GARUM NA LUSITANIA RURAL? Alguns Comentários sobre o povoamento romano do Algarve

Carlos Fabião

Centro de Arqueología e Historia. Facultada de Letras de Lisboa. Cidade Universitaria 1699- Lisboa Codex. Portugal.

OS DADOS DA QUESTÃO

Em 1987, J. C. Edmonson, na tese que consagrou á exploração dos recursos mineiros e marinhos na Lusitânia, tentou tratar de um modo sistemático e racional o heterogéneo conjunto de informações disponíveis sobre cetariae, fornos de ânforas e articulá-lo com as formas de povoamento da antiga província romana do extremo ocidental da Hispânia. Esboçou, então, um modelo de explicação, retomado em texto posterior (Edmonson, 1990), que tentava cobrir as diversas realidades observadas. Em sua opinião, a exploração de recursos marinhos, produção de preparados de peixe e contentores para os exportar poderia enquadrar-se em três regimes diferentes, embora, naturalmente, complementares: um sediado em centros urbanos do litoral, outro instalado em centros (vici) de carácter suburbano e um terceiro, de âmbito rural, associado ao povoamento de tipo villa. Este último regime seria particularmente observável no Algarve, onde a exploração destes recursos assumiria um carácter subsidiário das atividades agrícolas (Edmonson, 1987; 129). Na sua opinião, os preparados de peixe produzidos neste mundo rural destinavam-se fundamentalmente ao autoconsumo, com um eventual escoamento dos magros excedentes para os centros urbanos mais próximos, em contentores de morfologia peculiar, as «local type amphoras» (Edmonson, 1987: 276-278 e 1990: 137).

Esta hipótesis é articulável com as opiniões expostas por J. G. Gorges, sobre o carácter original das villae algarvias, no contexto da Lusitânia, com implantações supostamente diferentes da norma da atração por centros urbanos e grandes vias observada em outras regiões da província (Gorges, 1979: 65-6 e 1990: 96 e 101-6).

Os fundamentais trabalhos destes dois autores constituíram o natural ponto de partida para o presente estudo. No entanto, a revisão global dos dados atualmente disponíveis permite questionar os fundamentos desta presumida originalidade algarvia, já que, por um lado, não parece correta a ideia de um regime de produção de preparados de peixe em âmbito rural, nem se deteta a existência de quaisquer tipos locais específicos de contentores para transporte e comercialização dos mesmos; por outro lado, não parece ser especialmente diferente a estratégia de implantação das villae em território algarvio, como se procurará demonstrar. Estas observações, que se colocam a discussão, em nada diminuem os contributos de Edmonson e Gorges, procuram somente retificar a ideia estabelecida de uma pretensa originalidade do extremo meridional do território hoje português que, aparentemente, não existiu de facto.

O ALGARVE

O Algarve constituí uma região bem individualizada no atual território português.

A norte é delimitado pela serra, que o separa da peneplanície alentejana, e é constituída por duas grandes massas de relevo a Serra do Caldeirão, a oeste, e a de Monchique, a este, que descem em anfiteatro na direção do mar (fig. 1).

O restante território compõe-se de formações mesozóicas e terciárias, parcialmente cobertas pela planície litoral pliocénica e sedimentos quaternários (Ribeiro et alii: 1987: 16 e 224-5 e Feio, 1983: 93-113.

FIG. 1

Assim, o Algarve aparece naturalmente dividido em três grandes regiões: a serra, de fraca aptidão agropecuária, o barrocal de maciços calcários, de vertentes pedregosas, separados por amplas depressões, onde predominara os pomares de sequeiro ou, parafraseando Orlando Ribeiro, «verdadeiras matas de frutos» (Ribeiro, s/d: 58), e a planície do litoral com extensas áreas arenosas, mas também com terrenos de boas aptidões agrícolas (Feio, 1983: 111) (fig. 2 e 5). A Oeste, a ampla foz do Guadiana separa a região da vizinha Andaluzia, embora exista uma evidente continuidade geomorfológica entre o território hoje espanhol, na época romana pertencente a vizinha província da Bética (Alarcao et alii, 1990), e o litoral algarvio, como, alias, já Gorges sublinhou (1979: 65).

