiteatro na direção do mar (fig. 1).

O restante território compõe-se de formações mesozóicas e terciárias, parcialmente cobertas pela planície litoral pliocénica e sedimentos quaternários (Ribeiro et alii: 1987: 16 e 224-5 e Feio, 1983: 93-113.

FIG. 1

Assim, o Algarve aparece naturalmente dividido em três grandes regiões: a serra, de fraca aptidão agropecuária, o barrocal de maciços calcários, de vertentes pedregosas, separados por amplas depressões, onde predominara os pomares de sequeiro ou, parafraseando Orlando Ribeiro, «verdadeiras matas de frutos» (Ribeiro, s/d: 58), e a planície do litoral com extensas áreas arenosas, mas também com terrenos de boas aptidões agrícolas (Feio, 1983: 111) (fig. 2 e 5). A Oeste, a ampla foz do Guadiana separa a região da vizinha Andaluzia, embora exista uma evidente continuidade geomorfológica entre o território hoje espanhol, na época romana pertencente a vizinha província da Bética (Alarcao et alii, 1990), e o litoral algarvio, como, alias, já Gorges sublinhou (1979: 65).

De um ponto de vista agrícola, o Algarve de hoje aparece emblematicamente associado aos pomares de árvores mediterrâneas e as hortas irrigadas, uns e outras celebradas pelos autores muçulmanos (Coelho, 1972: passim). Estes mesmos autores não deixam de sublinhar a existência de manchas florestais que forneciam a indispensável matéria-prima para a construção naval. São estas referências que têm suscitado a ideia, provavelmente, não muito correta, como se verá, de esta paisagem ter sido criada pela presenta árabe, particularmente no que respeita ás hortas irrigadas (Feio, 1983: 121).

Com um extenso litoral e francamente aberta ao mar, integrada no amplo golfo constituído pelas costas luso-hispano-marroquinas, uma «espécie de pré mediterrâneo» (Ribeiro, s/d: 56) a região sempre esteve profundamente ligada á exploração dos recursos marinhos e ao comércio naval. A citada existência de boas manchas florestais assume, por isso mesmo, particular importância, já que fornece as matérias-primas necessárias a construção naval.

A Arqueologia do Período Romano no Algarve

Também do ponto de vista arqueológico o Algarve constitui um caso singular  no panorama do atual território português. Foi sistematicamente prospetado e os seus locais de interesse arqueológico seletivamente sondados por Estácio da Veiga nos meados do século XIX, no âmbito de um pioneiro projeto de cartografia arqueológica, posteriormente continuado por Santos Rocha e Leite de Vasconcellos, entre outros. Infelizmente, a exaustiva e sistemática obra Antiquidades Monumentaes do Algarve, onde o primeiro reuniu o produto do seu labor, não chegou a ser concluída, tendo ficado apenas esboçados alguns dos capítulos relativos ao período romano, publicados a título póstumo nas páginas de «O Archeólogo Português». O segundo, cedo trocou no Algarve pela região centro do nosso país, com particular ação na zona da Figueira da Foz e o terceiro, em sucessivas «excursões arqueológicas», foi carreando importantes contributos para o conhecimento do passado da região, mas sem o carácter continuo e sistemático que caracterizara a obra de Estácio da Veiga.

FIG. 2

Praticamente sem interrupções, os sítios arqueológicos algarvios continuaram a ser inventariados e estudados por sucessivas gerações de investigadores locais ou estranhos a região. Para não alongar demasiado a lista, cite-se a tese de licenciatura de Maria Luísa Estácio da Veiga Affonso dos Santos que, recuperando o gigantesco acervo de dados coligido pelo seu antepassado, acrescentado pelos contributos posteriores, no principio da década de 70 apresentava um extenso esboço da carta do povoamento do Algarve na época romana (Santos, 1971-2) e, mais recentemente, o labor desenvolvido pelo grupo da Carta Arqueológica do Algarve (CAALG) dirigido por Víctor dos Santos Gonçalves (1979 e 1981) e posteriormente continuado por Helena Cantarino (1988), principalmente na metade oriental da região, por Teresa Júdice Gamito, em Faro (1991a e 1991b), Alvor e Serra Algarvia, Carlos Tavares da Silva, Mário Varela Gomes (1987) nas áreas de paisagem protegida da Costa Vicentina (Sudoeste) e Ria Formosa (cordão litoral do Centro e Este), entre muitos outros trabalhos de âmbito pontual ou regional).

Os dados atualmente disponíveis sobre as diversas formas de povoamento que o Algarve conheceu em época romana encontram-se reunidos e cartografados no gigantesco inventário elaborado por Jorge Alarcão (1988) e nos volumes da Carta Arqueológica de Portugal que o IPPC/IPPAR tem em curso de publicação (Passos, 1989 e Marques, 1992). Assim, por comodidade de referencia e para não sobrecarregar o texto com citações bibliográficas, todos os sítios arqueológicos mencionados ao longo do presente texto serão acompanhados pelos números de código constantes quer num, quer nos outros, quando ali não figurarem.

Deve sublinhar-se, porém, que este panorama apresenta enormes limitações. Se, por um lado, pela extensão e exaustividade dos trabalhos desenvolvidos, pode considerar-se minimamente representativo do povoamento do Algarve no período romano, por outro, a ausência de estúdios monográficos sobre os diferentes sítios a escassez das áreas abrangida pelas escavações, sempre que existiram, bem como o facto de, na maior parte dos casos, terem sido efetuadas ainda no século passado reduz substancialmente a qualidade da informação disponível.

Para além do mais, vicissitudes várias, que não poderão ser aqui extensamente tratadas, conduziram ao descaminho de muitas das peças recolhidas, a perda de informação importante sobre proveniências de artefactos e circunstâncias de recolha e a uma enorme fragmentação das coleções, dispersas por inúmeros museus locais e regionais, pelo Museu Nacional de Arqueologia, pelos espólios de antiquários e colecionadores, etc. Como se tudo isto não bastasse, a recente e desenfreada explosão do turismo algarvio, particularmente das zonas do litoral, feito a margem de qualquer planeamento ou de ações de salvaguarda mínima dos valores patrimoniais, acarretou incontáveis destruições, infelizmente irreversíveis, tanto em sítios já conhecidos como em áreas que nunca foram objeto de escavações ou prospeções.

Finalmente, deve sublinhar-se que a dinâmica geomorfológica das costas algarvias denota dinamismos que o arqueólogo não deve ignorar: um acentuado assoreamento das zonas de estuário, um generalizado afundamento das áreas litorais e consequente recuo de arribas e cordões dunares, para além da notória instabilidade de toda a área da atual reserva natural da »Ria Formosa». Estas modificações, insuficientemente estudadas, limitam os nossos conhecimentos sobre o povoamento do litoral, indispensáveis a uma correta avaliação da sua ocupação e utilização no período romano.

Todas estas lacunas e deficiências de informação condicionam fortemente a análise que se segue e ajudarão a explicar as razoes da deliberada assunção de um discurso no condicional ao longo destas «considerações». A consciência destas limitações afigura-se igualmente indispensável para sublinhar o carácter hipotético das explicações avançadas.

