As Oficinas de Preparados de Peixe da Lusitânia: arquiteturas e dinâmicas econômicas da sua produção (séculos I – VI d.C.)

Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira

 Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Arqueologia, realizada sob a orientação científica do Prof. Dr. José Carlos Quaresma e co-orientação da Profª Drª Maria Helena T. Lopes 

Este estudo aborda a economia dos preparados de peixes lusitanos, enquadrando a produção provincial à realidade económica imperial romana entre os seculos I e VI d.C. A cronologia dessa atividade enfrenta momentos alternados de arrefecimento e retoma. Todavia, a salga e transformação do peixe foi uma das principais atividades económicas da Lusitânia, que a partir do século III avança para a categoria de um dos principais produtores do império. Apesar da alta demanda e da respetiva produtividade, muitos dos centros produtores começam a apresentar uma reconfiguração dos seus tanques e cetárias. Essa reconfiguração arquitetónica estará relacionada tanto com alterações do perfil da produção como com transformações no modo de vida, uma vez que observa-se também uma redefinição de espaços urbanos e rurais por toda a Hispânia ao longo do baixo-Império/ Antiguidade Tardia. 

This work approaches the economy of fish sauces in the Roman province of Lusitania during the 1st and 6th centuries CE. A chronology for this economic activity is characterized by a brief phase of cool down, followed by a retake into full activity. From the 3rd century onwards, Lusitania became the main producer of fish sauces. However, its workshops underwent a systematic process of partial or full abandonment, and the surviving cetariae suffered a radical reduction in dimensions and capacity. Such transformations are embedded by a context in which the main typology of the product in the market was changing and also a complex process of urban reconfiguration in all provinces in Hispania. Thus, a transformation in ways of life is also part of this whole picture of physical reconfiguration. 

INTRODUÇÃO: A PROVÍNCIA ROMANA DA LUSITANIA

A ocupação romana da Península Ibérica teve início em cerca de 197 a.C., como consequência de sua vitória sobre os cartagineses na Segunda Guerra Púnica (218 – 201 a.C.). Assim, estabeleceu-se uma administração do território então denominado Hispania por dois oficiais pretores: um encarregado da porção oriental do novo domínio provincial (Hispania Citerior) e o outro com jurisdição sobre a sua porção ocidental (Hispania Ulterior). Neste primeiro momento de ocupação romana, de assumido caracter militar, o principal objetivo da sua agenda era estabelecer o controlo sobre e explorar o novo território. 

Segundo os relatos de Estrabão e Apiano1 a expansão da autoridade romana sobre a parte atlântica da península coube ao novo governante da Hispania Ulterior, Decimus Iunius Brutus Callaicus, em 138 a.C. Segundo Estrabão, o recém-eleito cônsul fortificou Olisipo (Lisboa) e utilizou-a como base logística para lançar a sua campanha. 

1 Cf. Respectivamente em: Geografia, 3.3.1ff e Iberica 73-75.  

Durante o restante dos séculos II – I a.C., a administração romana para o ocidente peninsular centralizou a sua burocracia em torno de três cidades: Pax Iulia (Beja), uma colónia de cidadãos romanos; Liberalitas Iulia Ebora (Évora), uma cidade de direito latino; e Felicitas Iulia Olisipo (Lisboa), com status de municipium civium romanorum. Esse modelo administrativo só foi substituído após a ascensão de Otaviano (Gaius Iulius Caesar Octavianus), em 27 a.C., adotando para si o título de Augustus. Uma vez garantido a sua posição como governante perpétuo, Augusto recusou títulos monárquicos e reinou sob o título de Princeps Civitatis (O Primeiro dos Cidadãos). Com o seu reinado, teve início o “Principado”, inaugurando o período dito imperial da civilização romana. 

Augusto ordenou diversas reformas administrativas, o que eventualmente afetou a organização da burocracia na Hispania. Assim, em 15 a.C., a Hispania Ulterior foi formalmente dividida em duas partes: Baetica (parte oriental) e Lusitania (a ocidente). 

A capital lusitana foi estabelecida em Augusta Emerita (Mérida), uma colónia de cidadãos romanos, o território foi subdividido em três unidades administrativas denominadas “conventus iuridicii”. Assim desenvolvem-se três novas capitais regionais: Augusta Emerita, Pax Iulia e Scallabis Praesidium Iulius (Santarém), as três cidades com status de colónia de cidadãos romanos, que por sua vez impulsionarão o desenvolvimento de núcleos urbanos de menor escala que ajudarão a estruturar os seus territórios. De facto, Frías (2016) acrescenta que esse processo de urbanização instigou o desenvolvimento de centros populacionais indígenas situadas no vale do Tejo e ao sul deste, chegando algumas a serem elevadas à condição de municípios e colónias. 

A produção de preparados de peixe na Lusitânia conheceu duas fases de produção. A “primeira fase” (ca. 50 – 150 d.C.) é um período menos conhecido devido à escassez de estratigrafias para o período pré-flávio da província, graças ao palimpsesto estratigráfico produzido pelas ocupações da segunda fase dos centros. 

Todavia, sabe-se que uma retração económica ocorrera no Mediterrâneo Ocidental entre os séculos II-III, pondo fim à chamada “primeira fase” de produção, no período Alto Imperial. A essa possível crise de crescimento, seguiu-se um hiato em que diversas cetárias foram abandonadas e/ou reformuladas. 

Na Lusitânia o processo de crescimento urbano sofre uma estagnação categórica em ca. 125 d.C., seguindo-se o abandono de algumas estruturas urbanas, como o anfiteatro de Conimbriga e a amortização de caleiras em Baelo Claudia e Baetulo. 

Ao longo do século III, teve fim a fase de letargia da produção dos preparados de peixe. Entre 225 e 250 d.C., a produção experimenta um novo impulso, que durará até o princípio do século V d.C. Uma continuação tardia, pós-romana, poderia ainda ser classificada como uma possível “terceira fase”, ainda pouco conhecida, que iria ainda compreender os séculos V-VI. 

A “segunda fase” de produção dos preparados de peixe coincide, em parte, com um processo de redefinição urbana sob a Tetrarquia, que ultrapassava a província da Lusitânia, no século IV d.C. Esse processo incluiu reformulações do tecido urbano e afetou também as grandes villae da Hispania, concentradas sobretudo no sul da Lusitânia. 

Durante a segunda fase de produção verifica-se que a produção de ânforas piscícolas sofreu um aumento considerável, especialmente no Algarve. De facto, a produção lusitana dos preparados de peixe recebeu maior destaque nessa época, nos centros de consumo. No seu auge, a produção lusitana de preparados de peixe foi uma das mais importantes do império, superando a vizinha Bética, até então a principal produtora peninsular. 

Quatro regiões da Lusitânia desenvolveram centros produtores: os Vales do Tejo e do Sado (que compõem uma mesma realidade arqueométrica), o Litoral Alentejano e o Litoral Algarvio. Muitas vezes a nova realidade da segunda fase provocou o parcelamento das cetárias e compartimentação dos tanques. Uma nova gama de contentores piscícolas (Alm 50c e 51 a-b) possui bocal mais pequeno, o que condiz com os dados arqueozoológicos sugerindo a preferência para o emprego de espécies mais pequenas de peixes, como a sardinha. Entendemos que esse fenómeno sugere uma transformação estrutural no próprio modelo de exploração económica dessa atividade. 

Este projeto teve por objetivo uma análise evolutiva das oficinas lusitanas de preparados de peixe, tendo como base a segunda fase da sua produção. A partir dos dados disponíveis acerca dos edifícios e das suas cetárias, diversas abordagens e metodologias foram comentadas. Assim, foram consultados estudos diacrónicos das plantas das oficinas conhecidas, das tipologias das ânforas piscícolas envolvidas na sua logística e dos conteúdos coletados em cetárias e ânforas (arqueozoologia). 

Uma análise dos dados referentes à produção anfórica dos estuários do Tejo-Sado e do litoral algarvio foi explorada apenas para se estabelecer coerências e contradições à luz do desenvolvimento cronológico da economia dos preparados de peixe. Do mesmo modo, os dados arqueozoológicos e os tituli picti estudados, a evolução das dimensões e tipologias dos seus contentores e a evolução arquitetónica dos centros produtores de preparados de peixe contribuíram na qualidade de fontes primárias auxiliares. 

Esse estudo foi organizado em três secções temáticas. No primeiro capítulo foi promovido uma contextualização histórica e arqueológica da temática. Esse capítulo inclui uma caracterização das fontes primárias textuais disponíveis, e a apresentação do estado da arte sobre os estudos sobre a produção dos preparados de peixe na Península Ibérica e, mais especificamente, na Lusitânia. 

O segundo capítulo é introduzido por uma apresentação sobre o estabelecimento da produção dos preparados de peixe na Lusitânia. Seguiu-se descrição da geografia das quatro “grandes áreas” produtoras: Estuário do Tejo, Estuário do Sado, Costa Alentejana e Litoral Algarvio. Cada “grande-área” é caracterizada e segue-se a descrição de todas as respetivas oficinas, tanques e cetárias conhecidas, mapeadas e comentadas. 

Finalmente, o terceiro capítulo promove um breve ensaio sobre a economia antiga e os ritmos da produção dos preparados de peixe lusitanos. Os dados anfóricos sobre a exportação de ânforas de preparados de peixe béticos e lusitanos contribuem para um breve esboço sobre a conectividade regional com o comércio de longa-distância. Esse capítulo também aborda as transformações económicas, sociais e arquitetónicas ocorridas na província ao longo das fases de produção dos preparados de peixe. 

CAPÍTULO I: A PRODUÇÃO DOS PREPARADOS DE PEIXE NA LUSITÂNIA

A presença romana na Península Ibérica foi uma consequência direta da rivalidade e dos conflitos com Cartago. Sabe-se que o sul do território atualmente português esteve contido na esfera de influência política e económica púnica. Originalmente, os antigos autores descrevem aquele território como abundante em recursos minerais, especialmente o ouro de aluvião.2

2 Cf. Cátulo 29: 18-20 menciona o “aurifer Tagus”. Menções similares ocorrem nas obras de Ovídio, Estrabão, Plínio, Séneca, Marcial, Juvenal, Lucânio e Pompónio Mela  

A arqueologia comprovou também a existência de minas romanas de prata e cobre, especialmente no sul da Lusitânia (Martín, 1996: 299-304). 

Osland (2006, 11) propõe que os recursos minerais constituíram num forte motivador para a reorganização das províncias da Hispania por Augusto. A partir da sua reorganização administrativa, a maior parte das áreas mineiras ficaram sob a jurisdição das províncias imperiais da Lusitania e da Tarraconensis (Martín, 1996: 39). 

Ao longo do século I a.C., uma série de colónias foi estabelecida na Lusitânia. Esses empreendimentos tinham como principal objetivo o assentamento de veteranos militares e da fundação de centros populacionais, seguindo um programa de fixação de núcleos de influência política económica e social. A priori, todas as colónias foram estabelecidas em áreas de grande potencial agrícola, em detrimento das áreas de maior potencial mineiro (Osland, 2006: 11). 

Todavia, para além dos recursos minerais e agrícolas, a Lusitânia sediou uma notória indústria de produtos de preparados à base de peixe, vulgarmente denominados “garum (Fig. 1) 3.

3 Verificar também a Tabela 1.  

Sob uma ótica romana dos séculos II a.C. – I d.C., as principais características geográficas da província remetem aos seus rios navegáveis, à região costeira e às planícies férteis da porção meridional da província 4. As principais cidades lusitanas desenvolveram-se ao longo da costa atlântica e próximo dos seus rios mais importantes. Estes centros tornaram-se num polo ideal para o desenvolvimento da indústria de produção de azeite 5 e dos preparados à base de peixe. 

4 Plínio Historia Naturalis 4.115; Estrabão Geografia 3.2.3 – 3.2.4.  

5 De acordo com Brun (1997), pode-se verificar a dispersão de lagares de vinho e azeite na Lusitânia, mas certamente será o caso de uma dimensão local/ regional, não de exportação. Por outro lado, o vinho do Tejo e Sado são comprovadamente exportados (ânforas Lusitana 3 e 9).  

As condições naturais da Lusitânia favoreceram o florescimento de uma indústria especializada em preparados de peixe. Um extenso litoral atlântico, um clima hospitaleiro e a abundância de recursos marinhos e sal foram responsáveis pelo estabelecimento de diversos centros de produção ao longo do litoral (Edmonson, 1990; Étienne e Mayet, 2002; Fabião 2009b). 

De facto, a produção anfórica contendo preparados à base de peixe provenientes da província começa a ser diagnosticada crescentemente no império romano, a partir de finais do século III d.C. Esse crescimento pode indicar uma “atlantização política” no século III d.C. (Quaresma 2012: 496). Nesse contexto, a indústria lusitana de preparados de peixe recebe destaque em função das alterações no quadro da nova dieta alimentar imperial, que dará maior ênfase aos preparados de peixe do que ao azeite, alavancando a produção do produto 6 ao ponto de superar a produção da vizinha Bética. 

6 Essa nova dieta substitui aquela do Baixo-Império e é comentada por Decimus Magnus Ausonius (apud Étienne; Mayet, 1993-1994: 216 e nota 34).  

A assimilação desse hábito alimentar pelos romanos demonstra alguma influência do mundo púnico e grego, bem como o desenvolvimento de uma crescente demanda da elite urbana romana por produtos exóticos e refinados. Quanto ao restante do império, a assimilação desse produto certamente esteve integrada ao próprio processo de aculturação e aproximação às elites colonizadoras (Bugalhão, 2001: 45). Nesse contexto, sabe-se que a dieta alimentar romana acabou por adotar em larga escala os produtos preparados à base de peixe. 

As constantes referências de Apício 7 ao ingrediente nas receitas da culinária romana aponta para a existência diferenciada de produtos de alta qualidade, consumidos pelas elites, e uma variante de baixa qualidade, acessível ao público sem condições de sustentar uma alimentação luxuosa (Edmonson, 1987: 102). Nesse caso, os preparados supririam a necessidade de sal e proteína animal na alimentação das classes mais baixas, quase sempre limitados a uma dieta vegetariana. 

7 Marcus Gaius Apicius, autor da principal fonte textual sobre a gastronomia romana: De Re Coquinaria, no século I d.C.  

Sabe-se que no território sob a influência de Cádis 8 já havia uma produção de preparados de peixe em funcionamento anterior à conquista romana. Entende-se que o consumo desse produto fosse originalmente restrito a uma elite urbana (Blazquez Martinez, 1995: 233). Especula-se que essa produção pré-romana, apesar de, talvez, se ter mantido sempre como uma pequena produção artesanal e de caracter familiar (Gutierrez Lopez, 2004: 254-255), teria encontrado o seu ápice na época púnica (séculos IV – III a.C.). Nesse período produziam-se preparados de peixe na zona da Baía de Cádis (Vargas, 2005: 105) e na Sicília, onde se localizaram ânforas púnicas nas unidades de produção (Lagóstena Barrios, 2001: 204). 

8 A produção de um molho de peixe salgado está referida na obra do comediógrafo grego do século V a.C., Eupolis de Atenas (frag. II, 43).  

No momento, evidências sugerem que ao menos em parte do território que veio a formar a Lusitânia se produzisse e/ou consumisse produtos de preparados de peixe em algum tempo anterior à conquista romana. A produção é sugerida pela existência de alguns centros de produção que funcionavam em porções do litoral meridional do território, durante o período púnico, certamente sob influência gaditana (Edmonson, 1987; Étienne e Mayet, 2002; Faria, 2002: 48-49, 67). 

Quanto aos indícios de consumo, há uma limitada evidência arqueológica. Segundo o registro material encontrado em Lisboa em contexto pré-romano, aquele assentamento importou ânforas piscícolas (T – 11.2.1.2) entre os séculos V e III a.C. (Pimenta, 2006: 224). Embora o estudo seja inconclusivo sobre a importância dos preparados de peixe para a economia daquela comunidade, o autor reconhece que a quantidade de ânforas piscícolas aumenta à proporção que os contingentes militares romanos se instalam na região. Essa produção era toda oriunda da região gaditana, indício das precoces relações comerciais entre aquelas regiões. 

Não há evidências disponíveis para um estudo do tema ambientado na produção desses produtos durante o período republicano. Iola (2011: 17) sugere que a ausência de uma “indústria” de preparados de peixe na época republicana poderia se dever à instabilidade política e económica da Lusitânia na época, uma vez que a Hispania foi completamente submetida apenas no final do século I a.C. Entretanto, Bombico (2017: 72) esclarece que a chamada “política atlântica romana”, iniciada em meados do século I d.C., foi responsável pela potencialização da exploração dos recursos marinhos e minerais, afetando, consequentemente, a administração dos recursos da província. 

A despeito das razões oficiais, verifica-se que a maioria dos centros de produção dos preparados de peixe no ocidente data do período imperial (Bugalhão, 2001: 38), embora se reconheça a pré-existência de centros similares no mundo púnico. Portanto, mesmo que essa produção tenha sido meramente “retomada” durante o principado, os preparados de peixe já estavam a ser explorados em larga-escala no século I d.C. 

I. 1. Das oficinas de preparados de peixe

Na Lusitânia, a data estimada para o princípio da produção é o segundo quartel do século I d.C., localizando-se nos estuários do Tejo e do Sado. Quanto ao Tejo, a olaria encontrada no Largo da Misericórdia funcionou no segundo quartel do século I d.C., e produziu o tipo de ânforas empregadas para os produtos à base de preparados de peixe (Tavares da Silva, 1996: 48). Olisipo, apesar de oscilações em sua população, foi um centro ativo por séculos antes da conquista romana. 

Fabião (2009b) supõe que o Tejo possua duas fases de exploração dos produtos à base dos preparados de peixe, à semelhança do que ocorrera ao Sado. Uma pequena fase inicial teria contado com pequenas unidades produtoras na área urbana de Olisipo, embora não haja comprovação arqueológica satisfatória no momento (Fabião, 2009b: 570). O estabelecimento encontrado sob a Casa do Governador da Torre de Belém (Figs. 5 – 6), na periferia de Olisipo, coloca essa proposta em cheque (Iola, 2011). 