De um ponto de vista agrícola, o Algarve de hoje aparece emblematicamente associado aos pomares de árvores mediterrâneas e as hortas irrigadas, uns e outras celebradas pelos autores muçulmanos (Coelho, 1972: passim). Estes mesmos autores não deixam de sublinhar a existência de manchas florestais que forneciam a indispensável matéria-prima para a construção naval. São estas referências que têm suscitado a ideia, provavelmente, não muito correta, como se verá, de esta paisagem ter sido criada pela presenta árabe, particularmente no que respeita ás hortas irrigadas (Feio, 1983: 121).

Com um extenso litoral e francamente aberta ao mar, integrada no amplo golfo constituído pelas costas luso-hispano-marroquinas, uma «espécie de pré mediterrâneo» (Ribeiro, s/d: 56) a região sempre esteve profundamente ligada á exploração dos recursos marinhos e ao comércio naval. A citada existência de boas manchas florestais assume, por isso mesmo, particular importância, já que fornece as matérias-primas necessárias a construção naval.

A Arqueologia do Período Romano no Algarve

Também do ponto de vista arqueológico o Algarve constitui um caso singular  no panorama do atual território português. Foi sistematicamente prospetado e os seus locais de interesse arqueológico seletivamente sondados por Estácio da Veiga nos meados do século XIX, no âmbito de um pioneiro projeto de cartografia arqueológica, posteriormente continuado por Santos Rocha e Leite de Vasconcellos, entre outros. Infelizmente, a exaustiva e sistemática obra Antiquidades Monumentaes do Algarve, onde o primeiro reuniu o produto do seu labor, não chegou a ser concluída, tendo ficado apenas esboçados alguns dos capítulos relativos ao período romano, publicados a título póstumo nas páginas de «O Archeólogo Português». O segundo, cedo trocou no Algarve pela região centro do nosso país, com particular ação na zona da Figueira da Foz e o terceiro, em sucessivas «excursões arqueológicas», foi carreando importantes contributos para o conhecimento do passado da região, mas sem o carácter continuo e sistemático que caracterizara a obra de Estácio da Veiga.

FIG. 2

Praticamente sem interrupções, os sítios arqueológicos algarvios continuaram a ser inventariados e estudados por sucessivas gerações de investigadores locais ou estranhos a região. Para não alongar demasiado a lista, cite-se a tese de licenciatura de Maria Luísa Estácio da Veiga Affonso dos Santos que, recuperando o gigantesco acervo de dados coligido pelo seu antepassado, acrescentado pelos contributos posteriores, no principio da década de 70 apresentava um extenso esboço da carta do povoamento do Algarve na época romana (Santos, 1971-2) e, mais recentemente, o labor desenvolvido pelo grupo da Carta Arqueológica do Algarve (CAALG) dirigido por Víctor dos Santos Gonçalves (1979 e 1981) e posteriormente continuado por Helena Cantarino (1988), principalmente na metade oriental da região, por Teresa Júdice Gamito, em Faro (1991a e 1991b), Alvor e Serra Algarvia, Carlos Tavares da Silva, Mário Varela Gomes (1987) nas áreas de paisagem protegida da Costa Vicentina (Sudoeste) e Ria Formosa (cordão litoral do Centro e Este), entre muitos outros trabalhos de âmbito pontual ou regional).

Os dados atualmente disponíveis sobre as diversas formas de povoamento que o Algarve conheceu em época romana encontram-se reunidos e cartografados no gigantesco inventário elaborado por Jorge Alarcão (1988) e nos volumes da Carta Arqueológica de Portugal que o IPPC/IPPAR tem em curso de publicação (Passos, 1989 e Marques, 1992). Assim, por comodidade de referencia e para não sobrecarregar o texto com citações bibliográficas, todos os sítios arqueológicos mencionados ao longo do presente texto serão acompanhados pelos números de código constantes quer num, quer nos outros, quando ali não figurarem.

Deve sublinhar-se, porém, que este panorama apresenta enormes limitações. Se, por um lado, pela extensão e exaustividade dos trabalhos desenvolvidos, pode considerar-se minimamente representativo do povoamento do Algarve no período romano, por outro, a ausência de estúdios monográficos sobre os diferentes sítios a escassez das áreas abrangida pelas escavações, sempre que existiram, bem como o facto de, na maior parte dos casos, terem sido efetuadas ainda no século passado reduz substancialmente a qualidade da informação disponível.