O ALGARVE NO PERIODO ROMANO
Face aos dados disponíveis, podemos afirmar que, nos primeiros tempos da conquista romana ou, pelo menos, desde o século I a.C., o território algarvio apresentava uma feição francamente mediterrânea nas formas do seu povoamento, com um significativo número de centros urbanos ou, no mínimo, de lugares centrais em vias de o ser. Devido as características peculiares da região, acima esboçadas, pode dizer-se que esta rede de centros polarizava a totalidade do litoral e barrocal, afinal uma estreita faixa de terreno com não mais de 23 km. de largura (Feio, 1983: 107).

Os Centros Urbanos (fig. 3)
 
Na época da conquista romana, o extremo meridional do atual território português
tinha já uma longa historia de contacto e interação com as áreas mediterrâneas,
de que constituí, alias, um prolongamento natural. Para além do mais, como atrás se referiu, a sua peculiar geografia abria-o mais aos contactos por via marítima, do que a qualquer penetração pelos difíceis caminhos que sobem a serra. Parece indiscutível, também, que dispunha de uma rede de lugares centrais de características proto urbanas, senão mesmo urbanas, que se distribuíam desigualmente pela franja litoral, com um caso conhecido no barrocal, que garantia, de facto, uma cobertura total de todo o território, a exceção da serra provavelmente, um caso a parte nas dinâmicas e estratégias do povoamento local.
 
Começando de Este para Oeste, encontramos na foz do Guadiana:

FIG. 3

Baesuris (8/263) fig. 3

Implantada sob o atual castelo de Castro Marim, um lugar dominante atualmente rodeado de áreas de sapal. Embora não haja dados concretos de carácter paleográfico, afigura-se possível que, na época, constituísse uma península, sobranceira ao amplo estuário do Guadiana. Recentes escavações, infelizmente interrompidas, efetuadas sob a direção de Ana Margarida Arruda revelaram uma impressionante sequência de ocupações que se estende, aparentemente sem interrupções, desde o Bronze Final ao período romano (Arruda, 1991: 137-148). Cunhou moeda no período tardo-republicano (Faria, 1987: 1).

As escavações não permitiram caracterizar as ocupações posteriores aos inícios do período imperial, contudo, as categóricas referências do Itinerário de Antonino atestam a continuidade da ocupação, pese embora, talvez sem oesplendor de outras eras (Arruda, 1991: 137-148).

As razões da sua implantação e prosperidade devem relacionar-se com o controle da circulação no Guadiana, importante via de escoamento das riquezas mineiras do interior. Deveria encontrar-se em íntima relação com o centro de Myrtilis, sob a atual Mértola, localizada, por sua vez, praticamente no extremo navegável desta importante via fluvial.

Ainda hoje é zona de importante saliniculutura e, embora não se conheçam vestígios de centros para produção de preparados de peixe associados ao estuário do Guadiana, é provável que o forno (ou fornos) de ânforas de Olhos de S. Bartolomeu, implantado(s) junto ao esteiro da Carrasqueira, produzisse contentores para preparados de peixe processados nas suas imediações (v. Fig. 4 e Anexo 1). Certamente por deficiência de informação, Edmonson localizou em Vale do Boto um centro de fabrico de ânforas (1987: 277 e fig. 6.2.C.; 1990: 136 e fig. 2C).

No local, foi somente identificado um habitat romano, onde apareceram ânforas, e escavado um povoado muçulmano (Gonçalves et alii, 1980, Catarino et alii, 1981 e Catarino, 1988).

As causas do seu declínio poderão dever-se ao enchimento do estuário, que a afastou irremediavelmente do rio e do mar. No século XIII, a data da conquista cristã, não possuía já qualquer relevância regional, tendo sido substituída pela fortaleza de Cacela (Ribeiro, s/d: 81, Coelho, 1972: 49-51 e Garcia, 1986: 74). Foi repovoada, ganhando nova relevância por ser núcleo de fronteira do novo reino de Portugal (Garcia, 1986: 75-6). Em época mais recente seria definitivamente substituída pelo setecentista porto de Vila Real de Santo António. E interessante assinalar que ainda nos meados deste século, daqui se escoava o produto da exploração das minas de S. Domingos, Mértola (Feio, 1986: 137), já em laboração no período romano e talvez mesmo antes.

FIG. 4

Balsa (d,/5lS) fig. 3

Implantada junto ao litoral nas proximidades de Luz de Tavira a cidade de Balsa, a julgar pelo topónimo, existiria já em época pré-romana, embora se desconheça desde quando. Os descontínuos trabalhos arqueológicos que ali se têm efetuado desde o século passado —certamente, menos relevantes que as destruições sofridas—, não revelaram quaisquer materiais anteriores ao período tardo-republicano, época em que terá cunhado moeda. Segundo Vasco Mantas, teria sido elevada a dignidade de município sob os flávios (1990: 192-3). Este mesmo autor identificou vestígios de um cadastro em redor da cidade e valorizou devidamente a diversidade de recursos de que dispunha. Tomando Baelo como modelo, defende que as invasões do século III teriam marcado o inicio da decadência da cidade, precipitada no século V (Mantas, 1990: 199). Contudo, entre os materiais depositados no MNAE e recolhidos nas escavações que o local conheceu figuram suficientes indícios de uma continuidade da ocupação, alias já claramente referida por Leite de Vasconcellos (1917: 126), e parece-me bastante provável, como adiante se explicará, que, ao contrario do que pretende Mantas, tenha sido justamente a decadência dos centros da Baetica que possibilitou um período de particular prosperidade para as cidades algarvias.

O mesmo autor (Mantas, 1990: 197-8), seguindo Maria Luísa V. S. Pereira (1974-7), defendeu a origem balsenses das ânforas da Classe 22 (= «Almagro 50» / Keay XVI) com as marcas LEV. GEN, OLYNT e AEMHEL (v. anexo 1). No entanto, o estudo recente destes materiais, particularmente a sua composição mineralógica não autorizam uma identificação categórica —embora também não a excluam— e a associação a materiais de construção com marcas análogas, que Mantas refere,  resulta certamente de um equívoco, já que não apareceu qualquer tegulacom estas marcas em Torre de Aires, mas sim em Portimão (Pereira, 1974-7: 246-8).
Entre os materiais de Torre de Aires depositados no MNAE de Lisboa figura um fragmento de ânfora da Classe 23 (= Almagro 51c / Keay XXIII) deformado por excesso de cozedura, achado típico das zonas onde existiram fornos (V. Fig. 4 e Anexo 1). No entanto, o dito fragmento poderá ter sido recolhido em outro lugar do Algarve, visto que são bem conhecidas as vicissitudes por que passou o conjunto de materiais recolhido por Estácio da Veiga até ao seu depósito e inventário definitivo.

De qualquer modo, se houve produção de ânforas para o transporte de preparados de peixe em Balsa, não parece ter sido anterior aos inícios do século III.
Esta, poderá relacionar-se com as cetariae identificadas nas suas proximidades, designadamente, em Cacela (8/282) e Quinta Do Muro (8/281), havendo ainda vagas notícias de um forno no lugar da Manta Rota (8/296) (Vasconcellos, 1919-1920: 229) que poderia ter produzido ânforas (v. fig. 4) e que, se assim for, deverá relacionar-se com estes dois lugares; para além da própria quinta de Torre de Aires (8/318), Tavira, onde se identificaram, também, estruturas para a transformação do pescado (fig. 4).