O Sado teria desenvolvido uma indústria em dois momentos distintos, com dimensões e estratégias específicas. Num primeiro momento, existiram pequenas unidades produtoras, como as do sítio do Praça do Bocage (Fig. 8), Travessa de Frei Gaspar (Fig. 8a) e Creiro (Fig. 10 – 10a). 

Inicialmente, essas unidades recorriam a olarias locais para o envase e transporte de sua produção (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 1987: 236-237). Um segundo momento testemunhou o surgimento de grandes núcleos produtores, enquanto a produção oleira viu-se empurrada para o interior do estuário (Fig. 7), em sítios como a Herdade do Pinheiro, Abul e Quinta da Alegria (Fabião, 2009: 570). 

Fabião (2009b: 569) entende que o litoral do Algarve desenvolveu o seu conjunto de centros produtores em um período posterior (Fig. 16) 9.

9 Verificar também a Tabela 2.  

Para o autor, o envasamento dessa produção algarvia possivelmente era feito por ânforas oriundas da Bética, que então já possuiria uma estrutura bem consolidada na produção dos preparados de peixe. 

Cronologicamente identificam-se duas fases para a produção dos preparados à base de peixe. Um primeiro momento teria sido consolidado entre os séculos I- II d.C., e chegado ao final na transição entre os séculos II – III d.C. Uma historiografia dita tradicional identifica a chamada crise político-militar do século III como causa para a quebra da indústria, uma vez que as rotas marítimas estavam afetadas, dificultando o escoamento da produção (Bugalhão, 2001: 39). Alinhado à historiografia tradicional, Fabião (2009b: 571) sugere que a queda demográfica provocada pela praga que varreu o império durante o principado de Marco Aurélio poderia estar ligada à redução do volume da produção dos preparados. 

Por outro lado, Quaresma (2012: 257ff) argumenta que a cunhagem de Cláudio ainda é utilizada nas transações comerciais das décadas seguintes. Uma vez que só se identifica um novo crescimento da cunhagem a partir dos tempos de Adriano, há indícios prováveis de uma leve deflação nesse período. O autor favorece uma visão de que a recuperação do processo inflacionário do século I é interrompido até princípio do século II. 

Quanto à curva dos naufrágios no século II, a ausência da estudos sobre naufrágios na costa africana exclui informação estratégica sobre uma área importante do império. Uma vez que ocorre na época um intenso fluxo de mercadorias proveniente da costa africana (predominando a cerâmica de mesa, azeite e preparados de peixe), a ausência de dados sobre os naufrágios da área torna patente a carência de dados arqueológicos suficientes para que se possa realizar uma análise precisa do período (Wilson 2009: 220ff). 

De facto, o ocidente imperial apresenta, no século II, uma série precoce de sintomas que serão característicos da Antiguidade Tardia. À crise da produção dos preparados de peixe lusitanos, soma-se a estagnação do crescimento urbano, uma crise financeira que afeta todo o império, uma praga e a ocorrência de ataques dos Mauri à Hispânia. Quaresma (2012) demonstra que a crise estatal de meados do século II antecede a praga e que a crise do consumo de terra sigillata pode ser verificada ainda no princípio do século. Portanto, a derrapagem económica ocorrida no século II afeta igualmente os empreendedores privados e públicos. 

No século III ocorre a retomada da produção dos preparados de peixe, agora envasada em novas tipologias anfóricas (saem as do tipo Dressel 14 e surgem as do tipo Almagro 50 e 51c) 10.

10 Há aqui uma controvérsia. O processo de substituição das ânforas terá começado a ocorrer a partir do século II d.C., de modo que essa prática pode não estar sequer vinculada à crise do século III d.C. (Ver: Fabião, Guerra, 1993: 1004).  

O segundo ciclo dessa produção estendeu-se possivelmente até a primeira metade do século V d.C. Entretanto, no Algarve, ao menos o centro produtor da Travessa Silva Lopes, em Lagos, prosseguiu em atividade até princípios do século VI d.C. (Ramos, Almeida e Laço, 2006). 

As chamadas “invasões bárbaras” do século V d.C., a rutura de rotas comerciais e o declínio do comércio e as evidências apresentadas pelos dados arqueológicos de abandono estabelecem o colapso da produção lusitana para esse período. 

I. 2. O contributo das fontes textuais

As fontes textuais deixadas pelos autores da antiguidade foram, por muito tempo, o principal recurso para a compreensão da produção romana dos preparados de peixe. De facto, essas fontes disponibilizam uma descrição ampla e detalhada dos múltiplos aspetos da atividade pesqueira romana republicana e imperial, inclusive o processamento e comércio dos preparados de peixe. 

A terminologia latina identifica variedades tipológicas da produção dos preparados à base de peixe, bem como da matéria-prima utilizada na sua confeção. Fontes epigráficas, como os tituli picti, ainda revelam detalhes sobre o local da sua proveniência ou da destinação do produto. A identificação e classificação das tipologias produzidas e as explicações literárias romanas para a terminologia romana formam o primeiro passo para o estudo do tema. Portanto, os estudos das fontes literárias são particularmente interessantes para aqueles que investigam a geografia da produção dos preparados de peixe. 

Os autores antigos deixaram-nos comentários acerca da estrutura, funcionamento e desenvolvimento dessa produção. No caso da Península Ibérica, a obra de Estrabão, “Geografia” (livro III) oferece informações normalmente confirmadas pela arqueologia do início do período romano imperial (Garcia Vargas e Bernal Casasola: 2009, 135). De igual importância se acrescenta a obra de Plínio, “Historia Naturalis”, devido ao seu caráter enciclopédico. 

Os antigos autores diferenciavam os preparados sólidos, ou conservas (salsamenta, tarichos) dos molhos (líquidos) à base de peixe (Curtis, 1991: 6ff). Apenas uma única referência textual antiga sobre a confeção dos preparados sólidos sobreviveu ao tempo, deixada por Columella (De Re Rustica 12, 55,4), no século I d.C. Contrariamente, abundam os relatos descritivos da produção dos molhos líquidos, desde Marcus Manilus, “Astronomica (V, 656-681), também no século I d.C., até a obra “Geoponica” (20, 46, 1-6), bizantina e anónima, do século IX d.C. 

Dentro desta segunda categoria, dos molhos, a terminologia era utilizada de acordo com a qualidade do produto. A documentação romana lista quatro molhos de peixe “distintos”: garum, liquamen, muria e hallex (Dumitrache, 2009: 553). Contudo, essa “distinção” deve ser considerada com cautela, uma vez que, nem sempre essa terminologia é empregue de maneira clara. Por vezes ocorrem generalizações e simplificações quanto à verdadeira natureza do produto referido. 

Há um grupo especial de produtos que se conhece apenas pelas suas referências nas fontes literárias (hydrogarum, oenogarum e oxygarum). Esses produtos nunca foram atestados nos tituli picti ou documentação similar (Garcia Vargas e Bernal Casasola, 2009: 136; Bombico, 2017: 127). 

Por outro lado, quando a designação dos produtos mencionados pelos tituli picti coincidem com aquela mencionada pelas fontes literárias, não há a certeza absoluta de que se trate de uma correspondência perfeita entre os produtos referidos pelas ânforas e pelos autores antigos. Há que se considerar uma possível evolução semântica, pelo que a terminologia técnica para designar os diferentes preparados de peixe poderiam ser usados de maneira mais genérica, seja por vícios linguísticos ou regionais (Garcia Vargas e Bernal Casasola, 2009: 136). 

Não se sabe ao certo a origem etimológica do termo “garum”, a não ser que seria a latinização do termo grego homófono. Plínio cunha o termo na sua Naturalis Historia (31. 93-94) ao mencionar que um produto à base de cavala 11 consistia num garum de alta qualidade, sugerindo o aproveitamento do seu sangue (hematites). O aproveitamento do sangue é ainda comentado por Séneca (“Epistulae Morales ad Lucium” 95.25) 12. 

11 Em Origines (20, 3 ,19), Isidoro de Sevilha, emprega o termo “garum” para identificar um tipo específico de peixe: “(…) quae Graeci garon vocabant”. Essas são precisamente as mesmas palavras lidas na Naturalis Historia de Plínio ao definir o garum como um molho: “liquor piscium salsus (…) quae Graeci garon vacabant” (XXXI. 93).  

12 “Illud sociorum garum, pretiosam malorum piscium saniem (…).”  

A receita de garum mencionada nos Geoponica (20.46.6) considera o haimation como o tipo de garum mais valioso. A seguir, descrito no século III d.C. na obra de Sextus Iulius Africanus (Kestoi 1.19.105) viria uma receita intermediária em qualidade denominada garós sókkios. Esta receita aproveitava as entranhas dos peixes, que consequentemente incluiria o sangue. 

O termo “garum” foi ainda utilizado genericamente para definir o molho (preparado líquido à base de peixe processado) com o emprego de condimentos. O liquamen aparece como um produto distinto do garum, ainda que de natureza similar (Étienne, Mayet, 2002: 50 – 51). Todavia, se garum e liquamen, não forem exatamente o mesmo produto, eles terão tido receitas extremamente similares, preparadas à base de vísceras, ovas e sangue de peixe (ou mesmo de pequenos peixes), macerados com sal e aromatizantes (Bombico, 2017: 127). 

De facto, a partir do século I d.C., o termo liquamen passa a ter um emprego generalizado 13. Por volta do século IV d.C., já não se encontram mais referências ao termo garum, a não ser em ocasiões excecionais 14. 

13 Fabião e Guerra (1993: 999 – 1003) observam que na obra do século I d.C., De Re Coquinaria, de Apício, o termo “liquamen” substituti o termo “garum” na base de 425 referências contra 2.  

14 Martial escreveu, na segunda metade do século III d.C., que liquamen era garum misturado com vinho: “confecto liquaminis quod onegarum vocant” (Curae boun, 62). No século V d.C., Aureliano reproduz a equivalência garum-liquamen: “garum quod appellamus liquamen” (Tardarum passionun, 2.1.40).  

Columela descreve a muria como o produto de uma salmoura obtida a partir da mistura feita num quadratus (ca. 28 l) de água doce com um modius (ca. 8,75 l) de sal (De re rustica, 12, 6). O termo também era utilizado genericamente para molhos de peixe (Étienne, Mayet, 2002: 47)15. O allec (hallex, allec ou allex) certamente tratar-se-ia de algum produto secundário, derivado dos residuais da produção do garum/liquamen (Dumitrache, 2009: 554). Subprodutos mencionados por Apício mencionam os compostos hydrogarum, oenogarum e oxygarum como resultantes da adesão, respetivamente, de água, vinho e vinagre ao liquamen (Bombico, 2017: 127). 

Existe também a informação textual reunida pela própria arqueologia, a partir dos tituli picti 16 referenciando as ânforas de salsamenta. Esses rótulos comerciais possuem uma importância estratégica para o estudo da produção dos preparados de peixe. As etiquetas sugerem uma vasta tipologia de produtos e/ou receitas não mencionadas pela literatura greco-latina disponível. Contudo, deve-se adotar essa fonte com precaução, uma vez que a sua leitura é, por vezes problemática (Garcia Vargas, Bernal Casasola, 2009: 136). 

16 Rótulos comerciais pintados sobre as ânforas de transporte. Esses rótulos normalmente abreviam uma informação geral sobre o volume, a proveniência e qualidade do produto, bem como a identificação do produtor.  

Um caso emblemático do processo de análise e debate de um tituluis pictus ocorre com a identificação de um suposto subproduto denominado laccatum. Tratar-se-ia de um molho de peixe combinado com um tempero-colorante (lac/ lacca/ laccat que indicaria a sua proveniência em Lacca, na Bética (Sarhage, 2002: 72). 

Contudo, Djaoui (2016) demonstrou que tal produto, de facto, não existiu, tendo se tratado de um equívoco de leitura. Na segunda linha do depinto do pescoço de uma ânfora Dressel 14, onde constava LAC[–], a leitura que propôs “LAC(catum)” foi corrigida pelo autor para LAC(certus) CAT(tulus). As Dressel 14 são normalmente destinadas ao transporte de liquamen, e a presença de LAC[–] constar na segunda linha do depinto tornavam inviável que se desenvolvesse o texto como “laccatum”. Djaoui então propõe lacertus como a proposta ideal de identificação do tipo de peixe processado. 

Os tituli picti também identificam a proveniência do produto de maneira mais direta. Por exemplo, anotações como Garum Ostiense, revelavam uma proveniência de Óstia; garum Lunense, itálica; liquamen Antipolitanum, de Antípolis; muria Malacitana, de Malacca; hallex Herculanensis, de Herculano (Dumitrache, 2014: 555). 

Sabe-se que os molhos mais referidos pelos tituli picti eram fabricados a partir da cavala (scombri), atum (thunnus, cordula), ou ainda uma mistura, denominada garum geminus 17 (Dumitrache, 2009: 555). Essas matérias-primas são regularmente referidas nos rótulos pintados nas ânforas. Assim, o chamado garum scombri (CIL IV, 2574-2580; 2583; 2586; 9415) seria fabricado a partir de cavalinha, tal como o liquamen scombri (CIL IV, 2588) e o hallex scombri (CIL XV, 4730-4731). 

17 CIL, IV 5826-5827; 9392-9393; 10272-10273.  

A terminologia das etiquetas também podia incluir epítetos que informavam sobre a qualidade do produto. Os molhos considerados “puros” eram diferenciados daqueles que recebiam condimentos extras na sua receita. Os epítetos incluem flos e flos flos, optimum, praecellens, primum, secundum, excellens, flos excellens, entre outros. Não se compreende ainda claramente qual era o critério de hierarquização desses epítetos, ou sequer possíveis equivalências qualitativas entre eles (Dumitrache, 2009: 556). 

Há ainda um caso emblemático de registo de proveniência que acumula uma garantia de qualidade. Trata-se do chamado garum sociorum, marca de uma societas estabelecida em Carthago Nova. Os autores clássicos são unânimes ao atribuírem um status superior ao “garum sociorum”, de origem hispaniense, em razão da sua qualidade. 

Étienne (1970) defende que haveria ali uma referência a alguma companhia concessionária regional, administrando salinas e cetárias e processando produtos de salga e conserva piscícolas. Em oposição a essa visão, Garcia Vargas e Bernal Casasola (2009) defendem que, na realidade, haveria sim uma variação hispaniense da receita. 

A existência de uma “receita hispaniense” pode induzir à ideia de que haveria na Bética uma produção centralizada e homogénea. Todavia, os tituli picti apontam para uma possível “fragmentação” da produção bética, uma vez que os negotiatores salsarii béticos compram e envasam os seus produtos a partir de origens diversas. Sabe-se que M. Valerius Abinnericus transportou para Pompeia a produção de Clarus de Ossonoba e de vários outros produtores (Étienne, Mayet, 1998: 214; Étienne, Mayet, 2002: 229). 

A epigrafia lusitana, que poderia auxiliar a elucidar a questão, não está disponível em volume suficiente para orientar especulações a esse respeito. Sabe-se que, a título de comparação, na Bética existiam sociedades dedicadas à exploração dos preparados de peixe. Essas sociedades articulavam mercatores e negotiatores salsarii baetici com a Italia e com o limes germanicus e o norte da Gallia (Bombico, 2017: 113). 

I. 3. Conserva e transformação de peixe

A produção de conservas e molhos de preparados de peixe conjugava diferentes atividades e etapas, incluindo a pesca, a exploração do sal e a transformação do pescado. Contudo, não se sabe se essa exploração era feita via iniciativa independente ou articulada em alguma rede. Não se sabe se os centros produtores de preparados de peixe dispunham da frota de barcos de pesca, se produzia as suas próprias ânforas ou se explorava as suas próprias salinas (Bombico, 2017: 113). 

A possível interdependência entre centros produtores de preparados de peixe e olarias produtoras de ânforas é ainda um tema em debate. Os centros oleiros produziam ânforas, mas também fabricavam cerâmica comum e/ou de construção (Fabião, 2009b: 582). Uma mesma unidade produtora de preparados ainda poderia ser abastecida por diferentes olarias (Dias et al., 2012). 

Não se sabe ainda como se dava a exploração do sal na Lusitânia. Trata-se da atividade económica mais difícil de detetar a partir de indícios arqueológicos. Atualmente, não há sequer um único indício de salina detetado no contexto romano em território atualmente português (Bombico, 2017: 105) 18. O problema é agravado pelo facto de que as técnicas de exploração das salinas mantiveram-se durante séculos, fazendo com que a sua localização permanecesse a mesma, dificultando, portanto, a identificação de contextos (Fabião, 2009b: 578). 

18 Embora conheça-se em Vigo, para os séculos VI – VII.  

Garcia Vargas e Bernal Casasola (2009: 166-168) discutem as dificuldades em se escavar registos de salinas romanas escavadas na argila, alertando que salinas de evaporação construídas nos estuários de rios são praticamente impossíveis de serem diagnosticadas. Todavia, os autores estimam que vastas áreas na boca do Sado deveriam possuí-las. De facto, estudos geo-arqueológicos (Menateau et al. 2003) indicam que a costa ocidental da península possuiu grandes salinas, especificamente na boca dos principais rios: Tejo, Sado; no litoral do Algarve e na baía de Cádis e Algeciras. 

Não se sabe com exatidão a forma como o sal era obtido nos casos em que as cetárias não estavam servidas de um abastecimento direto de salinas. Talvez algum método alternativo pudesse suprir o sal a partir das areias da praia (Hesnard, 1998), embora dificilmente se possa obter sal em larga escala com esse procedimento. Certamente alguma linha comercial distribuiria o sal, mas tampouco se sabe como ocorria essa logística. O transporte de salmoura em recipientes (cerâmicos ou não) pode ser uma opção pouco provável, segundo Villaverde Bem (2001). Garcia Vargas e Bernal Cassola (2009) mencionam a existência dos exactores campi salinarum romanorum, em 135 d.C., em Óstia. Assim, oficiais da carreira equestre eram designados para a vigilância e fiscalidade da atividade de extração do sal. 