Para além do mais, vicissitudes várias, que não poderão ser aqui extensamente tratadas, conduziram ao descaminho de muitas das peças recolhidas, a perda de informação importante sobre proveniências de artefactos e circunstâncias de recolha e a uma enorme fragmentação das coleções, dispersas por inúmeros museus locais e regionais, pelo Museu Nacional de Arqueologia, pelos espólios de antiquários e colecionadores, etc. Como se tudo isto não bastasse, a recente e desenfreada explosão do turismo algarvio, particularmente das zonas do litoral, feito a margem de qualquer planeamento ou de ações de salvaguarda mínima dos valores patrimoniais, acarretou incontáveis destruições, infelizmente irreversíveis, tanto em sítios já conhecidos como em áreas que nunca foram objeto de escavações ou prospeções.

Finalmente, deve sublinhar-se que a dinâmica geomorfológica das costas algarvias denota dinamismos que o arqueólogo não deve ignorar: um acentuado assoreamento das zonas de estuário, um generalizado afundamento das áreas litorais e consequente recuo de arribas e cordões dunares, para além da notória instabilidade de toda a área da atual reserva natural da »Ria Formosa». Estas modificações, insuficientemente estudadas, limitam os nossos conhecimentos sobre o povoamento do litoral, indispensáveis a uma correta avaliação da sua ocupação e utilização no período romano.

Todas estas lacunas e deficiências de informação condicionam fortemente a análise que se segue e ajudarão a explicar as razoes da deliberada assunção de um discurso no condicional ao longo destas «considerações». A consciência destas limitações afigura-se igualmente indispensável para sublinhar o carácter hipotético das explicações avançadas.

O ALGARVE NO PERIODO ROMANO
Face aos dados disponíveis, podemos afirmar que, nos primeiros tempos da conquista romana ou, pelo menos, desde o século I a.C., o território algarvio apresentava uma feição francamente mediterrânea nas formas do seu povoamento, com um significativo número de centros urbanos ou, no mínimo, de lugares centrais em vias de o ser. Devido as características peculiares da região, acima esboçadas, pode dizer-se que esta rede de centros polarizava a totalidade do litoral e barrocal, afinal uma estreita faixa de terreno com não mais de 23 km. de largura (Feio, 1983: 107).

Os Centros Urbanos (fig. 3)
 
Na época da conquista romana, o extremo meridional do atual território português
tinha já uma longa historia de contacto e interação com as áreas mediterrâneas,
de que constituí, alias, um prolongamento natural. Para além do mais, como atrás se referiu, a sua peculiar geografia abria-o mais aos contactos por via marítima, do que a qualquer penetração pelos difíceis caminhos que sobem a serra. Parece indiscutível, também, que dispunha de uma rede de lugares centrais de características proto urbanas, senão mesmo urbanas, que se distribuíam desigualmente pela franja litoral, com um caso conhecido no barrocal, que garantia, de facto, uma cobertura total de todo o território, a exceção da serra provavelmente, um caso a parte nas dinâmicas e estratégias do povoamento local.
 
Começando de Este para Oeste, encontramos na foz do Guadiana:

FIG. 3

Baesuris (8/263) fig. 3

Implantada sob o atual castelo de Castro Marim, um lugar dominante atualmente rodeado de áreas de sapal. Embora não haja dados concretos de carácter paleográfico, afigura-se possível que, na época, constituísse uma península, sobranceira ao amplo estuário do Guadiana. Recentes escavações, infelizmente interrompidas, efetuadas sob a direção de Ana Margarida Arruda revelaram uma impressionante sequência de ocupações que se estende, aparentemente sem interrupções, desde o Bronze Final ao período romano (Arruda, 1991: 137-148). Cunhou moeda no período tardo-republicano (Faria, 1987: 1).

As escavações não permitiram caracterizar as ocupações posteriores aos inícios do período imperial, contudo, as categóricas referências do Itinerário de Antonino atestam a continuidade da ocupação, pese embora, talvez sem oesplendor de outras eras (Arruda, 1991: 137-148).

As razões da sua implantação e prosperidade devem relacionar-se com o controle da circulação no Guadiana, importante via de escoamento das riquezas mineiras do interior. Deveria encontrar-se em íntima relação com o centro de Myrtilis, sob a atual Mértola, localizada, por sua vez, praticamente no extremo navegável desta importante via fluvial.

Ainda hoje é zona de importante saliniculutura e, embora não se conheçam vestígios de centros para produção de preparados de peixe associados ao estuário do Guadiana, é provável que o forno (ou fornos) de ânforas de Olhos de S. Bartolomeu, implantado(s) junto ao esteiro da Carrasqueira, produzisse contentores para preparados de peixe processados nas suas imediações (v. Fig. 4 e Anexo 1). Certamente por deficiência de informação, Edmonson localizou em Vale do Boto um centro de fabrico de ânforas (1987: 277 e fig. 6.2.C.; 1990: 136 e fig. 2C).