Uma vez mais, e à semelhança do que aconteceu com Baesuris, terão sido alterações verificadas no litoral, provavelmente associadas a novas estratégias de povoamento que terão motivado a decadência de Balsa e a sua substituição por Cacela, ao que parece o grande centro regional no século XIII, igualmente implantado junto a costa, mas com condições naturais de defesa, e por Tavira, resguardada no interior, mas com acesso direto ao mar através do rio Giláo.

Ossonoba (8/322) fig. 3

Situada sob a atual cidade de Faro, Ossonoba terá sido o mais importante núcleo urbano do atual Algarve sob o domínio romano. Recentes notícias parecem indicar que o local já seria frequentado, ou mesmo ocupado, num momento precoce do I Milénio a.C. (Gamito, 1991b: 300-301), podendo, por isso, ter conhecido uma evolução análoga a de Baesuris. Varias escavações em curso, sob a direção de Teresa Júdice Gamito, poderão brevemente enriquecer o nosso conhecimento sobre a cidade antiga, para já limitado aos dados das antigás escavações e a epigrafia.

Vasco Mantas compilou e analisou recentemente os dados disponíveis sobre Ossonoba, sublinhando o conjunto de informações sobre a mesma em tempos pré-romanos e os seus precoces contactos com Roma (Mantas, 1990: 182-3). Tal como Baesuris e Balsa, cunhou moeda no século I a.C. e teria recebido o estatuto municipal ainda sob os Júlios-Cláudios, provavelmente na época de Cláudio idem: 183).

Parece indubitável que terá sido desde a época romana o grande centro regional, nunca abandonado apesar da sua localização, mesmo nas épocas em que a estratégia de povoamento opta pela fuga do litoral e o refugio no interior junto aos grandes cursos de água. Sob o domínio romano, parece ter conhecido um particular desenvolvimento a partir do século III {idem: 183-189), provavelmente beneficiando também das dificuldades sentidas por essa época pelas cidades da Baetica.

O seu carácter cosmopolita e mercantil, já devidamente sublinhado por Vasco Mantas (idem) parece ter tido na exploração dos recursos marinhos uma das suas principais componentes.  Conhecem-se várias estruturas destinadas á produção de preparados de peixe no seu subsolo (Alarcao, 1988, Mantas, 1990: 185 e Gamito, 1991a) e na sua área de influência, designadamente em Olhão (8/323) e Quinta de Marim (8/311), a Este, e Quinta do Lago (610.2.3. – Marques, 1992), Loulé Velho (8/300), Quarteira (8/299) e Cerro da Vila (8/298), a Oeste (fig. 4).
Associados a estes centros de transformação parecem estar os fornos de Alfanxia, Olhão (8/*), S. João da Venda, Faro (8/305) e Quinta do Lago, Loulé (610.2.3) (v. Fig. 4 e Anexo 1). Os primeiros, conhecidos somente por breves referências (Mascarenhas, 1974), terão produzido ânforas da forma Almagro 51ab (= Keay XIX/XXI), tal como os de S. João da Venda (Fabião/Arruda, 1990). Os da Quinta do Lago fabricaram, aparentemente, duas classes diferentes: a Classe 23 (= Almagro 51c/Keay XXIII) e, em menores quantidades, ânforas da Classe 22 (= -Almagro 50» / Keay XXII) (Arruda/Fabiado, 1990). Uma vez mais, todas estas ânforas são características do período posterior aos inícios do século III e, particularmente as primeiras (Almagro 51a-b / Keay XIX/XXI), muito difundidas nos séculos IV e V. Em depósito nos museus não se encontra nada que possa ser considerado um «tipo local» de contentor associado a estes fornos, como defendeu Edmonson (1987: 277 e 1990: 137) e o conjunto de fragmentos que primeiramente identificamos como pertencentes a ânforas da Classe 20/21 (Arruda/Fabiao, 1990: 202 e fig. 58) corresponde, na realidade, a diferentes fragmentos de suportes cerâmicos, idênticos aos conhecidos em outros centros oleiros da Lusitânia, certamente relacionados com as operações de fabrico dos contentores.

Portus Hannibalis (7/117-7/146 ?) fig. 3

Ao contrário do que acontece com todos os centros anteriormente descritos,
as nossas informações sobre o Portus Hannibalis são escassas e reportam-se,
exclusivamente, a fontes escritas. Não sabemos se cunhou moeda, não conhecemos
quaisquer dados epigráficos e ignora-se a sua localização precisa.
Pelo nome, supõe-se que teria sido fundado no século III a.C. por Aníbal Barca e que se situava no Oeste algarvio. De entre as várias propostas de localização, a mais corrente aponta as imediações da atual vila de Portimão, na margem direita do rio Arade, junto do estuário. 

FIG. 5

Nesta área foram identificadas estruturas de época romana em Portimão (7/117), junto do convento de S. Francisco (7/146) e em outros lugares das suas proximidades (fig. 4 e 5), mas nada que se possa relacionar com a presumida fundação bárcida. Recentemente, dragagens efetuadas no estuário do rio Arade revelaram a presença de abundantes materiais arqueológicos, entre os quais se destacam cerâmicas campanienses e ânforas do período tardo-republicano (Silva et alii, 1987) o que, convenhamos, embora interessante resulta insuficiente para uma identificação categórica.
Também este local forneceu vestígios de estruturas para a produção de preparados de peixe, nas duas margens do estuário: Portimões (7/117 e 7/146), na
margem direita, e Ferragudo (7/147), na margem esquerda. A montante, na margem
esquerda, foi recentemente identificado u, novo local com cetariae, o sítio Baralha 2 (594.4.6 – Marques, 1992) (fig. 4).
A admitirmos a implantação de um núcleo urbano no estuário do Arade, deveremos
considerá-lo em articulação como o outro centro urbano das margens deste rio: Cilpes.

Cilpes (7/112?)fig. 3

O Núcleo urbano de Cilpes deve localizar-se no Cerro da Rocha Branca, importante sitio arqueológico sobranceiro ao rio Arade, na sua margem direita, que infelizmente foi recentemente destruído. Antes das destruições, os arqueólogos Mário e Rosa Varela Gomes conseguiram identificar urna extensa ocupação humana, que parece remontar ao segundo quarto do I Milénio a.C. (Gomes, 1992: 136), prolongando-se até ao Baixo Imperio (Gomes et alii, 1986 e Gomes, 1988: 23-5). Num momento impreciso, mas talvez posterior ao século IV, o núcleo urbano transferiu-se para o local onde hoje se ergue a cidade de Silves (Gomes, 1988: 25). Esta transferência não implicou, porém, o abandono do núcleo anterior, como os dados arqueológicos demonstram (Gomes et alii, 1986).
De Cilpes conhecem-se, também, cunhagens do século I a.C., atestando a sua importância nesta época. Embora a sua implantação se pareça dever a proximidade de importantes jazidas mineiras, a sua localização permitia-lhe a exploração de recursos diversificados, tanto agropecuários como silvícolas, sem esquecer as potencialidades proporcionadas pela navegabilidade do rio (Gomes, 1988: 23-5).
Justamente no período muçulmano, quando a estratégia de habitat denota preferência por lugares recuados em relação ao litoral, mas com fácil acesso ao mar, a cidade de Silves, herdeira do antigo núcleo, viveu a sua época de maior esplendor.