As oficinas dispunham de poços, cisternas e depósitos para o armazenamento da água. A água era fundamental para a higienização das oficinas e para o preparo das salmouras. A existência de fornos e fornalhas nas oficinas apontam para o preparo dos molhos em recipientes cerâmicos durante um processo de aquecimento (Ponsich, 1988: 80). 

A tradição textual antiga alerta-nos quanto à excelente reputação dos preparados de peixe provenientes do oeste. O atum e a cavala do Atlântico são sempre considerados produtos superiores para a confeção das conservas (Celso “Medicina” 2, 18, 7). Isto reforça a perceção de que, ao menos na produção dos preparados, o senso comum romano prezava mais o pescado azul do que o branco, talvez também por uma valorização cultural ao elemento mais exótico como sinónimo de refinamento gastronómico. 

Por outro lado, peixes de carne branca também eram largamente aproveitados para a produção de preparados. A arqueologia comprovou a ocorrência de vestígios de corvina e pargo do Atlântico (Garcia Vargas, Albelda, 2006). Essa omissão de peixes de carne branca pelos autores antigos sugere a existência de produções baseadas em peixes mais acessíveis e menos valorizados, em detrimento dos produtos considerados de alta qualidade. 

Infelizmente, não há, nas fontes clássicas disponíveis, referências diretas ao processo de produção dos preparados de peixe lusitanos. Estrabão menciona as riquezas do Tejo em peixes e ostras. Pode-se concluir que os preparados de peixe lusitanos incluíam tanto o peixe salgado como os molhos, graças a uma menção do Édito Máximo de Diocleciano, em 301 d.C., que os diferenciava enquanto categorias 19 (Fabião, Guerra, 1993: 1000). 

19 Enquanto o peixe salgado recaía na categoria de peixes, o liquamen (primum e secundum) recaía na dos óleos. (Edictus praetiis, 3.6. e 3.7). Ver também a tabela 5 desta obra.  

Estudos recentes sobre a terminologia dos produtos preparados à base de peixe nas fontes literárias são inconclusivos, embora promovam reflexões filológicas interessantes (Grainger, 2014). Apesar de sua inegável utilidade, a utilização de fontes literárias e documentais antigas para o estudo da produção dos preparados de peixe consiste num recurso incompleto. 

A arqueologia, amparada pela cooperação com a química e a arqueozoologia 20 dedicou-se ao estudo laboratorial da fauna marinha empregada nessa produção, e cujos vestígios ainda se podem encontrar nos contextos arqueológicos (terrestres ou  submarinos) da produção (oficinas) e comércio (material anfórico e similares) dos preparados de peixe. 

20 Mais precisamente, uma “arqueoictiologia”.  

Esse tipo de estudo permitiu estabelecer, por exemplo, que na vizinha Bética, as cetárias, quando recebiam peixes de dimensões maiores e intermédias, recebiam-nos sem as cabeças e vísceras. Isso evitava a autólise da carne pelos sucos gástricos e a deterioração do sabor da carne pelo contato com o sangue (Bruschi, Wilkens, 1996; Desse-Berset, Desse, 2000: 75-79). 

Em outros casos, quando se mantinha a cabeça ao peixe, o procedimento de evisceração teria sido diferente (Desse-Berset, Desse, 2000: 80-82). A quantidade de sangue acumulada pela cabeça poderia ser insignificante para merecer tratamento, ou talvez este fosse mesmo coletado para a confeção de produtos derivados da conserva, como o garum haimation. 

I. 4. O estado da arte da produção Ibérica

O primeiro estudo acerca da existência de uma indústria de conservas e preparados de peixe no mundo romano datam de princípios do século XIX (Köhler, 1832). Todavia, o interesse académico pelo tema veio a desenvolver-se apenas mais tarde, quando se publicaram os tituli picti de ânforas piscícolas de Pompeia (Zangemeister, Schöne, 1871; Mau 1909) e Roma (Dressel, 1879). 

A partir do século XX, retomam-se os estudos, agora concentrados no debate sobre aquelas mesmas ânforas (Remark, 1912; Bohn, 1925). Nesse contexto, surgem estudos dedicados a fontes literárias sobre os preparados de peixe romanos, traçando paralelos antropológicos com uma produção análoga, da tradição culinária do extremo-oriente (Grimal, Monod, 1952; Jardin, 1961; André, 1981). 

O primeiro estudo dedicado especificamente às indústrias do género no litoral do Mediterrâneo ocidental é relativamente recente (Corcoran, 1957). Por sua vez, a obra de Corcoran, de natureza genérica, recebeu um reforço consistente produzido por uma investigação posterior, focada no litoral mediterrâneo espanhol e marroquino (Ponsich, Tarradell, 1965). 

Este estudo estabeleceu a expressão “Círculo del Estrecho” (posteriormente revisto como um “circuito del estrecho”) para designar o espaço geopolítico contido pelo extremo sul da Península Ibérica e o litoral atlântico marroquino e que teriam estado sob influência direta de Cádis durante o período fenício-púnico. Naquele espaço havia um circuito comercial que articulava oficinas de preparados de peixe, salinas e atividades agrícolas. Esse circuito económico permanecera em atividade ao longo do período romano, cabendo a Cádis uma posição privilegiada na influência que a Bética exerceria naquela região ao longo do período imperial. 

Tratava-se então do primeiro estudo sistemático de evidência arqueológica sobre as oficinas locais de salga e conserva de peixe. Esse estudo regional da temática veio ainda receber um importante estudo de síntese (Curtis, 1979), que incluiu um diálogo entre os tituli picti e as suas respetivas ânforas. Posteriormente, este mesmo estudo foi expandido para uma análise de todo o litoral mediterrâneo (Curtis, 1991). 

Não obstante, Cravioto (2015: 178ff.) explica que o conceito original de “Circulo del Estrecho” permaneceu algo obscuro e sempre foi empregado de forma marginal ao longo dos anos 70 – 80, o que permitiu que surgissem definições alternativas para o termo, até a definitiva consolidação de uma proposta final de “circuito”. Tal ambiguidade foi abordada ao longo do século XXI em congressos internacionais, sobretudo o I Seminário Hispano-Marroquí de Especialización en Arqueología, realizado em Cádis, 2006; e o VI Encuentro de Arqueología del Suroeste Peninsular, em Mérida, 2014. 

Ainda no final dos anos 1980, as atenções sobre a produção dos preparados de peixe nos limites ocidentais do Mediterrâneo receberam um consistente estudo de caso sobre a Hispânia (Ponsich, 1988). 

Garcia Vargas e Bernal Casasola (2009: 133-134) explicam que a partir dos anos 1990 ocorreu um intenso desenvolvimento urbanístico no litoral ibérico, ao mesmo tempo que órgãos de administração e conservação do património cultural e arqueológico fortaleceram-se na Espanha, Portugal e Marrocos. 

Nesse espírito, com o aumento das intervenções arqueológicas, aumentou-se o volume de dados empíricos novos acerca das indústrias de salga e conserva de peixe no ocidente. (Lagóstena Barrios, 1996, 2001; Bernal Casasola, 1998ª, 1998b; Bernal Casasola, Lorenzo, 2002). Assim, o novo século tem início com obras dedicadas a recuperar um estado da arte atual para a problemática (Lagóstena Barrios, 2001; Étienne, Mayet, 2002). 

De facto, o século XXI testemunhou o crescimento dos congressos internacionais dedicados ao estado da arte dos conhecimentos da indústria dos preparados de peixe, seja no caso hispânico (Bernal Casasola, Lagóstena Barrios, 2004), seja num quadro mais geral sobre o Mediterrâneo (Lagóstena Barrios, Bernal Casasola, Arévalo, 2007). 

Os diversos encontros científicos ocorridos na Península Ibérica ao longo da primeira década do século XXI demonstram que a temática ainda possui grande apelo no meio académico: San Fernando, em 2000 (AA.VV., 2004); Puerto de Santa María, em 2006 (AA.VV., 2006ª) e Setúbal, em 2006 (AA.VV., 2006b); no âmbito internacional, ocorreram ainda o Congresso de Boulogne-sur-Mer sobre a exploração de recursos marinhos em 2005 (Napoli, 2008) e o Seminário Oglio e pesce in epoca romana. Produzione e commercio nelle regionni dell’Alto Adriatico (Padua, 2009). 

Uma exposição organizada em Algeciras em 2004 (Arévalo, Bernal Casasola, Terremocha, 2004) apresentou os resultados das últimas intervenções em Baelo Claudia (Arévalo, Bernal Casasola, 2007). Essa exposição motivou uma síntese geral dos conhecimentos sobre a produção dos preparados de peixe na Península Ibérica (Bernal Casasola, Sayez, 2008). 

I. 4. 1. Acerca da produção Lusitana

Em Portugal, as duas décadas do século XXI foram marcadas por uma intensificação das sondagens arqueológicas e, consequentemente, da disponibilidade de mais informações sobre a problemática. Essencialmente, os estudos dedicaram-se à questão da produção de preparados de peixe em contexto pré-romano, a sua evolução ao longo do período imperial e, finalmente, o declínio dessa produção, já durante a antiguidade Tardia. 

Foi estabelecido um consenso de que o sudoeste ibérico terá recebido uma profunda influência fenício-púnica entre os séculos VIII – IV a.C. Lagóstena Barrios (2001) comprovou a existência de centros produtores de preparados de peixe no Algarve do período púnico. Tavares da Silva (2005) estudou a presença fenícia nos estuários do Sado e do Tejo. 

É interessante ressaltar que Diogo (1987) já identificara uma forte influência púnica na tipologia de ânforas “Lusitana 1” encontradas no Sado. Tavares da Silva (2011) complementa os indícios dessa influência ao localizar no Sado exemplares de moedas copiadas de um modelo gaditano. Assim, apesar do consenso de que havia uma produção de preparados de peixe no período púnico, ainda não há dados capazes de estabelecer uma data para essa produção, nem se esta experimentou fases de desenvolvimento e/ou declínio. 

Uma referência essencial para o estudo da arqueologia da produção dos preparados de peixes em Portugal é a obra de Edmonson (1987), articulando pela primeira vez a produção dos preparados de peixe à dos seus contentores anfóricos. Ainda de autoria estrangeira, em cooperação com arqueólogos portugueses, seguem Mayet, Shmidt e Tavares da Silva (1996), a explorarem a indústria oleira e de preparados de peixe no estuário do Sado. Étienne e Mayet (1998) publicaram uma “cartografia crítica” dos centros produtores de preparados de peixe em toda a Península Ibérica. Posteriormente (2002) a dupla revisitou o tema, atualizando o debate. 

A parceria de Mayet e Tavares da Silva prossegue em outra obra (1998) onde se debate as ânforas de Pinheiro e uma vez mais no século XXI (2002), discutindo-se o material anfórico piscícola em Abul. Mayet publicou um estado da arte para o estudo das ânforas lusitanas (2001) e um estudo similar, reunindo dados mais atualizados foi então publicado por Fabião (2008). 

Uma bibliografia essencial para o estudo desse tema em Portugal também deveria incluir a obra de Morais e Fabião (2007), onde são discutidos os aspetos económicos dos centros oleiros da Lusitânia. 

As atas de encontros científicos constituem numa valiosa fonte de informações. O “Simpósio Internacional Produção e Comércio de Preparados Piscícolas durante a Proto-História e a Época Romana no Ocidente da Península Ibérica” (Uma homenagem a François Mayet), ocorrido em 2004, publicou as suas atas na revista Setúbal Arqueológica, volume 13 (2006). Esta publicação promove um exame completo do estado da arte acerca da produção oleira específica para os produtos piscícolas, bem como um estudo sobre todas as unidades produtoras dos preparados piscícolas na península. 

Bombico (2017) apresentou recentemente uma tese atualizando as relações entre os centros produtores de preparados de peixe lusitanos e os centros oleiros a eles associados. Contudo, dados precisos quanto ao volume da produção e a cronologia das produções ainda não são possíveis de serem estimados. 

CAPÍTULO II: OS CENTROS PRODUTORES LUSITANOS

Recentemente foi possível à arqueologia incrementar o volume de informação acerca da presença romana no território atualmente português entre os meados do século I a.C. e I d.C. O desenvolvimento urbano da Lusitânia e o subsequente aumento da presença de cidadãos romanos no território relacionam-se com uma nova realidade de assentamentos criados ex-novo e à expansão de centros populacionais indígenas, agora elevados em categoria jurídica. Nesse período também se verifica um expressivo aumento de importações cerâmicas. 

Entretanto, há uma série de fatores externos que também devem ser levados em conta para a compreensão dessas transformações. São elas: as últimas campanhas militares na península, nas Cantábrias (12 a.C. – 19 d.C.), ainda sob o governo de Augusto, e a criação do limes germânico (12 a.C.-9 d.C.) (Fabião, 2005: 84); a anexação da Mauritânia (42 d.C.) já sob o reinado de Cláudio, contando com apoio logístico da Bética e da Lusitânia (Mantas, 2002 – 2003: 457) e a consolidação do domínio romano sobre a Britânia (43 d.C.). A anexação da Britânia, segundo Fabião (1998: 139), é fundamental para garantir importância estratégica do nordeste hispânico na logística de abastecimento das províncias do norte europeu (a nova finis terra romana). 

Pode-se então perceber que o principado de Cláudio, de 41 d.C. a 54 d.C., foi direcionado para consumar o que autores portugueses denominam “uma política atlântica” romana (Fabião, 2005: 84; Mantas, 2002-2003: 459; Bombico, 2017: 72). Bombico caracteriza o período como uma época de exploração progressiva dos recursos naturais, enfatizando os recursos mineiros (estimulando o desenvolvimento do comércio e da infraestrutura provinciais) e os recursos marinhos (sal e peixe). Assim, a economia lusitana, tal como propõe Edmonson (1987), possivelmente baseou-se no binómio minério – preparados de peixe 21. 

21 Ver nota 5.  

Ao longo do período republicano predominam as importações de ânforas itálicas (Dressel 1) no território lusitano, bem como contentores provenientes da baía de Cádis e do vale do Guadalquivir (ânforas ovoides e Haltern 70). Também se atesta a presença de cerâmica de verniz negro da Campania e de paredes finas itálicas (Bombico 2017: 72). Esses padrões de importação estão bem representados no vale do Tejo, na Alcáçova de Santarém, Monte de Castelinhos e Olisipo (Arruda, Viegas, 2014; Pimenta, 2014; Almeida, 2008) 22. No estuário do Sado elas ocorrem em Salacia (Pimenta, Sepúlveda e Ferreira, 2006; Sousa et al., 2008). No Algarve, em Monte Molião-Lagos (Arruda, Sousa, 2012). 

22 Nesses estudos sobre Alcáçova de Santarém, na área do castelo de São Jorge em Lisboa, e em Monte dos Castelinhos apresentam a presença de ânforas de vinho itálico em contentores Dressel 1, testemunhando o abastecimento de tropas.  

Esses padrões de importação reforçam a teoria proposta por Mantas (1996: 348), de que Cádis terá exercido um monopólio marítimo e comercial sobre o Atlântico nesse período inicial da romanização do território. Assim, Cádis seria o principal centro distribuidor e de concentração de cargas destinadas aos territórios mais ocidentais da península. 

Assim, entre fins do século I a.C. e meados do século I d.C. o Atlântico foi usado como via de abastecimento institucional de produtos vinícolas e oleiros béticos, que incluíam produtos preparados à base de peixe na região de Cádis. Essa distribuição é atestada pelos vestígios de ânforas Haltern 70 (vinho e defrutum), Dressel 20 (azeite) e Beltrán II e Dressel 7/11 (preparados de peixe), ao longo da faixa atlântica peninsular, alcançando a Britânia e o limes germânico. Fabião (1993-1994) já alertara quanto a presença de ânforas tipo Dressel 20 de azeite bético na costa lusitana, sugerindo a existência de “anonna militaris” e de uma rota atlântica ligando o Mediterrâneo ao norte da Europa. 

Posteriormente, a implantação e desenvolvimento de cidades marítimas na Lusitânia possibilitou o surgimento de centros produtores de preparados de peixe, bem como o de centros oleiros destinados a abastecer aquela produção com o envase para o transporte. As características naturais do oceano Atlântico, com as subidas de marés e correntes mais fortes, condicionaram as fundações marítimas romanas aos portos naturais protegidos, ou aos estuários (Mantas, 2000). 

Essa mesma estratégia havia sido adotada pelos fenícios na instalação de suas feitorias no ocidente ibérico, no início da Idade do Ferro (Aubet, 2001). Por isso mesmo, os portos romanos são, antes de tudo, assentamentos indígenas que passaram por um processo de urbanização sob a administração romana. Essas cidades marítimas estão situadas em pontos estratégicos no litoral, facilitando tanto o comércio como a integração à comunicação com rotas terrestres, de modo que já exerciam atividades económicas na altura da conquista romana. Assim, a promoção desses assentamentos a novos estatutos administrativos sob os romanos era o reconhecimento por esses últimos da importância e do potencial económico daqueles centros urbanos (Mantas, 1990, 2000). 

Os chamados verdadeiros portos romanos, segundo Mantas (1990: 160), seriam então: Olisipo (Lisboa), Salacia (Alcácer do Sal), Ossonoba (Faro) e Balsa (Luz de Tavira). Bombico (2017, 91) complementa a lista, incluindo portos de uma importância secundária, como Scallabis (Santarém), Aeminium (Coimbra) e Myrtili (Mértola), no interior dos cursos do Tejo, Mondego e Guadiana, respetivamente. Esses centros eram importantes no sentido de servirem de portos de ligação para o interior do território provincial. 