No local, foi somente identificado um habitat romano, onde apareceram ânforas, e escavado um povoado muçulmano (Gonçalves et alii, 1980, Catarino et alii, 1981 e Catarino, 1988).

As causas do seu declínio poderão dever-se ao enchimento do estuário, que a afastou irremediavelmente do rio e do mar. No século XIII, a data da conquista cristã, não possuía já qualquer relevância regional, tendo sido substituída pela fortaleza de Cacela (Ribeiro, s/d: 81, Coelho, 1972: 49-51 e Garcia, 1986: 74). Foi repovoada, ganhando nova relevância por ser núcleo de fronteira do novo reino de Portugal (Garcia, 1986: 75-6). Em época mais recente seria definitivamente substituída pelo setecentista porto de Vila Real de Santo António. E interessante assinalar que ainda nos meados deste século, daqui se escoava o produto da exploração das minas de S. Domingos, Mértola (Feio, 1986: 137), já em laboração no período romano e talvez mesmo antes.

FIG. 4

Balsa (d,/5lS) fig. 3

Implantada junto ao litoral nas proximidades de Luz de Tavira a cidade de Balsa, a julgar pelo topónimo, existiria já em época pré-romana, embora se desconheça desde quando. Os descontínuos trabalhos arqueológicos que ali se têm efetuado desde o século passado —certamente, menos relevantes que as destruições sofridas—, não revelaram quaisquer materiais anteriores ao período tardo-republicano, época em que terá cunhado moeda. Segundo Vasco Mantas, teria sido elevada a dignidade de município sob os flávios (1990: 192-3). Este mesmo autor identificou vestígios de um cadastro em redor da cidade e valorizou devidamente a diversidade de recursos de que dispunha. Tomando Baelo como modelo, defende que as invasões do século III teriam marcado o inicio da decadência da cidade, precipitada no século V (Mantas, 1990: 199). Contudo, entre os materiais depositados no MNAE e recolhidos nas escavações que o local conheceu figuram suficientes indícios de uma continuidade da ocupação, alias já claramente referida por Leite de Vasconcellos (1917: 126), e parece-me bastante provável, como adiante se explicará, que, ao contrario do que pretende Mantas, tenha sido justamente a decadência dos centros da Baetica que possibilitou um período de particular prosperidade para as cidades algarvias.

O mesmo autor (Mantas, 1990: 197-8), seguindo Maria Luísa V. S. Pereira (1974-7), defendeu a origem balsenses das ânforas da Classe 22 (= «Almagro 50» / Keay XVI) com as marcas LEV. GEN, OLYNT e AEMHEL (v. anexo 1). No entanto, o estudo recente destes materiais, particularmente a sua composição mineralógica não autorizam uma identificação categórica —embora também não a excluam— e a associação a materiais de construção com marcas análogas, que Mantas refere,  resulta certamente de um equívoco, já que não apareceu qualquer tegulacom estas marcas em Torre de Aires, mas sim em Portimão (Pereira, 1974-7: 246-8).
Entre os materiais de Torre de Aires depositados no MNAE de Lisboa figura um fragmento de ânfora da Classe 23 (= Almagro 51c / Keay XXIII) deformado por excesso de cozedura, achado típico das zonas onde existiram fornos (V. Fig. 4 e Anexo 1). No entanto, o dito fragmento poderá ter sido recolhido em outro lugar do Algarve, visto que são bem conhecidas as vicissitudes por que passou o conjunto de materiais recolhido por Estácio da Veiga até ao seu depósito e inventário definitivo.

De qualquer modo, se houve produção de ânforas para o transporte de preparados de peixe em Balsa, não parece ter sido anterior aos inícios do século III.
Esta, poderá relacionar-se com as cetariae identificadas nas suas proximidades, designadamente, em Cacela (8/282) e Quinta Do Muro (8/281), havendo ainda vagas notícias de um forno no lugar da Manta Rota (8/296) (Vasconcellos, 1919-1920: 229) que poderia ter produzido ânforas (v. fig. 4) e que, se assim for, deverá relacionar-se com estes dois lugares; para além da própria quinta de Torre de Aires (8/318), Tavira, onde se identificaram, também, estruturas para a transformação do pescado (fig. 4).