Ipses (7/145) fig. 3

No lugar de Vila Velha, Alvor, na margem esquerda do amplo estuário da ribeira de Odiáxere, onde se tinham já registado achados de materiais de várias épocas e onde diversos autores localizavam, também, o Portus Hannibalis foram recentemente escavadas por Teresa Júdice Gamito diversas estruturas do período romano republicano. Entre os materiais recolhidos figuram duas tesserae de chumbo da cerca de Ipses, de que se conheciam já algumas moedas de bronze, datáveis do século I a.C. (Paria, 1987: 2 e 1988).
Partindo do pressuposto de que a moeda de chumbo não circularia fora da área da sua cunhagem, António Paria defende a localização de Ipses em Vila  Velha. Teríamos, assim, um novo centro urbano no barlavento algarvio. Só a publicação dos resultados das escavações arqueológicas permitirá precisar as características do núcleo, bem como a cronologia da sua ocuparão.
Uma vez mais, regista-se a presenta de um complexo de cetariae nas suas imediações, mais concretamente na praia do Vau (7/111), na margem direita do estuário da ribeira (fig. 4).

Lacobriga (7/139-7/140 ?) fig. 3

Sobre Lacobriga temos, no estado atual dos nossos conhecimentos, um panorama análogo ao exposto para o Portus Hannibalis: conhecemos o local por referencias textuais, mas não existe outro tipo de informação que nos esclareça sobre a sua exata localização ou relevância regional.
Tradicionalmente, o antigo núcleo tem sido localizado ou no Monte Molião (7/139), na margem esquerda do estuário da ribeira de Bensafrim, também conhecida por rio de Lagos, ou sob a atual cidade de Lagos (7/140). No primeiro, foram recolhidos materiais de tipo ibero-púnico, designadamente lucernas (Viana et alii, 1953: Lám. IV), bem como materiais romanos alto-imperiais; e no segundo, foram identificadas diversas estruturas romanas associadas á exploração de recursos marinhos, com materiais de diferentes épocas, incluindo o Baixo-Império. Finalmente, em dragagens efetuadas no estuário do rio foram recolhidos materiais arqueológicos, dos quais os mais antigos remontam ao século I d.C.
Independentemente da exata localização da cidade de Lacobriga resulta evidente que também este estuário se encontrava povoado nas suas duas margens em época romana. Uma vez mais, regista-se a presenta de estruturas destinadas a transformação do pescado, tanto no subsolo de Lagos (7/140), como na vizinha praia da Senhora da Luz (7/141) (fig. 4).
O extremo Oeste do território algarvio, o Hiéron Akrotérion de Estrabão ou o Sacrum Promunturium dos autores latinos, embora fosse frequentado por motivos religiosos era inóspito e não possuía grandes núcleos populacionais, como refere o geógrafo grego (III, 1, 4). Não temos motivos para pensar que esta situação se tenha alterado durante o período do domínio romano.

O Povoamento Rural (fig. 5.)

A observação das diferentes «Cartas Arqueológicas do Algarve», desde o primeiro
esboço geral de Estácio da Veiga (1910), as recentes sínteses de Jorge Alarção (1988) e aos levantamentos promovidos pelo IPPAR (Passos, 1990 e Marques, 1992), passando pela de Maria Luísa Santos (1971-2) e pelas sectoriais de Helena Catarino (1988) e Varela Gomes e Tavares da Silva (1987), sugere a existência de um denso povoamento na época romana, disseminado por todo o território, com especial predileção pelo litoral e barrocal. Infelizmente, este amplo conhecimento dos pontos de povoamento não tem sido acompanhado de um esforço análogo de determinação das suas características e cronologias, pelo que nos vemos bastante limitados na sua interpretação. Como o presente estudo partiu das propostas específicas de Edmonson e Gorges, como atrás se referiu (0), importava, antes de mais, selecionar o conjunto de pontos que poderia ser enquadrado na classificação genérica de villae, nos moldes em que Gorges tipificou esta forma de povoamento (Gorges, 1979: ).

As Villae do Algarve

Por falta de melhores e mais seguros indicadores, optei por selecionar, de entre o conjunto de sítios arqueológicos com ocupação do período romano, todos aqueles onde se detetou a presença de mosaicos, fustes de colunas ou capitéis, indicadores da presenta em ambiente rural, de edifícios de carácter urbano. Foram excluídos os diversos locais cartografados que não apresentavam vestígios arquitetónicos relevantes. Este critério, naturalmente discutível, pareceu-me ser o único seguro, já que se me afigurava falaciosa a adoção de outros, designadamente o da presença de cerâmicas finas importadas. Se valorizasse este dado, estaria certamente a perpetuar vícios de recolha de informação e, eventualmente, a incluir nesta categoria sítios tão diversos, como necrópoles ou grandes povoados com capacidade para adquirir estes materiais, neste caso, facilitada pela proximidade do mar. Contudo, tenho consciência que terão ficado excluídos, por falta de melhor caracterização, alguns locais que poderão ter conhecido a implantação de villae, como por exemplo o sitio da Lezíria (8/264), nas proximidades de Baesuris, onde foi recolhido um abundante lote de cerâmicas finas (Armda/Dias, 1985).

Na cartografia das villae foram incluídas, ainda, duas outras realidades estreitamente relacionadas com o mundo rural; os vestígios de lagares e as barragens fig. 5).

No caso dos primeiros, infelizmente, só raras vezes está inequivocamente demonstrado o seu enquadramento no período romano, já que a maioria é documentada ou pela presença de pesos das prensas —na praia, junto a Loulé Velho (8/300) e em Aimadanin (594.2.1.)— ou pela presenta das estruturas escavadas na rocha —Vale do Marinho (7/102), Vidigal (7/98) e Fonte Velha (7/90)—, aparecidos, uns e as outras, junto de locais com ocupação romana. Quanto aos restantes, sem qualquer dúvida integrados em villae—D. Menga (8/314), Quinta de Marim (8/311), Milreu (8/304), Vale de Arrancada (7/114), Monte da Torre (7/103) e Abicada (7/107)—, desconhecemos a cronologia do seu funcionamento (fig. 5).

Quanto as barragens (fig. 5) (Quintela et alii, e Cardoso et alii, 1990), cuja associação a diferentes formas de povoamento parece, contudo, inquestionável, estão maioritariamente ligadas ao mundo rural: a do Alamo serve a villa do mesmo nome (8/225), a de S. Rita serviria a Quinta do Muro (8/282), a de Vale Tesnado o Cerro da Vila (8/298) e a da Fonte dos Mouros um dos centros do território de Cilpes (Cardoso et alii, 1990: 2.6.). As restantes, poderiam servir centros de produção de preparados de peixe: Armação de Pera (7/152) e a de Espiche  {idem: 2.7.), talvez o centro da Senhora da Luz (7/141); e a da Fonte Coberta (7/138) eventualmente a própria cidade de Lacobriga (Alarcao, 1988: 183) o que pressupõe uma localização da mesma na margem direita da ribeira de Bensafrim,   isto é, sob a atual Lagos.