Blot (2003) sugere ainda que os pequenos cursos fluviais, como o Minho, Lima, Cávado, Ave, Douro, Ria de Aveiro, Mondego e a zona das lagoas da Extremadura também desfrutavam de alguma importância económica e/ou logística. O mesmo é dito pela autora (Blot, 2005) acerca de pequenas ilhas da costa, como a Ilha do Pessegueiro e a Ilha de Berlenga como pontos de escala para a navegação atlântica. Áreas de fundeadouro como a entrada dos estuários do Tejo e do Sado, o Cabo Espichel e a baía de Cascais também são áreas de fundeadouro onde foram encontrados vestígios de âncoras da época romana (Alves et al., 1988-1989). 

O uso preferencial de baías protegidas e de estuários de rios traz benefícios logísticos, como a possibilidade de descarregar navios com o auxílio de “balsas de serviço”, similares àquelas que Estrabão refere ao descrever o procedimento rotineiro no Tibre (3.3.1). Assim, existe a possibilidade desses portos haverem recebido portos de madeira, ou até mesmo não haverem recebido qualquer estrutura portuária particular (Bombico, 2017: 92). As instalações portuárias romanas na Lusitânia eram, a rigor, um conjunto de ancoradouros e portos que se complementavam entre si (Mantas, 2000; Blot, 1998, 2003). 

II. 1. A geografia da produção Lusitana

As unidades produtoras de preparados de peixe localizavam-se nas imediações de cidades portuárias e/ou integradas a redes comerciais para o seu transporte e exportação. Essas zonas de produção dos produtos preparados à base de peixe e os centros oleiros a elas associados estão concentrados principalmente no sul do território português. 

Os seus núcleos situam-se em quatro grandes regiões: o estuário do Tejo, o estuário do Sado, a costa alentejana e a costa algarvia (Diogo, 1987: 181). Contudo, Bombico (2017, 97-98) alerta para a descoberta de um centro de produção oleira em Peniche, o que indica a possibilidade de novos centros ainda por descobrir ao longo do território ao norte do Tejo 23. 

23 A autora alerta (2017: 98) para o facto de existirem cetárias identificadas a norte do Tejo, para além do território lusitano. Isto é, ao longo da costa atlântica da Tarraconensis/Gallaecia, Gallia Aquitania e Gallia Lugdunensis. Mas, como não há até o momento qualquer indício de cetárias na região de Peniche, o local estará excluído deste trabalho.  

Edmonson (1987: 190) propôs uma tipologia onde podemos distinguir três modelos de oficinas de preparados de peixe em razão de sua localização: oficinas rurais (villae), urbanas e semi-urbanas. Por outro lado, Fabião (2009b) questiona os critérios para o diagnóstico de oficinas “semi-urbanas”, uma vez que alguns sítios podem apresentar ambiguidades (como Troia e a Ilha do Pessegueiro, que poderiam integrar “polos industriais”). 

As oficinas rurais, em funcionamento sob o modelo de villa, integrava a exploração agrícola e a marítima, de modo que, ao menos na Lusitânia, não há ainda um caso específico de oficina rural. 

Um outro modo de se identificar tipos de unidades produtoras pode ser através das suas dimensões e organização arquitetónica (Bombico, 2017: 123). Há centros produtores com oficinas de tamanhos diversos, algumas delas contendo um grande número de cetárias, como Troia. Do mesmo modo, há ainda aqueles centros com unidades de pequenas dimensões, compostas por poucas oficinas de escala menor. 

A seguir estão listadas todas as cetárias diagnosticadas e/ou propostas (sem confirmação) até o final de 2016, segundo Bombico (2017: 114-120). 

24 Leia-se “capacidade instalada”, ou seja, qual seria a produção máxima estimada, caso todas as cetárias estivessem cheias e em operação simultaneamente.  

II. 1. 1. Grande Área do Estuário do Tejo

Há uma forte concentração de unidades de produção de preparados de peixe nas imediações de Olisipo, sugerindo que esta certamente foi uma das mais relevantes atividades económicas da cidade (Filipe, Fabião, 2006/2007: 116). 

No estuário do Tejo, as unidades de produção foram organizadas em torno do centro urbano-portuário de Olisipo. A listagem que se segue descreve, em linhas gerais, as características e o estado de cada centro produtor diagnosticado ou proposto. 

§ 1 Olisipo:

Ao longo do século XXI, o desenvolvimento económico português estimulou o aumento de intervenções emergenciais em Lisboa. Consequentemente, foi possível coletar novas informações arqueológicas sobre a época romana da cidade. Nesse contexto, foi possível traçar um perfil de intensa atividade de centros produtores de preparados de peixe na urbe. 

As onze oficinas de Olisipo estudadas estiveram em operação entre os séculos I e V d.C. Estima-se que a unidade da Rua dos Correeiros tinha uma capacidade instalada de até 288 m3. 

Figura 2: Unidades de transformação de preparados de peixe conhecidas no centro de Lisboa. (Fernandes, Marques, Filipe, Calado, 2011, fig.20); apud Bombico, 2017: 121. 

§ 2 Porto Brandão:

Na margem sul do estuário, em Caparica, foi identificada uma oficina de salga de peixe na Rua Bento de Jesus Caraça (Porto Brandão). O local ainda não havia sido escavado em Janeiro de 2017 (Fabião, 2017), mas existem à mostra dois tanques revestidos por signinum, indicando a possibilidade de se tratar de cetárias (Santos, Sabrosa, Golveia, 1996, Fabião, 2017). 

Estão diagnosticadas, no total, dez oficinas produtoras de preparados de peixe na margem sul do Tejo. Contudo, há muito pouca informação sobre o seu período de funcionamento, dimensões e capacidade instalada. 

Uma exceção é feita para Cacilhas (Rua Alfredo Dinis), de onde, graças a uma intervenção de emergência, ainda se consegue informações de que teria possuído dez cetárias e estado em funcionamento entre os séculos I e II d.C. (Fabião, 2017). 

Figura 3: Unidades produtoras da margem sul do Tejo (Fabião, 2017). 

1- Ramalha; 2 – Cacilhas; 3 – Quinta do Almaraz; 4 – São Paulo; 5 – Mercado do Monte; 6 – Chegadinho; 7 – Bento Gonçalves; 8 – Quinta da Torre; 9 – Quinta do Outeiro; 10 – Porto Brandão 

§ 3 Cascais:

Em conformidade com as crescentes intervenções arqueológicas de contracto e minimização de impactes na zona metropolitana de Lisboa, novas cetárias foram identificadas. Já no exterior do estuário do Tejo, foram diagnosticadas 7 cetárias na Rua Marques Leal Pancada, em Cascais. 

Esse conjunto teria capacidade para cerca de 130 m3 e teria funcionado entre os séculos I e II d.C.; uma conclusão feita com a ajuda de moedas datando dos principados de Domiciano e Antonino Pio (Cardoso, 2006). 

Figura 4: Cascais e a Rua Marques Leal Pancada (Fabião, 2017 a). 

Figura 4a: Cascais (Rua Marques Leal Pancada). 

§ 4 Casa do Governador da Torre de Belém:

Seguindo o mesmo perfil de intervenções arqueológicas de minimização de impactes, agora no contexto de uma obra de construção de um estacionamento, foi encontrada uma das maiores unidades de produção de preparados de peixe até o momento conhecidas. 

As 34 cetárias de dimensões variadas com uma capacidade instalada de até 335 m3. Essa unidade esteve em funcionamento entre os séculos I e V d.C.

Esse conjunto teria capacidade para cerca de 130 m3 e teria funcionado entre os séculos I e II d.C.; uma conclusão feita com a ajuda de moedas datando dos principados de Domiciano e Antonino Pio (Cardoso, 2006). 

Figura 5: Localização da Casa do Governador da Torre de Belém (Filipe e Fabião, 2006/2007: 104). 

Figura 6: Casa do Governador: dimensões e volume das cetárias da unidade de produção (Filipe e Fabião, 2006/2007: 110 – 111). 

II. 1. 2. Grande Área do Estuário do Sado

Se tomarmos como modelo a organização das unidades de produção em órbita de um centro urbano-portuário, como no caso de Olisipo, percebe-se que a mesma estratégia foi adotada no estuário do Sado, então sob a dependência administrativa de Salacia (Alcácer do Sal). 

Há no Sado uma concentração de olarias no curso inferior do rio (Quinta da Alegria, Zambujalinho, Pinheiro, Abul, Enchurrasqueira, Bugio e Barrosinha). As oficinas de produção de preparados de peixe estão concentradas na área urbana de Setúbal, ao longo da margem norte do estuário (Comenda, Rasca e Creiro) e na margem sul, na península de Troia (Tavares da Silva, Soares e Wrench, 2010). 

Figura 7: Complexo produtivo do Sado (Soares e Tavares de Silva, 2018: 15). 

Figura7ComplexoprodutivodoSado

1 – Barrosinha; 2 – Alcácer do Sal; 3 – Bugio; 4 – Enchurrasqueira; 5 – Abul; 6 – Pinheiro; 7 – Zambujalinho; 8 – Santa Catarina; 9 – Quinta da Alegria; 10 – Pedra Furada; 11- Setúbal; 12- Alferrar; 13 – Pedrão; 14 – Chibanes; 15 – Painel das Almas (Azeitão); 16 – Comenda, 17 – Rasca; 18 – Outão; 19 – Creiro; 20 – Sesimbra; 21- Troia. 

§ 5 Setúbal (Travessa Frei Gaspar e Praça do Bocage):

Trata-se de outro caso de intervenção arqueológica de emergência em área urbana. Uma intervenção arqueológica em 1979 investigou uma área de 120 m2 pertencente ao centro histórico de Setúbal. 

Sob a Travessa Frei Gaspar foi encontrada uma oficina de preparados de peixe, possivelmente do período flaviano, em formato de “U” ou “L”. Seus tanques eram revestidos por uma argamassa compacta impermeável. Essa oficina teria funcionado até o século III d.C., sendo abandonada em seguida (Soares, Tavares de Silva, 2018: 16). 

No ano seguinte, em 1980, outra sondagem do centro histórico, com 98 m2, foi realizada e uma nova fábrica foi encontrada sob a Praça do Bocage, em Setúbal. As cetárias estão organizadas em duas fileiras paralelas de tanques, separadas por um pequeno corredor que tem acesso direto ao pátio central (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1980-81). 

Esse corredor também delimitava em duas tipologias de tanques: aqueles que estavam revestidos por uma argamassa compacta impermeável de cal, areia e brita calcária (destinados ao fabrico de salgas), e os que eram revestidos por uma simples camada impermeabilizadora de argila (possivelmente empregados como reservatórios de água ou tanques de peixes). 

Essa oficina operou até o final do século II d.C. (Soares, Tavares de Silva, 2018: 

Figura 8: Oficina de salgas de peixe da Praça do Bocage (Soares e Tavares de Silva, 2018: 18). 

Figura 8a: Oficina da Travessa Frei Gaspar (Soares e Tavares de Silva, 2018: 17). 

§ 6 Comenda (São Julião, Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça):

Existem vestígios de tanques de salga, além de um aqueduto e um estabelecimento termal. Nos anos 1970’s ocorreram algumas escavações arqueológicas, mas nunca se publicou resultados ou estudos topográficos (Fabião, 2018ª). Vestígios anfóricos encontrados in situ estimam a ocupação do sítio entre os séculos I e IV d.C. (Costa, Marques, 1905; Trindade, Diogo, 1996) 

§ 7 Rasca (São Julião, Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça):

Costa (1905) menciona a existência de tanques de salga na área. Não se sabe mais nada (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1986, 1988; Fabião, 2018b). 

Figura 9: Rasca e Comenda (Fabião, 2018ª). 

§ 8 Creiro (São Lourenço e São Simão):

O complexo do Creiro foi diagnosticado em 1987. Ele é constituído por uma fábrica com pelos menos 11 cetárias, uma zona de armazéns que inclui pelo menos uma dolium, uma área residencial e, possivelmente uma segunda fábrica, ainda por investigar. Estruturas de uma fase mais tardia de ocupação incluem um sistema de encanamento (condução hidráulica) e uma estrutura termal (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1987, 2016). 

As cetárias estão dispostas em formato de “U” simétrico e possuíam uma capacidade instalada estimada em 31,63 m3. A estrutura foi reocupada em meados do séc. IV d.C., mas apenas parcialmente explorada. Não se sabe se nesse novo período de utilização ainda se produzia a salga. Durante a época islâmica o espaço foi reocupado e o complexo foi substituído por novas construções. 

Figura 10: Localização do sítio arqueológico do Creiro na Carta Militar Portuguesa (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2016: 212). 

Figura 10a:Planta da oficina e corte dos tanques 1- 5 (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2016: 216). 

§ 9 Sesimbra (Avenida da Liberdade):

Trata-se de um dos primeiros estudos arqueológicos do contexto romano em Sesimbra, iniciado em 2007. Não se sabe se a unidade produtora estava isolada ou integrada num complexo maior. Os achados localizam-se na ZEP da fortaleza de Santiago. 

Ali estão diagnosticados 7 tanques de salga alinhados. Alguns deles medem 2,40 m por 2,69 m por 1,29 m, o que sugere um grande centro produtor. Existem vestígios dos recursos marinhos disponíveis, mas estes ainda não foram estudados. Estima-se que o centro esteve a produzir entre os séculos I e V d.C. (Pereira 2014). 

Figura 11: Sesimbra: localização de 4 dos 7 tanques diagnosticados (Pereira, 2014: 157). 

§ 10 Troia:

O centro produtor de preparados de peixes de Troia é considerado, até ao momento, o maior de todo o mundo romano, com 25 oficinas identificadas (Vaz Pinto, Magalhães, Brum, 2011). As suas 159 cetárias em condições de análise possuem uma capacidade instalada superior a 3218,53 m3. 

A sua localização era privilegiada: entre o Atlântico e a entrada do estuário do Sado. O baixo Sado, além de rico em recursos marinhos era um centro explorador de salinas e pontilhado por grandes olarias. Troia foi ocupada desde meados do século I d.C. até, possivelmente, o final do século VI. O sítio tem sido alvo de intervenções e escavações desde o século XVIII, passando a ser controlado pela Sociedade Arqueológica Lusitana a partir de sua fundação, em 1848. Os trabalhos desenvolvidos no século XIX localizaram uma área de habitações e estruturas termais. 

Ao longo do século XX, de 1948 aos anos 1970’s, o Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, assumiu a direção dos trabalhos, localizando, novas estruturas termais e as primeiras oficinas de processamento de peixe. 

A localidade fora no passado um importante vicus industrial. Além dos centros produtores, Troia possuía toda uma estrutura hidráulica com termas (construídas entre os séculos II e III), uma necrópole (utilizada entre os séculos I e V) e, entre fins do século IV e início do século V, uma basílica paleocristã, implantada sobre parte de uma oficina de salga (Magalhães 2010: 10). 

No momento, considera-se que houve duas fases de ocupação. Durante os séculos I e II d.C., Troia teria experimentado o seu apogeu. A sua produção de molhos e preparados de peixe atendiam não apenas a Lusitânia como era exportada para outras partes do império, incluindo a sua capital, Roma. 

Ao final do século II ocorreu uma interrupção da atividade das oficinas. Estas passaram por uma reforma, subdividindo muitos dos seus tanques em metades. Concluída essa redução de dimensões, a produção continuou entre os séculos III e V d.C. Sabe-se que no século V as oficinas davam preferências aos peixes pequenos. 

De acordo com o estudo de Sónia Gabriel (LARC-Laboratório de Arqueociências): Contextos da segunda metade do século II: sardinha (Sardina pilchardus), biqueirão (Engraulis encrasicolus), choupa (Diplodus vulgaris), cavala (Scomber scombrus), robalo (Dicentrarchus labrax), anchova (Pomatomus saltatrix) e capatão (Dentex sp.) (Pinto, Magalhães, Brum, 2017; 2017ª). 

Contextos do segundo quartel do século V abrangem a sardinha (Sardina pilchardus), biqueirão (Engraulis encrasicolus), choupa (Diplodus vulgaris), cavala (Scomber scombrus), pescada (Merluccius merluccius), carapau (Trachurus trachurus), besugo (Pagellus acarne), dourada (Spaurus aurata), robalo (Dicentrarchus labrax), anchova (Pomatomus saltatrix), peixes cartilagíneos (Chrondrichthyes indet.), esturgeão (Acipenseridae), capatão (Dentex sp.), sargo (Diplodus sp.), pargo (Pagrus 

sp.) e outros grandes peixes ainda não identificados (Pinto, Magalhães, Brum, 2017; 2017a). 

O declínio do império ocidental afetou a produção dos preparados de peixe, mas ainda assim, o sítio continuou ocupado por mais um século. Entretanto, a partir do século V, já não se pode afirmar, com certeza, que permanecia ali uma estrutura industrial. Sabe-se da existência de um forno de pão e há materiais de importação, nada mais. 

Magalhães (2010: 110) conclui que o abandono da oficina 1 terá ocorrido, no mais tardar, em meados do século V, dado que no segundo quarto do século verifica-se um decréscimo acentuado na importação de terra sigillata. A autora confirma a presença romana no local até meados do século VI, embora reduzida, na necrópole tardia instalada sobre a área da oficina. 

Figura 12: Localização das 25 unidades produtoras identificadas atualmente na Península de Troia (Soares e Tavares de Silva, 2018: 29). 

Figura 12a: Mapa das Oficinas 1 e 2 e das termas (a Nordeste da Oficina 1) (Étienne, Makaroun e Mayet, 1994; apud Magalhães, 2014: 250). 

II. 1. 3. Grande Área da Costa Alentejana

O litoral alentejano possui uma estrutura produtora mais modesta, se comparada com o complexo produtivo do Tejo e do Sado. Há diagnosticado, até o momento, seis oficinas em Sines (1-2 e A-D), somando 25 tanques e cerca de 120m3 de capacidade instalada, embora Bombico (2017: 121) estime que esse valor tenha estado em torno de 200 m3. 

Na Ilha do Pessegueiro há duas oficinas escavadas, totalizando cerca de 77,7 m3 de capacidade instalada. 