Uma vez mais, e à semelhança do que aconteceu com Baesuris, terão sido alterações verificadas no litoral, provavelmente associadas a novas estratégias de povoamento que terão motivado a decadência de Balsa e a sua substituição por Cacela, ao que parece o grande centro regional no século XIII, igualmente implantado junto a costa, mas com condições naturais de defesa, e por Tavira, resguardada no interior, mas com acesso direto ao mar através do rio Giláo.

Ossonoba (8/322) fig. 3

Situada sob a atual cidade de Faro, Ossonoba terá sido o mais importante núcleo urbano do atual Algarve sob o domínio romano. Recentes notícias parecem indicar que o local já seria frequentado, ou mesmo ocupado, num momento precoce do I Milénio a.C. (Gamito, 1991b: 300-301), podendo, por isso, ter conhecido uma evolução análoga a de Baesuris. Varias escavações em curso, sob a direção de Teresa Júdice Gamito, poderão brevemente enriquecer o nosso conhecimento sobre a cidade antiga, para já limitado aos dados das antigás escavações e a epigrafia.

Vasco Mantas compilou e analisou recentemente os dados disponíveis sobre Ossonoba, sublinhando o conjunto de informações sobre a mesma em tempos pré-romanos e os seus precoces contactos com Roma (Mantas, 1990: 182-3). Tal como Baesuris e Balsa, cunhou moeda no século I a.C. e teria recebido o estatuto municipal ainda sob os Júlios-Cláudios, provavelmente na época de Cláudio idem: 183).

Parece indubitável que terá sido desde a época romana o grande centro regional, nunca abandonado apesar da sua localização, mesmo nas épocas em que a estratégia de povoamento opta pela fuga do litoral e o refugio no interior junto aos grandes cursos de água. Sob o domínio romano, parece ter conhecido um particular desenvolvimento a partir do século III {idem: 183-189), provavelmente beneficiando também das dificuldades sentidas por essa época pelas cidades da Baetica.

O seu carácter cosmopolita e mercantil, já devidamente sublinhado por Vasco Mantas (idem) parece ter tido na exploração dos recursos marinhos uma das suas principais componentes.  Conhecem-se várias estruturas destinadas á produção de preparados de peixe no seu subsolo (Alarcao, 1988, Mantas, 1990: 185 e Gamito, 1991a) e na sua área de influência, designadamente em Olhão (8/323) e Quinta de Marim (8/311), a Este, e Quinta do Lago (610.2.3. – Marques, 1992), Loulé Velho (8/300), Quarteira (8/299) e Cerro da Vila (8/298), a Oeste (fig. 4).
Associados a estes centros de transformação parecem estar os fornos de Alfanxia, Olhão (8/*), S. João da Venda, Faro (8/305) e Quinta do Lago, Loulé (610.2.3) (v. Fig. 4 e Anexo 1). Os primeiros, conhecidos somente por breves referências (Mascarenhas, 1974), terão produzido ânforas da forma Almagro 51ab (= Keay XIX/XXI), tal como os de S. João da Venda (Fabião/Arruda, 1990). Os da Quinta do Lago fabricaram, aparentemente, duas classes diferentes: a Classe 23 (= Almagro 51c/Keay XXIII) e, em menores quantidades, ânforas da Classe 22 (= -Almagro 50» / Keay XXII) (Arruda/Fabiado, 1990). Uma vez mais, todas estas ânforas são características do período posterior aos inícios do século III e, particularmente as primeiras (Almagro 51a-b / Keay XIX/XXI), muito difundidas nos séculos IV e V. Em depósito nos museus não se encontra nada que possa ser considerado um «tipo local» de contentor associado a estes fornos, como defendeu Edmonson (1987: 277 e 1990: 137) e o conjunto de fragmentos que primeiramente identificamos como pertencentes a ânforas da Classe 20/21 (Arruda/Fabiao, 1990: 202 e fig. 58) corresponde, na realidade, a diferentes fragmentos de suportes cerâmicos, idênticos aos conhecidos em outros centros oleiros da Lusitânia, certamente relacionados com as operações de fabrico dos contentores.

Portus Hannibalis (7/117-7/146 ?) fig. 3

Ao contrário do que acontece com todos os centros anteriormente descritos,
as nossas informações sobre o Portus Hannibalis são escassas e reportam-se,
exclusivamente, a fontes escritas. Não sabemos se cunhou moeda, não conhecemos
quaisquer dados epigráficos e ignora-se a sua localização precisa.
Pelo nome, supõe-se que teria sido fundado no século III a.C. por Aníbal Barca e que se situava no Oeste algarvio. De entre as várias propostas de localização, a mais corrente aponta as imediações da atual vila de Portimão, na margem direita do rio Arade, junto do estuário. 