A carta de distribuição apresentada defronta-se, todavia, com uma dificuldade de momento insuperável: a das cronologias de ocupação. A mera consulta da listagem do Anexo 3 esclarece cabalmente sobre a extensão do problema. De 36 sítios selecionados, dispomos de alguns indicadores cronológicos para 18, isto é, para metade, e somente na Quinta de Marim (8/311), Milreu (8/304), Cerro da Vila (8/298) e Abicada (7/107) se efetuaram extensas escavações no nosso sáculo, embora em nenhum dos casos se tenha verificado a sua publicação integral.

O esclarecimento desta situação é essencial para que se possa compreender como é frágil a leitura que aqui se apresenta, apesar do grande número de sítios considerado. Esta ausência de dados concretos, de elementos precisos de datação, para a maior parte dos casos, transforma esta carta num «palimpsesto» onde, provavelmente, se misturam momentos diversos de ocupação. Somente a título de exemplo, refira-se que incluí dois sítios como a villa da Senhora do Pilar (7/123), com um abundante lote de materiais do século I recolhidos a superfície, mas nada seguramente posterior, e a de Torrejáo Velho (596.3.8.), nas suas proximidades —não deve ser confundida com a sua homónima do concelho de Tavira (8/324)—, sobre a qual não possuímos nenhum indicador cronológico e que, por isso mesmo, pode ter começado a ser ocupada num momento em que a de Senhora do Pilar já fora abandonada…

Esclarecidas as limitações da presente abordagem, importa salientar algumas linhas de força que se podem considerar independentes de qualquer fator de ordem cronológica. Em primeiro lugar, resulta evidente a intenção de instalar estes estabelecimentos junto a solos de boa aptidão agrícola, particularmente os da Classe A, sendo notória a preferência pela plataforma litoral. A norma de relação entre solos das Classes A e B e a presença de vestígios de villae não se verifica apenas no caso do Monte da Torre (7/103). Parecem evidentes, também, as duas tendências enunciadas por J. G. Gorges (1990) para a sua localização, a saber, a proximidade dos centros urbanos —praticamente todas se localizam a uma distância inferior aos 20 km sugeridos pelo modelo de Van Thünen—, e a proximidade das principais vias, tanto as terrestres, visível pelo confronto com a proposta de J. Alarção (1988: 52 e 57-8), constante nas diversas cartas (fig. 3, 4 e 5), como a grande via fluvial que o Guadiana constituí neste particular, é notória a ocupação sistemática de pequenas manchas de solos agricultáveis, designadamente, em Alamo (8/255), Montinho das Laranjeiras (8/249) e Vale de Condes (Catarino, 1988: n- 3) aos quais haverá, provavelmente, que adicionar uma ocupação sob a atual Alcoutim (8/247) e outros núcleos de povoamento, que pontuam toda a margem direita deste rio (Alarcao, 1988: Folhas 8b e 8c). Desenquadrada destas duas tendências surge-nos apenas a villa de S. Margarida de Alte (7/80) claramente instalada no «barrocal», embora junto a solos das Classes A e

A sua localização pode ser simplesmente marginal, ou relacionar-se com algum ramal do sistema viário secundário, que estabeleceria a ligação entre o Algarve e a peneplanície alentejana, através da serra.

Pelas limitações já expostas, resulta fácil compreender como são escassas as possibilidades de, no estado atual dos conhecimentos, reconstituir o quadro da economia destas villae algarvias. No entanto, parece-me legítimo afirmar que a geografia da sua distribuição em nada difere da que verificamos para outras regiões da Lusitânia e somente pela valorizarão excessiva de alguns casos pontuais, claramente minoritários no panorama geral, se poderá justificar a tese de uma qualquer originalidade do povoamento rural desta região. A exploração dos recursos marinhos, sem dúvida uma importante atividade, assume um carácter  suficientemente diferenciado, tanto na implantação dos seus centros, como nas características que os mesmos possuem.

Como facilmente se nota, foram excluídas da presente lista (anexo 3) muitas das tradicionalmente chamadas «villae» algarvias, particularmente as do extremo  Oeste do território, Senhora da luz (7/141), Salema (7/131) ou Boca do Rio  (7/132). Tal exclusão justifica-se pelo facto de todas elas se implantarem em  áreas cujos solos não apresentam aptidões agrícolas. A desproporção entre a  pobreza dos solos envolventes e a exuberância das suas construções, aliada a presenta, em todas elas, de estruturas de cetariae, sugere uma opção de exploração de recursos marinhos que, na minha opinião, nada tem a ver com o mundo rural. No entanto, se resulta evidente, para mim, que seria abusivo classificá-las como villae, já não estou tão certo sobre a designarão que deveremos dar-lhes…

Não se nega a existência de uma complementaridade entre recursos agrários e recursos marinhos, contudo, este fenómeno deve ser entendido mais numa perspetiva regional, do que propriamente no âmbito de um mesmo sitio com as possíveis exceções da Quinta do Muro (8/282), Quinta de Marim (8/311), Cerro   da Vila (8/298) e Baralha 2 (594.4.6.), todos eles com vestígios de cetariae e implantados em zonas com boa aptidão agrícola.

Completando a paisagem rural algarvia, conhecem-se inúmeros aglomerados de menores dimensões, não enquadráveis, dentro do que se sabe, na categoria de villae, disseminados quer no litoral, quer no «barrocal» e, inclusivamente, na «serra», embora nos faltem informações precisas sobre esta última região, normalmente menos prospetada. Os dados de campo dos trabalhos de Victor S. Gonçalves e Helena Catarino demonstram, contudo, que esta última região não seria tão despovoada como tradicionalmente se supõe. Normalmente todos estes sítios estão, tal como as villae, implantados nas proximidades de pequenas manchas de solos das Classes A e B.

A Exploração dos Recursos Marinhos (fig. 4)

A região do Algarve teve na exploração dos recursos marinhos uma das suas mais importantes componentes económicas. De há longa data era sabida que no período romano tais recursos já eram amplamente explorados, sendo inclusivamente objeto de exportação. O registo arqueológico forneceu abundantes elementos aos investigadores, particularmente estruturas como cetariae, anzóis e fornos de ânforas (Santos, 1971-2; Alarcáo/Mayet, 1990). Por se tratar de uma região perfeitamente enquadrada na área mediterrânea peninsular, eventualmente relacionada com a cidade de Gades (Mantas, 199), e até dispormos de dados seguros, permanecerá de pé a hipótese de remontar a épocas pré-romanas o início da exploração deste tipo de recursos no litoral algarvio. No entanto, deve sublinhar-se que a informação disponível, como já foi referido (2.1), documenta sobretudo uma produção e exportação tardia, já do Baixo Imperio (v. anexos 1 e 2).

Ao longo do litoral encontram-se referenciados vinte e dois (22) locais onde se identificaram estruturas com cetariae, documentando de um modo inequívoco a enorme importância regional da exploração dos recursos marinhos. O mapa da sua distribuição merece alguns comentários. Em primeiro lugar, resulta estranha a sua ausência na foz do Guadiana e áreas adjacentes, ou seja, no território de Baesuris, tanto mais que se conhece nas proximidades daquele centro urbano uma olaria (8/292), que terá fabricado ânforas durante um extenso período de tempo, e que se encontra bem documentada a longa tradição suscitadas pelo assoreamento do estuário do Guadiana, atualmente agravadas pela proliferação de obras-públicas que, regra geral, não têm sido devidamente acompanhadas por arqueólogos.