§ 11 Sines I (Largo João de Deus 1 e 2):

Sines possuiu várias oficinas centradas numa mesma área. A independência dessas oficinas entre si não é totalmente clara, tal como acontece em Troia. Entretanto, em ambos os casos não se tem ainda o conhecimento da extensão total dos seus respectivos complexos, principalmente por causa da erosão, que provocou a destruição das arribas junto à frente marítima. 

O edifício (1) possui 7 tanques cobertos, dispostos em “U”, e 1 pátio central, aberto. A oficina entrou em funcionamento em meados do século I d.C. Os tanques III e VI foram remodelados em um período posterior, e portanto, não se sabe as suas dimensões originais. 

Na época dessa remodelação, foram abandonados os tanques I, II e VII, convertidos em uma zona residencial. Assim, apenas 4 tanques operavam em sua fase final de produção. Em algum momento do século IV d.C. a oficina foi desativada definitivamente (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2004, 2006). 

Uma segunda oficina foi identificada em 1961, sendo que esta contaria com um forno próprio. O edifício possuía os 9 tanques cobertos e dispostos ao redor de um pátio central, descoberto. A sua capacidade instalada seria de 39,6 m3. 

Estima-se que as oficinas 1 e 2 estivessem integradas ao mesmo complexo produtor. 

Figura 13: Largo João de Deus: oficinas 1-2 e A-D (3-5) (Fabião, 2018c). 

Figura 13a: Cetárias I – IX do Largo João de Deus (1). 

Figura 13b: Largo João de Deus (2) (Fabião, 2018d). 

Figura 13c: Cetárias I-VII do Largo João de Deus (2) (Fabião, 2018d). 

§ 11. 1 Sines II (Rua Ramos da Costa – “Fábricas A-D”):

Em uma intervenção de emergência foi encontrada uma nova oficina (A-E) a poucos metros do núcleo anterior (1-2). A oficina A (3) estava bastante danificada, de modo que há pouca informação disponível sobre ela. Sabe-se que ela foi construída sob a planificação em “U”, com 3 tanques identificados e um último, de pequenas dimensões, parcialmente recuperado. A sua capacidade instalada estava em torno de 22,8 m3. Ela terá sido abandonada no século IV d.C. 

A oficina B (3), identificada na mesma intervenção de emergência, possuía dimensões menores. Ela também havia sido planeada em “U” e a sua capacidade instalada, com os seus 3 tanques grandes e 1 pequeno, está estimada em 13,8 m3. 

Da oficina C (4) obteve-se apenas uma parede perimetral e um único tanque, posteriormente subdividido em dois menores. A sua capacidade instalada seria de 6,2 m3. 

Finalmente, a oficina D (5) conta com 3 tanques, destruídos por obras posteriores de construção da rua. Como esses tanques estão em uma cota mais baixa que as demais, especula-se que talvez essa oficina integrasse um complexo que se estendesse na direção do mar (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 2004, 2006). 

Figura 14: Sines: oficinas A e B (3) (Fabião, 2018e). 

Figura 14a: Sines: oficina C (4) (Fabião, 2018g). 

§ 12 Ilha do Pessegueiro D14 e P16 (Porto Covo):

A ilha possui registo de ocupação contínua desde a Idade do Ferro até a Antiguidade Tardia. Durante o século I d.C. foi construída toda uma estrutura de armazéns, habitações e oficinas, indicando que o local teria sido convertido em um entreposto comercial. 

Esse espaço sofreu uma remodelação no século II d.C. e, por fim, nos séculos III – IV converteu-se num centro especializado na exploração de recursos marinhos, com a construção de duas oficinas: D14 e P16 e estruturas termais. 

Foram escavados vários compartimentos interpretados como armazéns, adjacentes às fábricas D14 e P16 (Tavares da Silva e Soares, 1993, 136-141). Nesses espaços seriam armazenadas as ânforas vazias e/ou cheias prontas a ser embarcadas. 

A oficina D14 foi planeada em “U” e os seus tanques foram escavados em substrato rochoso e recobertos por signinum. A sua capacidade instalada está estimada em 36,63 m3. 

A oficina P16 possui plano em “T”, e um total de 10 tanques de dimensões variáveis. Elas também foram escavadas no substrato rochoso (a 2m de profundidade) e recobertas de signinum. A sua capacidade instalada está estimada em 41,4 m3. Possivelmente havia uma segunda oficina em anexo à essa, uma vez que foi detetado signinum nos escombros abandonados situados a norte de P16. 

Vestígios de recursos marinhos nas duas oficinas incluem muraenidae, sparidae, gadidae, mugilidae e labridae (Beja, 1993). Essas oficinas teriam estado em atividade entre os séculos III – V d.C. 

Figura 15: Ilha do Pessegueiro D14 e P16 (Fabião, 2018h). 

Figura 15a: Oficina D14 (Fabião, 2018h) 

Figura 15b: Oficina P16 (Fabião, 2018i). 

II. 1. 4. Grande Área do Litoral Algarvio

O litoral meridional algarvio estende-se por cerca de 150 km. Muitos dos complexos identificados no Algarve possuem cetárias pequenas, médias e grandes em produção simultânea, sugerindo que suas oficinas fossem especializadas. A maior parte dessas oficinas estabeleceu-se entre os séculos I e II e foram abandonadas de modo progressivo pelos séculos IV – VI tendo o seu número sido revisto por Medeiros (2014 – 2015). 

Atualmente estão identificados e/ou propostos 37 sítios, somando uma capacidade instalada de 601,20 m3. 

Tal valor deriva do cálculo a partir de tanques de apenas 11 centros em condições de análise: Boca do Rio, Martinhal, Senhora da Luz, Monte Molião, Rua Silva Lopes (Lagos), Vau, Aveiros, Loulé Velho, Doca de Olhão, Quinta de Marim e Balsa (Bombico, 2017: 122). 

De resto, apenas 25 sítios podem ser confirmados efetivamente como oficinas de preparados de peixe. 

Figura 16: Centros oleiros e sítios com cetárias na costa algarvia. A numeração dos centros é mantida para a secção descritiva que vem a seguir. (Viegas, 2011, fig.63); apud Bombico, 2012: 123. 

§ 13 Conjunto de Cetárias do Concelho de Vila do Bispo (Sagres):

A oficina mais ocidental do Algarve situa-se na Praia do Beliche (1). Trata-se apenas de vestígios de um tanque (Gomes et al., 1987: 67). Em seguida, a 1,5 km de Sagres, situa-se a nordeste de Sagres num dos ilhéus da Baleeira (2), uma estrutura com restos de opus signinum em possíveis cetárias (Gomes et al., 1987: 67). 

Na Praia de Salema (3) parece ter existido um complexo de oficinas (Veiga, 1910: 211), cujos vestígios limitam-se a fundos de tanques de salga. Em Areias, Budens (3) há também vestígios de 4 tanques recobertos por opus signinum, estando dois deles, os maiores, conectados a uma canalização que integrava um alicerce (Santos, 1971: 80). Sugere-se que esse complexo estivesse ligado à unidade de produção da Boca do Rio (4). 

Em Boca do Rio está situado o maior centro de produção, de preparados do Algarve. O centro desenvolveu-se no estuário do Arade, com uma estrutura inspirada nas villae: uma área habitacional situada na orla do mar, com características da domus romana, com obras de arte, um balneário e o campus servilis; oficinas com cetárias estavam nas imediações dessa área, num total de 3 oficinas e 12 tanques. 

Burgal (5) é a última praia do concelho de Vila do Bispo a apresentar cetárias. Entretanto, sabe-se muito pouco sobre a estrutura de sua oficina. Estima-se que ela tenha operado entre finais do século IV e início do século V, em razão de moedas recolhidas no sítio (Edmonson, 1987: 255). 

Figura 17: Complexo da Boca do Rio (Fabião, 2017c). 

Figura 17a: Mapa geral da área arqueológica da Boca do Rio com as zonas onde Francisco Alves escavou as cetárias em 1982 (segundo Bernardes, 2007); apud, Medeiros, 2014-2015, fig.8. 

§ 14 Conjunto de Cetárias de Lagos:

Na área da Praia da Senhora da Luz (6) há vestígios de um grande complexo, comparável ao da Boca do Rio. Mosaicos, balneários e 16 tanques (12 dos quais intactos), divididos em 3 oficinas. Esse complexo teria funcionado entre os séculos III e IV (Parreira, 1997: 244). 

No centro histórico de Lagos (7) há 3 zonas com cetárias diagnosticadas: ruas Silva Lopes (15 tanques em 3 núcleos); 25 de Abril (2 núcleos: um com 5 e outro com 4 cetárias); e Castelo dos Governadores (2 núcleos: um com 3 e outro com 5 cetárias). Ramos (2008: 91) sugere que ali havia um grande centro processador de recursos marinhos. Esse conjunto teria sido abandonado entre o final do século IV e início do V. 

Na baía de Lagos encontra-se a colina de Monte Molião (8), uma área de ocupação contínua desde o século IV a.C. Ali foram diagnosticadas duas cetárias datando dos séculos I e II (Bargão, 2008, 181). 

Figura 18: Planta das cetárias escavadas nos anos 1980 na estação arqueológica romana da Senhora da Luz (segundo Parreira, 1997). Com indicação de cetárias (1-16) e complexos de salga (A-D); apud, Medeiros, 2014-2015, figs.9-10. 

Figura 18a: Localização das cetárias do centro histórico de Lagos (B3A – Rua Silva Lopes; B3B – Rua 25 de Abril; B3C – Rua Castelo dos Governadores); apud, Medeiros, 2014-2015, fig.13. 

Figura 18b: Planta das cetárias do Monte Molião, Lagos (segundo BARGÃO, 2008). FIG 12 – Pormenor da construção de uma das cetárias do Monte Molião, Lagos apud, Medeiros, 2014- 2015, fig.11. 

§ 15 Conjunto de Cetárias de Portimão:

Em Vau (Alvor) (9), a oeste de Arade, onde se julga estar a cidade de Ipses, foram encontrados 15 tanques de salga. Esses tanques estariam dispostos em dois planos, o que Edmonson (1990: 142) interpreta como indício de que estivessem integrados a um complexo maior, também similar ao modelo de villa. Em Portimões (10), entre o Forte de Santa Catarina e o Convento de São Francisco, próximo à foz do Arade, pela margem direita, foi encontrada uma bateria de 15 tanques de salga, revestidos de opus signignum. Segundo Lagóstena Barrios (2001: 77) o complexo funcionou entre os séculos I e IV. 

Em Baralha (11) sítio arqueológico de 16 km2 interpretado como uma villa, existem muros decorados com estuque pintado e 2 tanques revestidos com signinum (Gomes, 2005). 

Figura 19: Conjunto de cetárias do Vau, segundo desenho de Estácio da Veiga (adaptado de Soares et al., 2007); apud Medeiros, 2014-2015, fig.26. 

Figura 19a: Estabelecimento de salga de Portimões, segundo Estácio da Veiga (VEIGA, 1910); apud Medeiros, 2014-2015, fig.26. 

§ 16 Conjunto de Cetárias de Lagoa:

Ferragudo (12) é um sítio localizado numa aldeia piscatória romana ou pré-romana. Na praia da Angrinha, junto ao castelo de Ferragudo, foi encontrada uma oficina de preparados de peixe. Sabe-se que a estrutura possui 3 tanques quadrangulares de 1m2 e forradas com uma argamassa grosseira de pedras roladas (Santos, 1971: 35). 

§ 17 Conjunto de Cetárias de Silves:

Na Praia de Armação da Pera (13), a cerca de 12 km a leste do rio Arade, encontrou-se vestígios de uma oficina de grandes dimensões (Santos, 1971: 144). Sabe-se que 3 de seus tanques ainda eram visíveis aquando da sua publicação, embora as demais estruturas já não o fossem. Segundo Fabião (1994) essa estrutura estaria conectada às de Portus Hannibalis. 

§ 18 Conjunto de Cetárias de Albufeira25:

Na Praia dos Aveiros foi detectado um tanque, escavado em solo calco-arenítico e danificado pela erosão (Paulo, 2011: 513). Na Praia dos Pescadores, próximo ao Largo do Cais Herculano, foi localizada uma possível estrutura de oficina de transformação de peixe (Paulo, 2011: 510). A Praia de Santa Eulália também aparentemente possuiu estruturas do mesmo tipo, estando esses tanques datados dos séculos III e IV. 

25 Esse conjunto não está descrito pelo mapa apresentado por Viegas, 2011, fig.63 (apud Bombico, 2012: 123).  

§ 19 Conjunto de Cetárias de Loulé:

Cerro de Vila (14) é um dos sítios arqueológicos mais conhecidos e estudados no litoral do Algarve. O seu complexo explorava recursos agrícolas e marítimos em uma estrutura análoga ao modelo de villa romana. Assim, ali se encontram edifícios decorados com arte, balneários, além de uma barragem, um porto, um núcleo “industrial” e uma necrópole. Em seu “núcleo industrial” Teichner (2004: 206) identifica 4 oficinas de transformação de moluscos bivalves e gastrópodes (E, H, I , J). As oficinas E, H, I estariam ocupadas com a produção de conservas alimentares, enquanto a última (J) processava pigmentos de púrpura (murex bandaris) para tecidos. 

Em Quarteira (15) teria existido uma oficina em uma área ocupada por uma povoação romana que foi completamente arrasada. Apesar de haver poucos vestígios dos tanques de salgas, Fabião (1994) propõe a sua datação para o século I a.C. Tão antiga quanto essa estrutura seria a unidade de produção encontrada um pouco mais a leste, em Loulé Velho (16). O sítio é comparável a Cerro da Vila em dimensões e luxo, tendo sido ocupado entre os séculos I a.C e VI d.C. Dado que o complexo estava situado nas proximidades de solo fértil, especula-se que também em Loulé Velho se articulava a exploração de recursos marinhos e agrícolas. Fabião (1994) propõe que os centros de Loulé Velho e Quarteira estivessem conectados a uma estrutura industrial comum. 

Em 1985, uma intervenção de emergência em Quinta do Lago (17) revelou um complexo de cetárias de pequenas dimensões, organizado em duas oficinas; uma contando com 5 tanques escavados na rocha, mais antiga (século I d.C.); outra, construída nas imediações (da qual restam somente 3 cetárias em mau estado de conservação) e abandonada progressivamente a partir do século III. Esse pequeno centro estava situado entre dois pequenos estuários e teria funcionado entre os séculos I e V (Arruda, 1986). 

Figura 20: Planta das diferentes Unidades Arquitetónicas identificadas no Cerro da Vila, com indicação das fábricas E, H, I, J e L (adaptado de Teichner, 2004); apud Medeiros, 2014-2015, fig.30. 

§ 20 Conjunto de Cetárias de Faro:

Na zona da baixa de Faro (18) foram encontradas 3 cetárias, destruídas pela construção civil na área da Avenida da República e a Travessa da Madalena (Rosa, 1984: 152). 

§ 21 Conjunto de Cetárias de Olhão:

Na doca de Olhão (19) a obra do porto de abrigo, junto à antiga fábrica Fialho destruiu duas cetárias. Foi constatado que o grupo original contava com 7 ou 8 cetárias (Edmonson, 1987: 260). 

A Quinta de Marim (20) é um sítio polémico, com múltiplas interpretações para a sua classificação. O povoamento possui três núcleos, estabelecidos ao longo de um paleo-estuário: área portuária, villa e fábrica de salga. O complexo produtor de preparados de peixe e processamento de púrpura, ao sul das ruínas da villa, pode ter-se desenvolvido em articulação com as atividades portuárias e agrícolas. 

São 6 cetárias, orientadas em duas fileiras separadas por um corredor, além de um forno de cal. As cetárias foram construídas no século II e abandonadas no século III, servindo de lixeira até o último quartel do século IV (Medeiros, 2014-2015: 132), embora Edmonson proponha que o seu abandono tenha ocorrido no século V (1987: 260). 

Figura 21: Planta e perfis esquemáticos das cetárias descobertas na doca de Olhão (segundo Iría, 1950); apud Medeiros, 2014-2015, fig.31. 

Figura 21a: Planta das cetárias e armazéns da Quinta de Marim, em Olhão (adaptado de Silva et al., 1992); apud Medeiros, 2014- 2015, fig.32. 

§ 22 Conjunto de Cetárias de Tavira:

Próximo do cais de Balsa, na Praia de Pedras d’El Rei (21) há uma referência a uma villa onde existiria um forno e cetárias (Viegas, 2009). Além disso, dentro do território de Balsa (22) há duas oficinas identificadas. Uma na Torre d’Aires e outra junto à foz da Ribeira das Antas, acompanhando o paredão do cais, na margem esquerda e com parte de suas cetárias submersas (Medeiros, 2014-2015:134). 

Figura 22: Planta da fábrica de Torre d’Aires em 1977 (segundo Silva, 2007); apud Medeiros, 2014-2015, fig.32. 

§ 23 Conjunto de Cetárias de Vila Real de Santo António:

Talvez os vestígios encontrados na Quinta do Muro (23) e em Cacela (24) integrassem o mesmo complexo produtor. Em Cacela Velha foram encontrados 3 tanques de salga mal conservados e recobertos de signinum. A erosão causou o desaparecimento desses tanques, avistados no século XIX e desaparecidos no século XX. Não há informações capazes de confirmar os achados de Quinta do Muro; apenas relatórios antigos e sem referências precisas de sua localização. 

Figura 23: Quinta do Muro e Cacela (Fabião, 2017d). 

§24 Conjunto de Cetárias de São Bartolomeu de Castro Marim26:

Em 1965 um complexo “industrial” foi descoberto em Praia Verde, em consequência da ação de marés vivas. Fabião (2008) comenta que um forno e as cetárias ali existentes já eram conhecidas há um século. O sítio teria sido ocupado entre os séculos III e IV e reocupado posteriormente, na Idade Média. 

26 Esse conjunto não está descrito pelo mapa apresentado por Viegas, 2011, fig.63 (apud Bombico, 2012: 123).  

CAPÍTULO III – PERSPETIVAS DE UMA DINÂMICA ECONÓMICA

Desde o século XIX a academia ocupa-se de compreender o modelo económico antigo. Duas grandes correntes formaram-se em decorrência desse debate. A chamada corrente “Clássica” era influenciada pelo modelo económico proposto por Adam Smith (séc. XVIII) e estabelecia que toda e qualquer atividade económica desenvolvida em época anterior ao estabelecimento do mercantilismo moderno era classificada como “não-capitalista” (Carreras Monfort, 2000: 22). 

A segunda corrente, dita “Histórica” era fundamentada por diversos teóricos alemães do século XIX e argumentava que variáveis geográficas e cronológicas tinham de ser levadas em consideração. Propunha-se ainda uma diferenciação entre “economia doméstica” e “economia mundial” (Carreras Monfort, 2000: 23). 

O debate prosseguiu pelo século XX, agora influenciado pelas obras de Sombart e Weber, que discutiam o papel desempenhado pela relação entre campo e cidade na economia antiga (Bruhns, 1985: 259). 

Em linhas gerais, Sombart estabeleceu a premissa de que as cidades eram centros consumidores por excelência. A cidade, enquanto centro de consumo e comércio, apresentava-se como antítese do campo, que era compelido a sustentar a população urbana mediante tributação sobre a sua produção, estimulando a criação sistemática de excedentes (Bruhns, 1985: 259). 

Weber tentou dialogar com a dicotomia entre as abordagens “Clássica” e “Histórica”. O seu modelo propõe que havia um modelo particular de economia de mercado no mundo antigo, pontual a certos períodos e regiões. Todavia, esse modelo antigo não deveria ser entendido como um espécie de “pré-capitalismo contemporâneo. Assim, a economia romana seria “não-capitalista” no sentido de não possuir estruturas sociais, políticas e económicas bem desenvolvidas” (Carreras Monfort, 2000: 24). 

O conflito entre as teorias de Sombart e Weber são mais claramente percebidas no tocante ao suposto antagonismo entre campo e cidade. As cidades também eram centros de produção, embora em menor escala. Além disso, a demanda criada pela cidade poderia ser suprida pelo campo em comum-acordo (Bruhns, 1985: 262). 

Ao longo do século XX duas grandes correntes desenvolverão essas duas abordagens teóricas, acrescentando ao debate a definição do conceito de mercado e o papel da agricultura e comércio na sociedade romana. 

Rostovtzeff, fundador da corrente dita “Moderna”, propôs uma perceção evolucionista da economia romana. Segundo esse abordagem, a economia romana experimentava os primeiros passos rumo à uma economia capitalista de facto. O mercado seria então perfeitamente abrangente e interdependente, tendo o comércio de longa-distância recebido financiamento de elites privadas compostas por uma espécie de “classe média” de comerciantes e artesãos. O comércio anfórico e de terra sigillata seriam amostras da vitalidade dessa iniciativa privada (Rostovtzeff, 1926). 

Finley, fundador da corrente dita “Primitiva” tenta aprofundar a teoria weberiana e concorda com a definição da cidade como um centro de consumo. Todavia inova ao propor a existência não de um mercado único, mas sim uma rede de pequenos mercados locais e autónomos. O comércio de longo-curso era entendido então como algo dispendioso demais e inviabilizado também pelo baixo poder aquisitivo da plebe urbana (Finley, 1973). 

A escola gramsciana italiana tentou promover um diálogo com as premissas dessas duas correntes. Uma análise do modo de produção escravo derruba a visão primitivista que trata a economia pré-capitalista como “irracional”. O império romano apresenta uma clara evolução do modelo de produção: o formato familiar, com o predomínio de pequenas estruturas produtivas agrícolas artesanais dá lugar a um sistema largamente esclavagista conforme cresce o império. Essa economia também estava suscetível a aplicação de conceitos operativos, como “crescimento económico” e “crise” (Molina Vidal, 1997: 60). 

Recentemente, autores de uma historiografia maioritariamente anglófona aperfeiçoaram a teoria de Finley. O debate foi atualizado pela abordagem de questões referentes aos mecanismos de distribuição e reciprocidade fortemente controlados pelo Estado. Autores como Hopkins, Nicolet e Duncan-Jones combinam elementos das correntes “Moderna” e “Primitivista” e estabelecem que a economia romana era uma economia de mercado , embora mais simples do que a contraparte moderna. Esse debate estabeleceu consensualmente que a economia romana era regional e organizada em micro-circuitos locais (De Blois, Pleket, Rich, 2002: xii). 

Compreende-se que a economia de mercado romana possuía mecanismos de controlo de preços pelo Estado. Indícios desse controlo podem ser identificados através do apelo de Tibério ao senado para que os preços do mercado fossem controlados (Carreras Monfort 2000: 38); ou através do Édito de Domiciano, que obrigou as províncias a arrancarem a metade das suas vinhas e comprometeu a Itália a não plantar mais nenhuma. Tratam-se de medidas claramente protecionistas (Pereira Menaut, 1987). 

Finley (1973) propõe que a economia romana seria totalmente baseada num modelo rural, centrada em pequenos centros metropolitanos e compartimentada em regiões. Segundo esse paradigma, o campo provia as necessidades da cidade mais próxima. O circuito comercial seria, portanto, restrito às necessidades regionais. Como então explicar a realidade das exportações? 

Segundo uma abordagem primitivista, os proprietários de terras não concebiam o lucro como o principal motivador dos seus empreendimentos. Desse modo, as suas vendas não observariam flutuações de preços de mercado na esfera regional, nem havia a preocupação de maximizar o lucro nos esforços de longo-prazo. 

A visão primitivista estabelecia ainda que um empreendimento como o transporte e o comércio de longa-distância tenderia a ser inequivocamente atribuído à iniciativa estatal, visando a movimentação de bens das províncias para a capital imperial. Logo, a articulação do Estado com a sociedade ocorria através da mediação de mecanismos como a tributação e serviços públicos. Essa taxação pública podia ser realizada em dinheiro ou espécie, através das requisições feitas para o aprovisionamento regular da cidade de Roma (annona civilis) ou de guarnições e frota naval (annona militaris). 

Por outro lado, sabe-se que existiam empreendedores privados, seguramente. Vinho e preparados de peixe eram essencialmente cargas privadas, ao passo que cereais, azeite e o vinho africano de finais do século III, IV e V, seriam cargas públicas. 

O Estado então agia como agente redistribuidor de bens e alimentos, seja para os cidadãos de Roma (annona civilis) ou para o abastecimento de tropas estacionadas em fronteiras e limens (annona militaris). Embora a atividade do Preaefectus Annonae só esteja bem documentada a partir do séc. III, o cargo foi estabelecido por Augusto entre os anos 8 – 14 d.C., o que justifica a grande concentração de ânforas olearias da Bética em Roma nos séculos I, II e III (Carreras Monfort, 2000: 217). 

III. 1. A “Conectividade” Regional e o Comércio de Longa-Distância

O modelo tradicional de Finley não nega a conexão entre núcleos consumidores/comerciais e regiões e povoações vizinhas. Normalmente, no ocidente do império, os maiores centros urbanos provinciais dificilmente ultrapassavam a média de 10-20 mil habitantes. Sabe-se que o comércio local era praticado de forma livre e organizado em deambulatores, ou seja, tabernae, nundinae e macella (Quaresma, 2003 :19). 

A corrente primitivista admite que naqueles centros haveria um comércio voltado para suprir a demanda local e também obter lucro a longo-prazo. Por outro lado, os centros populacionais menores estariam restritos à obtenção do sustento no seu próprio entorno. 

A coesão do império era promovida pela administração, mas não se pode afirmar a existência de uma integração económica entre as províncias, segundo a proposta defendida por Finley de “mercados inter-dependentes”, uma vez que não há comprovação de um fluxo regular de bens de consumo e de luxo entre as províncias (De Blois, Pleket, Rich, 2002: xiii). 

No lugar desse modelo, propõe-se a existência de economias “micro-regionais”, ou seja, economias locais com alguma abertura pontual de “conectividade” (Horden, Purcel: 2000). Segundo esse “modelo”, as micro-economias possuem ritmo e estrutura próprias e estão, a priori, voltadas para o atendimento de necessidades locais. Apenas em momentos específicos esses mercados encontram uma demanda maior para os seus bens, e daí ocorreria uma conexão entre as respetivas regiões. 

Pode-se afirmar, como uma regra geral, que o comércio inter-regional não era uma prioridade ou que constituiria mesmo numa atividade relevante. O comércio inter-regional seria consequência da intervenção administrativa romana, voltada para o abastecimento estratégico, mas também articulado com alguma iniciativa privada. Uma exceção óbvia a essa regra geral são os grandes centros urbanos e comerciais orientais, como, por exemplo, Tiro, Biblos e Hierápolis. Aqueles grandes produtores de têxteis de luxo não precisavam de incentivos estatais para produzirem em vastíssima quantidade, nem para escoarem a sua produção por todo o império. 

Todavia, a arqueologia demonstra que as províncias experimentavam realidades distintas. A Lusitânia e a Bética, tal como a Síria, partilhavam de uma cultura romana imperial comum. Aquelas províncias possuíam toda uma estrutura comum de edifícios públicos, estradas pavimentadas, altares para o culto imperial e a cultura greco-romana era, grosso modo, valorizada pelas elites provinciais. Mesmo assim, as suas realidades de conectividade regional constituem universos diferentes. 

Ainda não existem fontes suficientes para uma análise quantitativa e qualitativa da importância do comércio regional no cenário da atividade económica de longa-distância. Áreas como a Bética-Roma-Gália possuíam um comércio regional regular. A questão do aprovisionamento das legiões estacionadas no limens germanicus demandava o fluxo constante de alimentos e de bens. A demanda externa favoreceu o desenvolvimento de toda uma estrutura logística para facilitar os transportes de longa-distância nesse circuito de “conectividade”. 

De faco, o sul da Hispânia tornou-se num grande polo de desenvolvimento económico ao combinar características de sistemas de conectividade comercial local, regional e de longa-distância. Neste sentido, o caso da Bética é emblemático para o ocidente do império, posto que o seu desenvolvimento estava diretamente vinculado ao abastecimento anonário de Roma e das forças armadas. 

A prosperidade dessas “áreas de alimentação” (Hopkins: 1995-1996: 58, 60, 63; Pleket, 1998: 61) de Roma também deriva do facto de que o transporte de carga anonária era um serviço subvencionado pelo Estado. Roma e o seu poderio militar eram grandes consumidores dos bens e alimentos enviados pelos governadores provinciais. Porém, comerciantes livres também eram atraídos para a cidade e navios anonários também podiam transportar esses passageiros independentes e/ou a sua carga. 

Há referências epigráficas de que domini privados também poderiam assumir a tarefa de distribuição da sua própria produção (Digesta VIII, 4. 13), mas a estrutura logística de produção e distribuição por todo o império exigia a coparticipação de

negotiatores ou navicularii que podiam, ou não, também ser produtores. Daí assume-se que corporações controlavam, hegemónicas, a função de distribuição dos produtos lançados nos circuitos comerciais de longa-distância (Garcia Vargas, 2006: 543ff; Bernardes, 2015: 61). 

Aparentemente, as ânforas lusitanas alcançam o porto sírio de Beirute entre os séculos II e IV. Nos séculos III e IV, tal como as béticas, elas possuem uma presença menor, havendo, contudo, algum destaque para as ânforas de tipo Keay XVI (Tab. 3). Segue-se, aparentemente, o processo de declínio e desaparecimento das ânforas lusitanas daquele mercado, no século V. 

Digo “aparentemente”, porque há uma falha na argumentação dominante entre autores anglófonos no tocante à incapacidade de distinção entre ânforas produzidas na Bética e as lusitanas (Quaresma, 2012: 294). De facto, as ânforas lusitanas “aparentemente” desaparecem do mercado mediterrâneo oriental a partir de meados do século III, embora uma produção de origem bética continue a ser diagnosticada até o início do século V (Reynolds, 2010: 42). 

Bernardes (2015: 61) sugere que a atividade itinerante dos mercatores béticos pode estar relacionada com o fenómeno de dispersão de ânforas béticas (tipo Keay XVI) em grande quantidade nos centros produtores lusitanos de Troia (Figs. 12 – 12ª), Ilha do Pessegueiro (Fig. 15) e Quinta de Marim (Figs. 21 – 21ª). Seria correto então propor que as ânforas béticas (Beltrán II e Keay XVI) poderiam levar também os preparados de peixe lusitanos. 

De facto, o naufrágio de Cabrera III (257 d.C.) possui ânforas piscícolas béticas com a inscrição IVNIORVN, que também pode ser atestada em Quinta de Marim (Silva et. al., 1992; Bernardes, 2015: 61). Portanto, há uma possibilidade de que parte da produção bética tenha origem na Lusitânia (Mayet, Schmitt, Silva, 1996; Mayet, Schmitt, 1997; Étienne, Mayet, 2002: 104). 

III. 1. 1. Sobre a Logística da Produção Lusitana

Na Lusitânia, a data estimada para o princípio da produção de preparados de peixe é o segundo quartel do século I d.C., tendo as suas primeiras oficinas implantadas nos estuários do Tejo e do Sado. A organização das primeiras unidades de produção orbitava um centro urbano-portuário como sede administrativa (Salacia e Caetobriga no Sado; Olisipo, no Tejo). 

A produção dos preparados de peixe terá ocorrido em dois momentos distintos, com grandezas e estratégias económicas específicas. Num primeiro momento, existiram pequenas unidades produtoras. Essas unidades recorriam a olarias locais para o envase e transporte de sua produção (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1987: 236-237). Posteriormente, com o aumento da produção, foi preciso mover as olarias para o interior dos estuários (Fabião, 2009: 570). 

Embora as grandes áreas dos estuários do Tejo e do Sado produzissem contentores para o envase e transporte da sua produção, essa realidade não se verificava no litoral algarvio, que recorria à importação de ânforas béticas para complementar a logística das suas olarias. Há, portanto, realidades sociais e económicas distintas e modelos distintos de exploração implementados concomitantemente (Fabião, 2009: 570). 

Nesse aspecto, o que se deteta no Algarve é uma realidade distinta, onde não se obteve ainda um grau de exploração satisfatório do seu potencial arqueológico. Muitos dos centros hipotéticos propostos no litoral algarvio (Tab. 2) sugerem que o sul da província teria exercido um papel mais relevante do que aquele que se lhe atribui atualmente. Sabe-se que a grande área do litoral algarvio ganhou maior notoriedade nos séculos III – V, no seguimento do declínio da produção bética. 

Na grande área do litoral algarvio, as numerosas villae que teriam explorado recursos marítimos em pequena escala constituem ainda um trabalho em progresso, carecendo de informações em quantidades capazes de enriquecer o debate. Para agravar o quadro, a erosão costeira destruiu uma porção considerável dos centros produtores do litoral algarvio. 

Há uma questão polémica a respeito da exploração de produtos à base de peixe por centros rurais lusitanos. Um quadro de integração de rotas terrestres e fluviais já foi proposto por Edmonson (1987), sugerindo a existência de um modelo rural de exploração dos recursos marinhos, onde enclaves rurais, inspirados no modelo de produção das villae complementavam a sua produção agrícola com a exploração de recursos marítimos. 

A proposta desse sistema presumia a existência de algum suporte logístico mútuo entre os enclaves rurais e os centros urbanos. Fabião (1993-1994, 1994) refuta essa hipótese enquanto não se conhecer plenamente toda a logística terrestre e marítima da província. 

Contudo, Blot (2003) demonstrou a existência de pequenos centros portuários lusitanos, como Cerro de Vila (Loulé), que podem proporcionar pontos de comunicação entre o interior e o litoral. Porém, a existência (ainda que pontual) de centros produtores de preparados de peixe inspirados no modelo de exploração rural das villae não equivale a determinar o seu impacto e relevância na economia da província. Entretanto, a proposta de Edmonson pode ser revisitada à luz dos novos dados arqueológicos disponíveis e retornar à pauta académica para o debate. 

Atualmente, a realidade lusitana informa pouco a respeito da logística da produção lusitana, isto é: o perfil da mão-de-obra empregada, da organização do trabalho, ou mesmo da periodicidade e ritmos da pesca e navegações, que se supõem sazonais (Fabião, 2009b: 559). 

Blázquez observa que o sistema de construção de depósitos das oficinas da Bética assemelha-se ao modelo adotado em Lixus, no litoral marroquino (1978: 187). Entretanto, há paralelos possíveis de serem explorados entre a Bética e o modelo adotado no extremo sul da Lusitânia. 

Na Bética, sabe-se que os centros produtores situados em villae eram servidos por uma rede de navegação fluvial que escoava a importante produção agrícola. Bernal Casasola (2009) observa que na Bética os centros urbanos recebiam suporte logístico de núcleos semi-urbanos periféricos. Villae similares a Cerro de Vila, com áreas residenciais decoradas artisticamente, e contando com embarcadouros, termas, necrópoles e áreas “industriais” servidas por aquedutos estão presentes na costa mediterrânea de Málaga (Manilva, Bem Almádena, Fuengirola, Torrox), na parte oriental da província. Na parte ocidental o quadro repete-se em Getares (Algeciras), Trafalgar (Barbate) e Chipiona; que podiam exercer apoio logístico aos seus respetivos centros urbanos de Gades, Onoba e Balsa. 

Blázquez (1978: 157) descreve como a administração romana criara ali uma rede de estações portuárias no Guadalquivir, suprindo villae, olarias (fabricantes de ânforas) e as cidades de Brenes (porto próximo a Illipa Magna), Tociña (Portus Oduciensis), Guadajoz (Portus Carmonensis) e Palure. 

O volume de ânforas dispersas na beira do Guadalquivir sugere que existiam ainda muitos portos secundários na área. Além disso, as olarias eram servidas de caminhos terrestres diversos, que sempre convergiam para o rio. Blásquez observa que a rica variedade de marcas de produtores nas ânforas de azeite aponta para uma independência entre os centros oleiros e os proprietários rurais (Blásquez, 1978: 158). 