Segue-se toda a extensão litoral hoje incluída na reserva natural da Ria Formosa, que envolve as antigás cidades de Balsa e Ossonoba. Aqui, embora sejam evidentes as grandes transformações ocorridas na orla costeira, conhecem-se diversos estabelecimentos com estruturas para transformar o pescado, quer nas proximidades imediatas das duas antigas cidades, quer nos seus arredores. Nesta zona encontramos também a maior concentrarão de fornos para o fabrico de ânforas até hoje identificados em terras algarvias. Pela sua implantação, parece evidente tratar-se de um bom exemplo daquilo que Edmonson definiu como produção de âmbito urbano, ou suburbano. Uma vez mais, as informações disponíveis não permitem determinar quando terá começado esta atividade. No entanto, os fornos minimamente conhecidos (8/318?, 8/*, 8/305 e 610.2.3) parecem ter laborado somente no Baixo Imperio, isto é, numa época não anterior aos inícios do século III e, fundamentalmente, no IV e, talvez, no V (v. Anexo 1).

Mais a Oeste encontramos um conjunto de três estabelecimentos, todos muito próximos entre si, nas imediações da atual vila de Quarteira, respetivamente, Loulé Velho *8/300), praia da Quarteira (8/299) e Cerro da Vila (8/298). Os dois primeiros, atualmente muito destruídos pela ação do mar, poderiam ter pertencido a um mesmo complexo de grandes dimensões, terão conhecido ocupações antigas, recolheram-se, tanto num como no outro, moedas de Carteia, embora os vestígios mais numerosos datem de época tardo-romana. O terceiro, somente com duas pequenas cetariae, corresponde a uma villa romana com uma ocupação que se poderá ter iniciado no séc. I ou II, embora se tenha prolongado até a época medieval. A sua localização, a cerca de 15 km de Ossonoba sugere que, também eles, pertenceriam a área de influencia imediata do antigo núcleo urbano.

Em todo a orla litoral que se estende desde Quarteira até a Foz do Arade regista-se um único estabelecimento com cetariae, o da praia de Armação de Pera (7/152). Esta rarefação de lugares utilizados para a implantação de estruturas deste tipo é compreensível, já que se trata de uma zona de arribas, com pequenas reentrâncias passíveis de utilização num regime de pesca artesanal, mas de dimensões modestas, ou seja, nada comparável como o que se verifica nos grandes centros de produção de preparados de peixe. Naturalmente, esta ausência de dados pode atribuir-se, em parte, a deficiências de prospeção, contudo, parece mais verosímil supor que a adversidade das condições geográficas justifique a sua ausência. O núcleo de Armação de Pera, uma vez mais, poderá associar-se ao conjunto de explorações da foz do Arade, já que dista da mesma apenas cerca de 12 km.

Na região compreendida entre o Arade e o rio de Lagos voltamos a encontrar uma concentração notória de estruturas consagradas á exploração dos recursos marinhos. Uma vez mais, parece significativa a associação entre estas e os centros urbanos, desde o núcleo de Ferragudo (7/147), o mais oriental, aos de Lagos (7/140) e Senhora da Luz (7/141). A concentração de outras formas de povoamento nesta mesma área parece também significativa. O facto de não conhecermos qualquer centro oleiro para produção de ânforas deverá dever-se somente aos acasos da prospeção, já que carece de fundamento a noticia de Beltran Lloris sobre uma produção de ânforas da Classe 19 (= Bel. lib) em Lagos (Beltrán Lloris, 1990: 224), e não parece credível que todos estes centros pudessem ser abastecidos pelas olarias da praia do Martinhal.

Finalmente, assume características peculiares a existência de uma concentração de estruturas com cetariae no extremo ocidental algarvio. A zona parece à partida pouco favorável a instalação deste tipo de equipamentos, já que, tal como a região  compreendida entre a Quarteira e a foz do Arade apresenta um litoral com arribas altas e pequenas reentrâncias, que correspondem as desembocaduras  de pequenas linhas de agua. Contudo, desde a praia do Burgau (7/143) até a do Beliche (7/159),   praticamente todas as reentrâncias apresentam estabelecimentos  deste tipo, inclusivamente, o pequeno ilhéu da Baleeira (7/l6l), em frente a praia do Martinhal (Gomes/Silva, 1987: 67-119)- Todo este conjunto parece especificamente orientado para a exploração em grande escala dos recursos marinhos, com o apoio de um importante núcleo oleiro de, pelo menos, quatro fornos, instalado na praia do Martinhal (7/l60). Esta atividade de produção e exportação de preparados de peixefuncionou aparentemente durante o século IV e V, visto que dispomos de um significativo terminus post quem, para a laboração do centro oleiro um fragmento de sigillata clara D, forma Hayes 6lA, encontrado sob a câmara de combustão do forno III, por sua vez selada pela entulheira de um dos outros fornos que continuou em laboração.

O conjunto de estruturas desta área corresponde precisamente a maior concentração de locais onde se supõe a existência de villae onde os preparados de peixe seriam explorados como complemento das atividades agrícolas. Contudo, como se referiu a inexistência de solos de aptidão agrícola na área torna pouco aceitável esta interpretação. Por outro lado, a suposta presença de villae é  deduzida da existência de equipamentos urbanos associados as cetariae, designadamente edifícios termais na Senhora da Luz (7/14) e Boca do Rio (7/132). Tal dedução não parece aceitável, já que a estreita relação entre termas e estabelecimentos para a exploração de preparados de peixe é bem conhecida em outros locais, designadamente na Ilha do Pessegueiro, Sines (7/34), na Comenda, Setúbal (5/318) e Troia, Orándola (5/320), para citar apenas alguns casos da Lusitânia.

2.4. A Economia do Algarve sob a Domínio Romano

Com os dados atualmente disponíveis não é fácil tentar esboçar as características gerais da economia do território do Algarve sob o domínio romano. Contudo,

parece-nos possível tragar um primeiro quadro hipotético que, naturalmente, terá de ser devidamente testado por futuras investigações.

Em primeiro lugar parece evidente que as formas de povoamento enquadráveis na designação genérica de villae escolhem para a sua implantação as áreas onde existem terrenos da Classe A, de maior aptidão agrícola e, somente em casos excecionais —Baralha 2 (594.4.6), Cerro da Vila (8/298), Quinta de Marim (8/311), Loulé Velho (8/300) e, talvez, nos estabelecimentos dos arredores de Balsa— se encontra documentada uma associação entre explorações agrárias e estruturas destinadas ao processamento do pescado. Deve salientar-se, porém, que o único caso minimamente conhecido, o do Cerro da Vila, apresenta somente dois pequenos tanques, provavelmente destinados somente a uma produção para consumo local. Nos outros casos, não existem garantias mínimas de uma real associação entre as eventuais villae e as cetariae. De qualquer modo, em qualquer dos casos citados, existem potencialidades efetivas de exploração de recursos diversificados. Refira-se, ainda, que o facto de se terem identificado vestígios de tanques com revestimento de opus signinum não autoriza a sua classificação  como cetariae, já que, por exemplo, os tanques da Abicada (7/107), pela sua localização não parecem destinados á produção de preparados de peixe, como tem sido sugerido.