Étienne e Le Roux sugerem que o grande número de nomes (posição beta dos tituli picti) diferentes identificando as ânforas de azeite bético implicam num grande número de distribuidores e, consequentemente, apontaria para um modelo de exploração familiar. Nesse caso, os nomes indicariam proprietários rurais para a execução das cobranças aduaneiras de taxação (1972: 622ff.). 

Por fim, Blásquez (1978: 158) observa um padrão de integração de vias fluviais e terrestres, conectando os rios Genil e Guadalquivir à Via Augusta, formando um corredor para Hispalis e conectando os três conventus. Ponsich (1974: 280ff.) já havia proposto que a economia agrária regional e as relações entre os conventes de Hispalis, Astigi e Corduba dependiam das rotas fluviais da província. 

Além dos possíveis paralelos existentes na logística do escoamento da produção e da comunicação entre as suas regiões, a Bética e a Lusitânia também partilham de semelhanças na organização e arquitetura das oficinas de transformação de peixe. Ponsich (1971: 238, 258ff., 282ff., 287, 290ff.) defende que a Bética exercia uma influência económica sobre o litoral atlântico marroquino e o litoral sul algarvio. 

Haveria então uma continuidade ou restauração do chamado “Círculo del Estrecho” durante o período imperial romano. O autor demonstrou que as elites mauritanas favoreciam os produtos béticos, como a terra sigillata, o azeite e o garum gaditano. Blásquez afirma que todas as oficinas do Estreito, sejam béticas ou mauritanas, estavam alinhadas numa grande corporação controlada por gaditanos (1978: 177-178). 

Terá então existido uma societas (no sentido de organização empresarial totalmente privada) bética-mauritana para a exploração de recursos, incluindo o garum? Haveria uma centralização dos produtos nas mãos de socii (societates)? Como essa estrutura afetaria a logística da produção lusitana? 

A tendência geral para a redução das dimensões dos tanques do Baixo Império na Hispânia, bem como a gradual preferência por peixes de menores dimensões, implicam ainda na transformação do modelo socioeconómico da exploração dos preparados de peixe, desde a sua captura ao processamento dos produtos. 

Ainda não se chegou a um consenso acerca do fenómeno de estreitamento dos bordos de alguns tipos anfóricos tardios (Alm. 51c e 51 a-b) a partir do século III. Assume-se, em linhas gerais, que este fenómeno possa ter como motivador principal a tipologia predominante do produto envasado (Garcia Vargas, 2006: 537 – 539; Garcia Vargas, Bernal Casasola, 2009:143 -144). 

III. 2. Transformações Económicas e a Produção dos Preparados de Peixe Lusitanos

Infelizmente, dispomos de poucos dados arqueológicos acerca da primeira fase da produção dos preparados de peixe na Lusitânia, uma vez que, as estratigrafias pré-Cláudias (fases I e II) são, geralmente, “palimpsestadas” pela segunda fase. O período denominado Pax Romana, de 27 a.C. a 180 d.C., foi particularmente favorável ao desenvolvimento económico e ao reforço da romanização das províncias. Sabe-se que entre os séculos I e II o hallec, produto mais líquido, tende a substituir o garum, mais encorpado, em popularidade. Uma consequência da vulgarização do consumo dos preparados de peixe pelo império (Bernardes, 2015: 57). 

Segundo Duncan-Jones (1974) o período que compreende os séculos I e II teria testemunhado um forte crescimento do comércio inter-regional, estimulado primariamente pela intervenção estatal (taxações). Hopkins (1980) observa como os impostos em dinheiro teriam possibilitado a criação de redes comerciais complexas até o ano 200 d.C., uma vez que as províncias taxadas eram obrigadas a pagar as suas taxas devidas em moeda e espécie, sobretudo cereais e azeite (annona). 

Entretanto, a conjuntura da economia do século II são marcadas por elementos sinalizadores de crise, como a desvalorização monetária iniciada em ca. 100 d.C., e a quebra demográfica provocada pela chamada “Praga de Antonino” (ca. 165-180 d.C.) (Quaresma, 2012). 

Uma análise estratigráfica demonstra que produção de preparados de peixe diminuiu no final do século II. Em meados do século II há indícios de uma recessão em curso, que afetará a produção dos preparados de peixe. No vale do Gadalquivir ocorre nessa época a retração de áreas portuárias e artesanais. Em Hispalis, esses espaços são convertidos em núcleos habitacionais (Garcia Vargas, 2007: 353). 

Na Lusitania, na grande área da Costa Alentejana, a unidade de produção da Ilha do Pessegueiro apresenta na sua estratigrafia (cortes A, C e D’) indícios de que a crise já surtia efeito no terceiro quartel do século II, mantendo-se letárgico até meados do século III (Tavares da Silva, Soares, 1993). Em Pinheiro, é possível que as incursões dos Mauri tenham atuado como agravante para o declínio da produção (Mayet, Silva, 1998). 

Aparentemente, o comércio fluiu sem complicações até ca. 250 d.C., quando então se deteta uma fase de recessão que duraria até ca. 300 d.C. Entre 270-275 d.C. seguem-se alterações no sistema monetário. O antoninianus substitui o denarius como moeda forte (de referência) e a sua sobre-emissão provoca um rápido processo de desvalorização (Jones, 1953: 196). Essa inflação pode ser percebida através da documentação sobre a subida dos preços da terra e do trigo (Tab. 4). Os preços da terra parecem estáveis até o século III. Por outro lado, se em 260 d.C. os preços subiram 4,5% em relação aos praticados nos tempos de Augusto, entre 260 e 301 d.C. eles disparam cerca de 100 vezes no Egito. Entre 301 e ca.338 d.C. eles sobem ainda 5 mil vezes, num claro indicativo de hiperinflação. 

A segunda metade do século III foi marcada por uma inflação aparentemente provocada pela alta do preço do trigo. Nesse contexto de crise económica, Aureliano decreta (S.H.A., Aurelianus, 35.2; 48.1) a distribuição gratuita de 5 libras de carne de porco e vinho barato para os cidadãos de Roma (Reynolds, 1995: 107). Por volta do ano 250 d.C. a estrutura da annona sofreu transformações, com a transferência de competências do Praefectus Annonae para os prefeitos pretorianos (Garcia Vargas, 1998: 247). 

Esse quadro de crise tem continuidade ao longo da primeira metade do século IV. Diocleciano lançou uma série de medidas de longo-prazo para superar a crise económica. Sob a Tetrarquia foi promovida uma reorganização das 47 províncias, redefinidas em 100 novas unidades administrativas, renovando a rede viária e a logística comercial (Pieri, 2005: 146). 

O Édito de Preços de Diocleciano, de 301 d.C. visava controlar os valores de mercado e tabelar preços. O Édito inclui os preparados de peixe (liquamen) no capítulo relativo aos olei, juntamente com o mel e o sal (Tab.5). 

Há uma problematização interessante sobre essa temática. Quaresma (2012) questiona sobre a possibilidade de um enquadramento jurídico do liquamen na categoria dos óleos um indício da reformulação anonária. O liquamen terá sido incluído na categoria de bens de distribuição estatal? 

O emprego do termo “liquamen” pelo Édito de Diocleciano é um indicativo da proeminência dos subprodutos de natureza líquida, mais baratos. O liquamen tinha um preço mínimo relativamente baixo, variando entre 12 e 16 denarii, o que o tornava um produto competitivo nos mercados de maior qualidade. O aumento da demanda pode estar relacionado ao aumento da popularidade dos peixes menores, mais baratos (Quaresma, 2012: 276). 

Durante o Baixo Império, observa-se uma tendência na Hispânia no sentido de substituírem as salgas de atum, matéria-prima escassa já no século I, por peixes menores. As informações obtidas a partir de análises laboratoriais fornecem dados imprescindíveis para a compreensão das técnicas de conserva da antiguidade. Na península Ibérica (Garcia Vargas, Bernal Casasola, 2009) indicam que a produção dos preparados de peixe incluía uma vasta gama de produtos, desde o valorizado atum, em pedaços, até as mais simples clupeidae (incluindo a sardinha, a sardinela e a anchova) e as sparidae (incluindo a dourada e o pargo). 

Cabe ressaltar que foram identificados restos de espinhas de sardinhas em diversas ânforas lusitanas provenientes de naufrágios no Mediterrâneo, como em Rendello (Sicília), Catalans (Marselha) e Sud-Lavezzi (Córsega) (Étienne, Mayet, 2002: 202-207). 

De facto, a sardinha é o principal componente dos vestígios analisados nos tanques de salga das oficinas lusitanas, nos contextos romanos dos séculos III – V d.C.: “Casa do Governador” (Figs. 5 – 6), “Rua dos Correeiros” (Fig. 2), “Mandarim Chinês” (Fig. 2), além das oficinas I e II de Troia (Figs. 12 – 12ª), “Travessa do Frei Gaspar” (Fig. 8ª), “Ilha do Pessegueiro” (Fig. 15) e a “Quinta de Marim” (Figs. 21 – 21ª), em Olhão (Tavares da Silva, Soares, 1993; Desse-Berset, Desse, 2000; Assis, Amaro, 2006). 

Segundo Reynolds (2010: 40), é possível que a produção ibérica se tenha voltado para a salga de peixes menores durante a fase final da administração romana, incluindo a Antiguidade Tardia. Para o autor, os grandes peixes em posta, ou mesmo inteiros, consistiriam numa produção exclusiva do Alto Império. Bombico (2017: 131) contesta essa posição argumentando que no Baixo Império ainda se produzem ânforas de bocas largas e corpo troncocónicos (Almagro 50 e Keay XVI e Sado 1 = Keay LXXVIII, no caso da Lusitânia), o que sugere uma continuidade de transporte de peixe inteiro. 

Apesar do Édito de Diocleciano ter sido revogado por Constantino, este deu continuidade à política anterior de contenção de gastos do erário público (Pirei, 2005: 147). Sob o seu principado, aumentou o controlo estatal sobre o mercado e o tráfego comercial. A atividade dos corpora naviculariorum torna-se rei publicae causa. Eles passam a ser mais integrados, mas ainda desfrutam de imunidade, em continuidade com a política de privilégios conferidos pelos Severos (Perea Yébenes, 2003: 85). 

Em 331- 333 d.C. os prefeitos pretorianos passam a controlar a circulação anonária, ao passo que a sua distribuição é delegada ao Praefectus Urbs. A prefeitura anonária também perde a sua autonomia financeira (Perea Yébenes, 2003: 93 – 94).  

No século IV as ânforas béticas e lusitanas do tipo Almagro 50 estão presentes na Itália; as Almagro 51, são encontradas na Sardenha até o século V (Garcia Vargas, 1998: 249). A partir do início do século V a retração do comércio de longa-distância dos preparados de peixe béticos e lusitanos pode ser verificada pelos dados anfóricos em diversos pontos do Mediterrâneo (Reynolds, 2005: 385), tal como verificado no caso de Beirute (Tab. 3). 

Em Arles e Narbonne os preparados de peixe béticos e lusitanos estão presentes em quantidades equivalentes. Contudo, em Hispalis, na própria Bética, os preparados de peixe lusitanos correspondem a cerca de 50% das importações (Reynolds, 2005: 385; Garcia Vargas, 2007; Quaresma, 2012: 295, 394). 

A partir da segunda metade do século V muitos centros produtores de preparados de peixe são encerrados ou drasticamente reduzidos na Lusitânia. Também se detecta um decréscimo significativo na importação de terra sigillata em várias cidades (Quaresma, 2012: 276). Centros urbanos, como Ammaia e Chãos Salgados, e grandes villae, como São Cucufate, encerram a sua ocupação aproximadamente nessa época. 

Possivelmente, o avanço meridional dos suevos durante a década de 420 d.C pode ter exercido uma influência significativa sobre esse fenómeno. O último vicarius hispaniae, Maurocello, foi nomeado em 418 d.C., mas já não há qualquer menção a ele após 420 d.C., o que sugere um enfraquecimento da autoridade imperial na região (Diaz, 1992-1993: 298-300). 

Há alguns indícios arqueológicos (armazéns Sommer) de que a margem esquerda do Tejo ainda produziu ânforas piscícolas em quantidades tímidas até inícios do século VI (Quaresma, 2012: 297). Sabe-se que o complexo da Casa do Governador, que tinha originalmente 17 cetárias manteve-se em funcionamento precário até o final do século V, com apenas 2 tanques funcionais (Filipe, Fabião: 2006-2007). 

Um abandono sistemático de cetárias ocorre em Lisboa entre o final do século V e o início do século VI (Assis, Amaro, 2006), Setúbal, Troia e Quinta de Marim (Desse-Berset, Desse, 2000: 86-91). 

No estuário do Sado, em Comenda, a produção anfórica piscícola foi encerrada no primeiro terço do século VI, havendo ainda algum material escasso na área até a metade do século VI (Trindade, Diogo, 1996: 8). 

A instabilidade regional provocada pelas guerras suevo-visigóticas podem ter contribuído de forma determinante para a interrupção da produção nas grandes áreas dos estuários do Tejo e do Sado. Olisipo foi conquistada pelos suevos em 429 d.C., e pelos visigodos em 440 d.C., seguida por uma rápida troca de mãos entre 455 e 469 d.C., ficando a cidade, finalmente sob o domínio visigodo (Tranoy, 1974: 246; Diaz, 1993-1994). 

Contrariamente, a grande área do Algarve tem a continuação da sua produção atestada até inícios do século VI (Lagos, Travessa Silva Lopes) e, possivelmente, também em Cerro de Vila 27 (Diogo, 2001: 110; Ramos, Almeida, Laço, 2006: 93). 

27 A presença de materiais de século VI ou mesmo VII, estão associados a níveis de circulação posteriores ao abandono, cujos dados não ultrapassam os in do V.  

Oficialmente, estipula-se que a produção dos preparados lusitanos teve fim na primeira metade do século V. Todavia, o Algarve permaneceu produtivo, ainda que sob uma nova reconfiguração comercial e logística, até inícios do século VI (Lagos). 

Em um determinado momento, entre os séculos V e VI, os centros produtores já não se articulavam de modo eficiente com os seus meios de distribuição. A redução da capacidade produtiva provocou o abandono de cetárias e, consequentemente, os centros produtores ainda ativos no início da Antiguidade Tardia sofreram uma queda significativa da sua atividade, tal como se constata tanto em Lagos, na Lusitânia (Ramos, Almeida, Laço, 2006) como em Algeciras, na Bética (Bernal Casasola, 2008). 

O desaparecimento de villae e centros urbanos impactou o mercado consumidor de preparados de peixe, que precisou se reajustar para uma demanda drasticamente menor. O século VI oferece testemunhos literários indiretos da reminiscência de um comércio importador de preparados de peixe. 

Em De observatione ciborum, Anthimus, o médico bizantino da corte do rei Teodorico, proíbe o consumo de liquamen. Na Historia Francorum, o bispo Gregório de Tours atesta a continuidade das importações de liquamen através do porto de Marselha (IV, 43) (Curtis, 1991: 184-185). 

Contudo, o declínio da produção dos preparados de peixe também reflete um importante aspeto cultural, característico da transformação do mundo mediterrâneo num mundo germânico. A salga de peixe e os molhos derivados desse processo tinham por objetivo a conservação do peixe e a substituição do uso do sal na culinária. A tradição germânica conservava o peixe seco ou fumado e utilizava o sal diretamente no preparo dos alimentos. 

Além disso, há uma componente religiosa envolvida no processo de transformação cultural ocorrida na Antiguidade Tardia, de orientação cristã. São Pacómio (séc. IV) e São Jerônimo (séc. V) associam os preparados de peixe à gula, e condenam o seu consumo nos feriados religiosos e outros períodos de abstinência. Por outro lado, o peixe salgado ou seco não sofre essa interdição alimentar (Curtis, 1991: 35, n.29, 136, n.120; Bernardes, 2015: 64). 

Neste sentido é importante ter em mente que desde finais do século II existiu uma guerra intelectual e ideológica entre pensadores do mundo cristão e as chamadas “heresias pagãs”, tais como os cultos a Mitra, Isis e Cibele. Clemente de Alexandria, em suas “Exortações aos Gregos” (II, 20p) estabelece uma antítese moral entre “Grego” e “Cristão” que é prontamente reproduzida pela elite intelectual cristã. 

Essa interdição religiosa contra o liquamen reflete perfeitamente essa aversão cristã ao alegado escandaloso modus vivendi pagão, sistematicamente atacado pela patrística até o final do século V (Gurgel Pereira, 2011: 150, n. 348-349). 

Logo, a transição cultural do mundo mediterrâneo para um mundo germânico (romanizado) e mais intensamente cristão não pode ser reduzida simplesmente a uma traumática conquista militar “bárbara”. 

Há todo um lento processo de transformações comportamentais que incluíam os hábitos gastronómicos e que são variáveis importantes na compreensão da fase final da produção dos preparados de peixe. 

III. 3. (Re-)Organização Urbana e de Centros de Produção

Na Hispânia ocorreu um processo de modificação arquitetónica radical entre o período Clássico e a Antiguidade Tardia. Processos graduais de transformação, combinados com inovações súbitas caracterizam o urbanismo hispânico nessa época. 

Todavia, há ainda pouca informação arqueológica para analisar o processo de nova conceptualização do espaço urbano durante essa transição para o mundo medieval. Em linhas gerais, a concentração populacional da cidade diminui. A desestruturação urbana pode ser notada, mas há diferentes possibilidades para explicá-la. 

Tanto o abandono como a transformação urbanística ocorrem por toda a península. 

Na província da Tarraconensis, Baetulo fora construída no século I a.C., experimentou uma fase de prosperidade comercial, graças à integração às rotas mediterrâneas e à produção vinícola (Comas et al., 1994). Porém, no século II d.C. a cidade já apresenta o abandono de algumas ruas e o colapso do seu sistema de coletores públicos, embora a cidade tenha permanecido habitada até o final do século IV d.C. (Padrós Martí, 1999). 