A ausência de investigações sistemáticas impede-nos de avaliar com segurança o panorama da agricultura algarvia do período romano. Tendencialmente, seríamos levados a supor que a clássica tríade mediterrânea de cercais, azeite e vinho constituiria uma importante componente, sem esquecer, todavia, o peso que os hortícolas têm na alimentação e, no caso concreto do Algarve, a relevância que já poderiam ter os frutos, frescos ou secos.

Sobre os primeiros, estamos, à partida, fortemente limitados. Sobre a produção cerealífera, na época, nada sabemos. A existência de algumas estruturas de lagar, presumível ou seguramente romanos, parece indicar a produção de vinho e, eventualmente, de azeite. De entre estas estruturas, são seguramente romanos, os lagares de vinho de Abicada (7/107) (Viana et alii, 1953: 128-129), Vale da Arrancada (7/114) (Santos, 1972: 187-190), Mílreu (8/304), Quinta de Marim (8/311). Presumivelmente romanos e destinados á produção de azeite teriam sido os lagares de Loulé Velho (8/300), Dona Menga (8/314), Almada nim (594.2.1), Monte da Torre (7/103), todos eles identificados pela presenta de prensas (v. fig. 5).

Para lá destas informações, poderá ser pertinente o recurso a informações de períodos históricos mais recentes e o seu confronto com o registro arqueológico existente. Assim, resulta interessante verificar que a produtividade dos cercais no Algarve foi sempre extremadamente baixa, não faltando indicadores de privilégios para os importadores e menções a abastecimentos vindos do exterior, por não se conseguir obter localmente a quantidade necessária para prover as necessidades das populações (Marques, 1968: 145, Ribeiro, s/d: 84 e Balbi, 1822: 148).

Naturalmente, estes dados não autorizam a conclusão de que no período romano a produtividade das searas fosse insuficiente para as necessidades locais. No entanto, é de supor que as limitações pedológicas não permitissem um grande desafogo neste domínio.

A cultura da oliveira não se encontra amplamente disseminada, no Algarve (Ribeiro, 1979) e o azeite local é considerado de má qualidade desde há longa data, sendo a região tradicional importadora deste óleo vegetal (Balbi, 1822: 150 e Feio, 1983: 117).

Quando no século XIX se iniciou a nova era das conservas algarvias, uma vez mais, se recorrem a importação de azeite para a industria (Feio, 1986: 136). Embora não julgue lícito presumir pela importação de ânforas, que transportam determinado produto, a inexistência do mesmo no local de receção, já que outros fatores, como o consumo sumptuário ou a troca de ofertas, podem explicar estes intercâmbios, é interessante verificar que o registro arqueológico do Algarve apresenta diversos indícios de importação de azeite da Baetica e Norte de África no período romano em Torre de Aires (8/318), Quinta de Marim (8/311), Quinta do Lago (610.2.3), foz do Arade (Silva et alü, 1987), Cerro da Rocha Branca (7/112) (Gomes et alii, 1986) e Monte Moliáo (7/139). Pela abundancia e dispersão destas importações, bem como pelos dados conhecidos para outras épocas, sugere que, de facto, a região não seria particularmente rica neste produto.

Já o vinho parece ter tido uma diferente relevância. Ao contrario do que acontece com o azeite, o vinho algarvio é produto de há longa data celebrado e tradicionalmente exportado em outros períodos históricos (Balbi, 1822: 151, Ribeiro, s/d: 81 e ss. e Garcia, 1986: passim). O registro arqueológico das ânforas importadas, documenta a presença de contentores de vinho, provenientes da Península Itálica e da vizinha Beática, mas apenas para o período tardo-republicano e inícios do século I. Sublinhe-se, contudo, que não se conhecem vestígios de exportações do vinho algarvio para fora do seu território no período romano, já que todos os fornos de ânforas conhecidos parecem ter fabricado exclusivamente contentores para preparados piscícolas, com uma possível exceção, adiante referida (v. anexo 1).

Em contrapartida, a exploração de produtos hortícolas e frutos de pomar, as principais produções agrícolas locais, atestadas desde o período muçulmano (Coelho, 1972: 41, 55, 6l-2 e Ribeiro, s/d: passim e Garcia, 1986: passim) poderão mergulhar as suas raízes na organização de espago rural promovida pelos romanos.

De facto, se é difícil, á falta de dados arqueológicos determinar a extensão, ou mesmo a existência, de pomares, nesta época, mais interessante resulta verificar a existência de diversas barragens construídas no período romano em território algarvio (Quintela et alii, 1986 e Cardoso et alii, 1990). Aparecem regularmente distribuídas por todo o território (v. figura 5), desde o Alamo (8/255) até Espiche (Cardoso, et alii, 1990: 2.7.) e, se é certo que poderiam ter conhecido multiplas utilizações, desde o abastecimento de termas em âmbito rural, aos abastecimentos urbanos, forneciam, sem dúvida, importantes recursos para a agricultura de regadio.

No que diz respeito á exploração de frutos, não estamos melhor informados. Registe-se, porém, a presumida existência de uma produção algarvia de ânforas com fortes semelharas com a Classe 19 (= Beltran lib) cujo conteúdo se desconhece.

Como em outro local já se referiu (Fabião/Guerra, no prelo), é possível que estes contentores se destinassem ao transporte de conservas de frutos, designadamente azeitonas. No entanto, para não construir sobre base quase inexistentes, limito-me a sugerir a possibilidade de remontar ao período romano a exploração e exportação de conservas de frutos algarvios, hipótese a confirmar em futuras investigações.

Parece, portanto, aceitável supor que a paisagem rural algarvia no período  romano não teria sido multo diferente da existente em tempos medievais que note-se, subsistiu até aos nossos dias.

A economia algarvia do período romano, tinha na exploração dos recursos marinhos uma importante componente, aparentemente sem relação direta com o mundo rural. A implantação das estruturas destinadas a produção de preparados de peixe não sugere qualquer intenção de exploração complementar de recursos agrícolas, visto que não foram, na generalidade, e salvo os poucos casos citados, instalados em áreas com terrenos de aptidão agrícola acessíveis, nem tampouco há qualquer indicador preciso da associação entre aquela e estas atividades.

Pelas limitações do registro arqueológico disponível (v. anexo 2), não é possível estabelecer um quadro cronológico para o funcionamento dos centros de produção de preparados de peixe, multo menos, para os seus ritmos de laboração.

Como já se referiu, é possível que a exploração destes recursos remonte a tempos pré-romanos, como acontece na área de Gades, ou a uma época imediatamente posterior á conquista, como sucede em Baelo. No entanto, deve sublinhar- se que não existe qualquer indicador que autorize estas suposições. Em termos mais concretos, seria possível fazer remontar a um qualquer momento do século I d.C., já que alguns dos sítios arqueológicos listados forneceram materiais desta época (v. anexo 2), embora a sua produção não se destinasse a exportação, visto que apenas um dos fornos de ânforas conhecidos, o de Olhos de S. Bartolomeu (8/292), tenha fabricado contentores neste período. A maior parte deles estava seguramente em atividade no Baixo Imperio, prolongando-se a sua utilização pelo século V e, talvez, o VI.

Combinando os pontos dados seguros fornecidos por estes locais e outros dados arqueológicos do Algarve, com a informação obtida nos diferentes fornos que produziram ânforas (anexo 1), verifica-se que a sua quase totalidade se enquadra cronologicamente no Baixo Imperio. Somente o(s) forno(s) de Olhos de S.Bartolomeu (8/292), precisamente o(s) mais próximo(s) da Baetica, parecem) ter iniciado a sua laboração ainda no Alto Imperio o que, naturalmente, suscita a incómoda questão de saber se estaremos a tratar globalmente, como se de um processo unitário se tratasse, realidades, afinal, diferentes. Na impossibilidade de responder cabalmente a esta interrogação, resta-nos percorrer outros caminhos.

Uma vez mais, como as limitações já expostas quando se referiram as questões relativas as importações de ânforas olearias e vinícolas, é interessante verificar que o território algarvio recebeu nos séculos I e II d.C. contentores de preparados de peixe da Baetica —presentes em Balsa (materiais em curso de publicação), Quinta do Lago (materiais recolhidos por Ana Margarida Arruda), foz do Arade (Silva et alii, 1987), foz do rio de Lagos (Santos, 1971: 116-119 e fig. 39)— e da própria província da Lusitânia, provavelmente do vale do Sado – talvez um exemplar em Balsa, outro na Quinta do Lago (Arruda/Fabião, 1990: 202) e na foz do Arade {SILVA et alii, 1987: 210-21A^. Embora não saibamos ainda qual a extensão e significado do fenómeno, verifica-se também uma apreciável importação de contentores de preparados de peixe da Baetica no interior alentejano, notória em Vipasca (materiais depositados no MSGP), nos sítios romanos de Castro Verde (Madeira, 1986), na villa de S. Cucufate, Beja, e sua área envolvente, onde chegam também as produções do vale do Sado (Alarcado et alii, 1990: 252-254). Parece significativo, por outro lado, que a villa da Vidigueira tenham chegado, embora em pequena quantidade ânforas tardias do Algarve (Alarcáo et alii, 1990: 253).

Face a estes dados, afigura-se possível avançar uma primeira hipótese sobre a produção e exportação dos preparados de peixe no extremo meridional do atual território português. Numa primeira fase, eventualmente datável dos séculos I e II d.C., na época em que a exportação dos recursos marinhos da Baetica dominava os diferentes mercados do Imperio, o Algarve poderá ter começado a explorar os mesmos recursos, embora, aparentemente, não os exportasse, com a eventual exceção da zona do estuário do Guadiana. Esta exceção não deixa de ser interessante, já que poderá sugerir uma influencia mais marcada de modos de vida béticos, no extremo oriental do Algarve. Num momento datável do século III e, seguramente, continuado no IV e V, pelo menos, a região terá intensificado a produção e, talvez, só então iniciado a sua exportação em moldes significativos, provavelmente tirando partido do declínio dos centros da Baetica e Norte de África (Ponsich, 1988). Assim, e ao contrario do que supôs Vasco Mantas (1990: 199) o que afetou Baelo e outros sítios costeiros da atual Andaluzia —quer tenham sido as correrias mouriscas, um abalo sísmico em outro qualquer fenómeno—poderá ter dado origem a um período de particular prosperidade para o Algarve.

Uma vez mais, como todas as reservas que a precaridade da informação disponível impõe, parece interessante verificar que a época tardo-romana nos apresenta esta região com uma apreciável circulação e entesouramento monetário, que contrasta fortemente com o panorama oferecido por épocas anteriores conhecem-se 9 tesouros dos fins do séc. IV ou inícios do V e em Loulé foi recolhida uma das poucas moedas de um imperador do século V no atual território português (Pereira et alii, 191 i: Cartas 18 e 21). A continuidade do enquadramento nas redes de intercâmbios mediterrâneas está igualmente atestada pelas importações de cerâmicas finas, como a «sigillata» fócense {= late Roman O, documentada na Quinta de Marim (8/311), Loulé Velho (8/300) e Cerro da Vila (Maia, 1978: 300-302 e Est. III).

Infelizmente, no estado atual dos nossos conhecimentos, não se afigura possível determinar quando se terá operado a rutura da geografia social e económica lentamente forjada pelo presenta romana no território algarvio. Todavia, há suficientes indícios que apontam uma sobrevivência, pelo menos em alguns sectores, para lá da desagregação do Império.

Deixando de parte as cidades, já sucintamente tratadas (2.1.), é interessante verificar que todas as grandes villae escavadas neste século —Abicada (7/107), Cerro da Vila (8/298), Milreu (8/304)— documentam uma persistência da ocupação que ultrapassa «crises» e «invasões», até a época muçulmana. Outros pontos de povoamento do mundo rural apresentam situações análogas, com sítios romanos e muçulmanos sobrepondo-se ou ocupando espaços próximos, o que, neste último caso, demonstra, no mínimo, uma descontinuidade de ocupação, mas uma identidade de motivos para a instalação. Temos de reconhecer que a amostra disponível não é muito extensa. No entanto, parece notável a homogeneidade verificada em todas as situações conhecidas. A dificuldade em determinar a malha do povoamento para o período compreendido entre os sáculos V e VIII terá que ver, fundamentalmente, com o grande desconhecimento que ainda temos das realidades arqueológicas destas épocas.

Os grandes centros de produção de preparados de peixe oferecem um panorama radicalmente diferente, já que a norma é a do abandono definitivo. Este, torna-se particularmente notório nos núcleos do Sudoeste, não só porque também foi um deles, a Boca do Rio (7/132), objeto de escavações neste século, mas também porque constituíam o grande Pólo produtor/exportador do Baixo Império, fora de âmbito urbano. Foi certamente a rutura da ampla rede de intercâmbios mediterrâneos, onde estes produtos estariam envolvidos, ocorrida algures entre o século V e o VII, que precipitou a sua decadência irreversível.

Teriam um carácter marcadamente especializado, impossível de converter a outras atividades. Também esta diferença de destinos sublinha a clara demarcação entre núcleos rurais e centros de exploração de recursos marinhos.

Durante o período romano, o atual território do Algarve explorava intensivamente diferentes recursos que, por serem complementares, Ilhe garantiam uma prosperidade particular. Na costa, centros de exploração de recursos marinhos ombreavam com sumptuosas villae, instaladas em manchas de bons solos agrícolas.

Provavelmente os mesmos proprietários controlariam uns e outros; é admissível que a mão-de-obra mobilizada para umas e outras atividades fosse, em boa parte, constituída pelos mesmos homens. Contudo, esta complementaridade tinha um carácter mais regional e não exatamente nos mesmos sítios. O barrocal e a serra forneceriam outros tantos artigos complementares.

Este bem sucedido modelo de povoamento, articulava-se com as suas regiões próximas da Baetica e da Mauritania Tingitana, igualmente integradas na diócesis Hispaniarum. Este enquadramento foi quebrado somente no século XIII, quando o reino de Portugal estabeleceu fronteira no Guadiana, ao mesmo tempo em que as diferenças religiosas separaram definitivamente as duas margens deste «pré-Mediterrâneo».

GARUM NA LUSITANIA RURAL

Alguns Comentários sobre o povoamento romano do Algarve - Carlos Fabião