Se em Baetulo ocorre uma readaptação urbanística, surge uma nova em Emporiae, onde ocorrera, no século II, um processo de reassentamento populacional. Carthago Nova apresenta o abandono de edifícios públicos já no século II (Ramallo Asensio, 2000: 587-591). Tarraco experimentou o abandono de população intramuros, e de uma parte considerável das suas domes, entre os séculos III-IV (Marcias Solé, 2000: 261). 

Embora o fenómeno de abandono ou reconfiguração urbanística possa ser diagnosticado precocemente, ainda no século II, é durante o século IV que esse processo terá maior intensidade. 

Emerita Augusta, a capital lusitana, terá uma ocupação privada dos seus pórticos ao longo da Antiguidade Tardia. Essa privatização do espaço público também é um fenómeno peninsular e inclui a construção de novas estruturas em plena rua por iniciativas dos proprietários das domes e, por vezes, o traçado das vias é cortado (Alba Calzado, 2000: 291). 

Outros exemplos do século IV podem ser verificados na Galaecia, em Lucus mas já eram conhecidos na Tarraconensis, no século III em Barcino e, no século II, em 

Baetulo e Emporiae. Contudo, em Valentia, o processo só tem início na Antiguidade Tardia (Gurt Esparraguera, 2000-2001: 447). 

A transformação de edifícios públicos também integra esse fenómeno de transformação urbanístico. O teatro de Malaca, na Bética, converteu-se num centro para salgas de peixe (Rodríguez Oliva, 1993: 194). Em Carthago Nova, o teatro converteu-se em mercado no século V e substituído por um bairro residencial no século VI. Complexos termais foram adaptadas para a produção artesanal (Almagro Gorbea, Abascal, 1999: 148). 

O fórum de Conimbriga aparentemente funcionou normalmente até o século IV, mas atravessou todo um ciclo de destruição, espólio e reocupação no século VI. Há uma questão interessante sobre Conimbriga no tocante à sua situação no século VI. A Crónica do bispo Idácio afirma que a cidade foi destruída em consequência das guerras entre suevos e visigodos. Contudo, o registo arqueológico comprova a continuidade da cidade ao longo da Idade Média (Tranoy, 1974; De Man, 2006: 146ff). 

III. 3. 1. O Panorama Arquitetónico Lusitano

O desenvolvimento urbano da Lusitania e o subsequente aumento da presença de cidadãos romanos no território relacionam-se com a expansão de centros populacionais indígenas, agora elevados em categoria jurídica e uma nova realidade de assentamentos criados ex novo. 

Nessa última categoria incluem-se o porto de Sines, que teria iniciado a sua ocupação em meados do século I, de acordo com a datação da necrópole de Monte da Sardinha (Dias, Viegas, 1976-1977; Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1979). Uma cronologia similar é proposta para a Ilha do Pessegueiro (Tavares da Silva, Soares, 1993) e Troia (Étienne et al., 1994). 

Há pouca informação a respeito da transição estratigráfica entre a fase pré-romana e o período pós-Cláudio na Lusitânia. Aparentemente, não há grandes esforços de romanização dos centros populacionais indígenas até o período Cláudio. 

O centro indígena de Chãos Salgados, situado a ca. 17 km de Sines, foi previamente habitado, pelo menos, desde o final do século IV a.C. (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1979). 

O seu complexo termal foi erguido no final do século I d.C., período que coincide com a construção das domes ao sul do fórum e do diagnóstico do aumento de importações cerâmicas e, especificamente, do consumo de terra sigillata sudgálica (Quaresma, 2003). 

Sabe-se que as cidades lusitanas cresceram e desenvolveram-se até meados do século II. Esse período de urbanização nos séculos I e II coincide com o início da primeira fase da produção dos preparados de peixe na província (Quaresma, 2012). 

Em finais do século I, a partir do período Flávio, uma última vaga de urbanização ocorrera nessas cidades. Estruturas, como o fórum de Conimbriga, foram reformados e as suas proporções passaram a reproduzir padrões pitagóricos a partir de módulos romanos de 10 pés (2,96 m) (Correia, 2017: 19). 

Uma vez estabelecida os padrões geométricos da grelha, foi possível reconstruir as partes perdidas do fórum a partir de aplicações do princípio geométrico e de comparações com exemplares contemporâneos disponíveis, como o pórtico de Cáceres (Correia, 2017: 19). 

Sabe-se que é possível implementar essa técnica para lidar com múltiplas orientações dos muros de uma terma, distinguindo uma intervenção Flávia de subestruturas anteriores (Correia, 2017: 20). As estruturas pré-romanas ou pré-Flávias foram removidas em detrimento do novo plano hipodâmico Flávio. Do mesmo modo, a comprovação do desenvolvimento de uma rede de abastecimento hídrico implica no crescimento das interações entre a construção pública e privada, especialmente nos séculos I e II. 

Esse modelo pitagórico é aplicado também na arquitetura doméstica, posto que foi comprovada a sua aplicação numa residência de Mértola (Rafael e Lopes, 2007). Correia (2017) aplicara-o na arquitetura pública e privada de Conímbriga e, seguindo a sua metodologia, Sousa (2018) estudou uma domus em Chãos Salgados, obtendo resultados similares. 

Sousa argumenta (2018: 99) que, na realidade, no século III ainda ocorreram reformulações urbanas na Lusitânia e cita a Casa del Anfiteatro, em Emerita Augusta, como exemplo, embora a planta já se encontre mais irregular (Beltrán, 2003: 37). 

As unidades romanas adotadas para esse exercício são módulos quadrados de septem pes de largura (214,2m). Contudo, observou que em Chãos Salgados o pes canónico de 29,63 cm fora substituído por uma variante maior, de cerca de 30,6 cm. Esse fenómeno pode ser uma decorrência de falta de rigor ou por necessidades práticas de usos do espaço, ou mesmo uma consequência do processo de transposição do projeto para o terreno (Sousa, 2018: 101). 

Qual seria o resultado se esse modelo arquitetónico fosse também aplicado às oficinas de preparados de peixe? As reformulações que essas oficinas sofreram podem revelar uma rutura com a arquitetura original do edifício. 

A partir do século III, com o início da “segunda fase” da sua produção de preparados de peixe, a Lusitânia ascendeu à posição de principal produtora do império. Embora a produção tenha aumentado, algumas oficinas foram abandonadas e outras tiveram as suas dimensões reduzidas. Isto sugere uma transformação no modelo de exploração dos recursos. 

Troia (Figs. 12 – 12ª) esteve habitada desde meados do século I até, possivelmente, o final do século VI. Durante os séculos I e II o complexo teria experimentado o seu apogeu. Todavia, no final do século II ocorreu uma interrupção de atividade nas oficinas, sendo que algumas das oficinas terão sido abandonadas (Pinto, Magalhães, Brum, 2014). 

Sabe-se que durante a sua fase seguinte, o complexo foi subdividido em quatro oficinas menores (Étienne et. al, 1994; Étienne, Mayet, 1998). Não se sabe se essa redução ocorreu, por exemplo, pela ação individual de herdeiros, ou pelo loteamento do espaço para a coparticipação de múltiplos exploradores comerciais. Todavia, atesta-se uma dinâmica social e económica de grandezas arquitetónicas diferentes contrapondo escalas produtivas distintas (Tab. 1). 

As reformulações que essas oficinas sofreram podem indicar uma rutura com a arquitetura original do edifício. Um futuro estudo aprofundado da arquitetura das oficinas e das cetárias contribuirá para esse debate com informações sobre o processo de estabelecimento das oficinas e os detalhes sobre a sua vida útil. 

Nesse sentido, as subdivisões das cetárias e das oficinas podem inserir as oficinas de preparados de peixe no mesmo fenómeno arquitetónico das subdivisões proposto por Ellis (1988), que caracterizou a arquitetura do Baixo-Império e que prosseguiu na Antiguidade Tardia. 

A arquitetura e a organização dos espaços de produção nas villae lusitanas ainda são objeto de estudo em Portugal. Uma possibilidade para melhor entender a exploração de recursos marinhos em pequena escala das villae pode residir no diálogo com a antropologia, mais especificamente, com a chamada “teoria antropológica do consumo” (Miller, 1987). 

Qual seria o impacto no debate académico sobre a economia romana imperial se aquela sociedade fosse tratada como um caso particular de sociedade de consumo? 

A antropologia propõe o estudo do consumo para compreender comportamentos sociais no contexto da humanidade contemporânea. Pode-se empreender um diálogo similar para o estudo da sociedade romana, a partir de um estudo de sua cultura material e da redefinição do conceito do consumo, a partir das relações e práticas sociais que este mobiliza. 

CONCLUSÃO

A criação da indústria de preparados de peixe no século I d.C. coincide com a intensificação da romanização na Lusitânia. Não está claro se a administração romana deliberadamente criou toda uma infraestrutura com o objetivo de promover transformações económicas na província, ou se os desdobramentos económicos na Lusitânia são consequência de uma trajetória própria e autónoma. 

O litoral e estuários ricos em recursos marinhos e o clima quente e seco favoreceram o desenvolvimento de uma poderosa indústria de preparados de peixe na província. A importância estratégica dos molhos e conservas de peixe na alimentação romana justificam o investimento na exploração da pesca, do sal e dos seus subprodutos em conserva, provocando o desenvolvimento de grandes oficinas de processamento de peixe ao longo do litoral. 

A investigação arqueológica em Portugal produziu um maior volume de informação sobre os centros produtores do Tejo e Sado. Assim, a despeito da alta densidade de centros produtores localizados no Algarve, o maior volume da produção de pesca e conserva até o momento é proveniente dos estuários do Tejo e do Sado. 

O relacionamento entre os centros produtores das villae e os centros urbanos próximos precisa de uma revisão à luz de novos dados produzidos pelos estudos recentes da realidade da grande área do litoral algarvio. Nesse espírito, as interações entre a Bética e a Lusitânia no que toca à logística de produção, envase e distribuição dos preparados de peixe também não estão totalmente esclarecidas. 

Outro elemento digno de nota é a possibilidade de que não se possua ainda uma visão nítida do alcance comercial da produção lusitana no circuito comercial de longa-distância. Os indícios de que produtos lusitanos são envasados em ânforas béticas são acrescentados ao facto de que nem sempre se distingue com exatidão as ânforas lusitanas das béticas. Assim, os dados estatísticos para a presença cerâmica lusitana-bética no oriente podem estar distorcidos. 

De facto, atesta-se a vitalidade do comércio lusitano na península entre o Baixo-Império e a Antiguidade Tardia. Segundo Fabião (2000, 2004), em Hispalis o comércio anfórico lusitano entre ca. 250 e 450 d.C. demonstra que cerca de 50% das importações peninsulares de preparados de peixe vinha da Lusitânia (Tab. 6). 

As ânforas lusitanas continuam atestadas na península no segundo quartel do século V, em Tarraco (Remollà Vallverdú, 2000), Ampúrias, embora escassas, (Reynolds, 2005) e, em grande quantidade, em Portus Sucronem (Hurtado, et. al, 2008). 

A ideia de que os centros produtores do litoral algarvio estariam ligados de alguma forma a algum consórcio hegemónico num “Circuito del Estrecho” carece de dados arqueológicos que permitam o desenvolvimento de uma teoria. No momento, pode-se afirmar apenas que a Lusitânia dispunha de uma estruturação logística diversificada e que as realidades a serem comprovadas numa grande área específica pode não se verificar válida para outras grandes áreas produtoras. 

Possivelmente, o Estreito de Gibraltar terá servido como polo facilitador desse circuito comercial regional. Quaresma (2012: 296 – 297) demonstra que os dados disponíveis sobre os naufrágios Punta Ala B (século II) e Cabrera III (século III), a Oeste da Itália, apresentam uma articulação de ânforas tunisinas e béticas (Figura 24 a-b). 

Fabião (2000: 718; 2004: 404) justifica essa presença de carga anfórica mista hispana e africana como consequência do declínio da produção bética dos preparados de peixe e da ascensão dos produtores lusitanos. A carga do naufrágio Cabrera III 

demonstra a participação mista de empreendedores privados e estatais, ilustrando um “renascimento económico” no século III (Reynolds, 2005: 382). 

Na Lusitânia, o século III marca a ascensão da província como o grande produtor dos preparados de peixe. Mas, uma aparente contradição situa a mesma data como início de um processo de abandono de centros produtores e da sensível redução das dimensões dos tanques e cetárias que sobrevivem. 

Entre os séculos III – V a popularização do consumo dos preparados de peixe no império estimula um fenómeno de substituição de uma tipologia de molho mais encorpada por uma mais líquida e pela gradual especialização ibérica na captura e substituição de peixes grandes pelos de pequeno porte. 

Durante o Baixo-Império, constata-se um novo padrão alimentar no império. Entre os séculos IV e VI o crescimento das importações de preparados de peixe ultrapassa os do azeite e do vinho em grandes centros importadores, como Hispalis (Quaresma, 2012: 297). 

Independentemente da polémica sobre a data da redução dos contentores piscícolas lusitanos e béticos, o envase em ânforas de bordo pequeno tornou-se uma tendência dominante. Para o presente estudo, esta informação é suficiente para apontar para as transformações logísticas ocorridas naquele período. Entretanto, o investimento em dados anfóricos e sobre o consumo de terra sigillata permitirá estudos mais densos sobre essa conjuntura económica. 

Sabe-se que havia um contexto histórico de crise demográfica entre meados do século II e princípios do século III. Segundo Duncan-Jones esse período corresponde a um processo de decadência de sítios agrícolas por todo o império, provocando fenómenos como o surgimento de villae fortificadas e a redefinição de relações laborais (apud Jongman, 2007: 196; Quaresma 2012: 258). Por outro lado, não se sabe com precisão qual teria sido o real impacto da chamada “Praga de Antonino” sobre a quebra económica nas províncias ocidentais (Scheidel, 2012: 11). 

Dito isto, aparentemente as cidades da Hispânia deram início a um lento e diversificado processo de transformação urbanística logo após ter atingido o seu apogeu económico, no século II. Seria correto caracterizar essa primeira fase como decorrência de uma supervisão estatal mais zelosa, considerando-se todo o cenário social e económico da relação entre Roma e as províncias durante a Pax? 

as suas províncias, a partir do século V. Seria possível articular esses dados arqueológicos a uma abordagem antropológica do consumo dos preparados de peixe? 

O consumo é um fenómeno cultural que satisfaz uma necessidade individual, mas é uma consequência de uma proposta social. As inter-relações sociais promovidas para a justificação de uma demanda comercial são um fator cultural que afeta toda a estrutura da atividade económica. 

Quando o mundo romano experimenta a transição para um universo cultural germânico e cristão, o consumo do produto perde legitimidade social e isso reflete-se num declínio económico provocado pela falta de interesse social e consequentemente, o desaparecimento de um mercado local que justifique o investimento na produção de preparados de peixe. 

Se assumirmos a premissa de que a economia romana se baseava numa coletividade de redes concêntricas de mercados locais, justapondo-se momentos de conectividade regional e inter-regional, a quebra do mercado consumidor local inviabilizaria completamente qualquer insistência com aquela atividade económica. 

Bernardes (2015) descreve como o consumo dos molhos à base de peixe transformaram-se de iguaria a medicamento na transição entre os mundos romano e islâmico. Essa recategorizarão do produto é um processo cultural, logo, passível de ser abordado por um viés antropológico. Seria então plausível buscar-se um diálogo epistemológico com a antropologia, de modo a se debater historiograficamente uma “teoria do consumo” (Miller 1987), devidamente adequada à realidades antigas. 

Os tópicos aqui debatidos oferecem um interessante potencial para o aprofundamento, num estágio futuro da investigação. O eventual desenvolvimento da investigação discutiria as particularidades arquitetónicas das cetárias catalogadas, por sítio, seguindo-se um diálogo mais denso com os dados anfóricos e um estudo mais extenso sobre as conjunturas económicas da Lusitânia. 

A reconfiguração urbana reflete-se na redução das cetárias lusitanas. Esse processo estaria, de algum modo, articulado a uma realidade de maior autonomia provincial para a gestão das próprias dinâmicas económicas a partir do século III? 

Um possível desenvolvimento deste estudo centra-se na possível aplicação do modelo pitagórico na orientação das novas dimensões de tanques e cetárias após o processo de redimensionamento dos centros de produção para a segunda fase da sua atividade económica. 

Ocorrem transformações na tipologia do produto, que passa a dar proeminência aos peixes pequenos e aos derivados mais líquidos do produto. Os dados arqueológicos referentes às transformações da produção também refletem transformações culturais do seu consumo, bem como indícios de transformações em todo um modo de vida. 

A retoma comercial que caracteriza a segunda fase de produção lusitana dura até o século V. Por outro lado, o século seguinte testemunha alguma continuidade da produção e distribuição de preparados de peixe. Na Lusitânia, tudo indica que a produção tardia permaneceu sediada no seixo Tejo-Sado. Todavia, desde o século III os centros de produção do Algarve estiveram mais ativos. 

A Lusitânia foi diretamente afetada pelas convulsões sociais provocadas pelas guerras suevo-visigóticas, ocorridas entre meados e terceiro quartel do século V. A importação de terra sigillata africana entra em declínio por volta de 450 d.C., mas resiste pontualmente até meados do século VI (Quaresma, 2012: 292 – 293). Na Bética o mesmo se verifica em meados do século VI, num cenário de declínio económico que envolve focos de peste e instabilidade militar (Reynolds, 1995: 31). 

A produção hispânica cessa até meados do século VI (Bernal Casasola, et al. 2003: 163). Nesse aspeto, sabe-se que a Vectigal, restabelecida por Teodorico, compromete os visigodos com o fornecimento de trigo a Roma, mas não há menções ao azeite ou os preparados de peixe (Perea Yébenes, 2003: 98). 

Existe toda uma conjuntura económica de retração comercial durante as chamadas invasões bárbaras e o gradual enfraquecimento da autoridade imperial sobre 

Download original PDF Dissertação de Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira

As Oficinas de Preparados de Peixe da Lusitânia: arquiteturas e dinâmicas econômicas da sua produção (séculos I – VI d.C.)
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