FIG. 5

Nesta área foram identificadas estruturas de época romana em Portimão (7/117), junto do convento de S. Francisco (7/146) e em outros lugares das suas proximidades (fig. 4 e 5), mas nada que se possa relacionar com a presumida fundação bárcida. Recentemente, dragagens efetuadas no estuário do rio Arade revelaram a presença de abundantes materiais arqueológicos, entre os quais se destacam cerâmicas campanienses e ânforas do período tardo-republicano (Silva et alii, 1987) o que, convenhamos, embora interessante resulta insuficiente para uma identificação categórica.
Também este local forneceu vestígios de estruturas para a produção de preparados de peixe, nas duas margens do estuário: Portimões (7/117 e 7/146), na
margem direita, e Ferragudo (7/147), na margem esquerda. A montante, na margem
esquerda, foi recentemente identificado u, novo local com cetariae, o sítio Baralha 2 (594.4.6 – Marques, 1992) (fig. 4).
A admitirmos a implantação de um núcleo urbano no estuário do Arade, deveremos
considerá-lo em articulação como o outro centro urbano das margens deste rio: Cilpes.

Cilpes (7/112?)fig. 3

O Núcleo urbano de Cilpes deve localizar-se no Cerro da Rocha Branca, importante sitio arqueológico sobranceiro ao rio Arade, na sua margem direita, que infelizmente foi recentemente destruído. Antes das destruições, os arqueólogos Mário e Rosa Varela Gomes conseguiram identificar urna extensa ocupação humana, que parece remontar ao segundo quarto do I Milénio a.C. (Gomes, 1992: 136), prolongando-se até ao Baixo Imperio (Gomes et alii, 1986 e Gomes, 1988: 23-5). Num momento impreciso, mas talvez posterior ao século IV, o núcleo urbano transferiu-se para o local onde hoje se ergue a cidade de Silves (Gomes, 1988: 25). Esta transferência não implicou, porém, o abandono do núcleo anterior, como os dados arqueológicos demonstram (Gomes et alii, 1986).
De Cilpes conhecem-se, também, cunhagens do século I a.C., atestando a sua importância nesta época. Embora a sua implantação se pareça dever a proximidade de importantes jazidas mineiras, a sua localização permitia-lhe a exploração de recursos diversificados, tanto agropecuários como silvícolas, sem esquecer as potencialidades proporcionadas pela navegabilidade do rio (Gomes, 1988: 23-5).
Justamente no período muçulmano, quando a estratégia de habitat denota preferência por lugares recuados em relação ao litoral, mas com fácil acesso ao mar, a cidade de Silves, herdeira do antigo núcleo, viveu a sua época de maior esplendor.

Ipses (7/145) fig. 3

No lugar de Vila Velha, Alvor, na margem esquerda do amplo estuário da ribeira de Odiáxere, onde se tinham já registado achados de materiais de várias épocas e onde diversos autores localizavam, também, o Portus Hannibalis foram recentemente escavadas por Teresa Júdice Gamito diversas estruturas do período romano republicano. Entre os materiais recolhidos figuram duas tesserae de chumbo da cerca de Ipses, de que se conheciam já algumas moedas de bronze, datáveis do século I a.C. (Paria, 1987: 2 e 1988).
Partindo do pressuposto de que a moeda de chumbo não circularia fora da área da sua cunhagem, António Paria defende a localização de Ipses em Vila  Velha. Teríamos, assim, um novo centro urbano no barlavento algarvio. Só a publicação dos resultados das escavações arqueológicas permitirá precisar as características do núcleo, bem como a cronologia da sua ocuparão.
Uma vez mais, regista-se a presenta de um complexo de cetariae nas suas imediações, mais concretamente na praia do Vau (7/111), na margem direita do estuário da ribeira (fig. 4).

Lacobriga (7/139-7/140 ?) fig. 3

Sobre Lacobriga temos, no estado atual dos nossos conhecimentos, um panorama análogo ao exposto para o Portus Hannibalis: conhecemos o local por referencias textuais, mas não existe outro tipo de informação que nos esclareça sobre a sua exata localização ou relevância regional.
Tradicionalmente, o antigo núcleo tem sido localizado ou no Monte Molião (7/139), na margem esquerda do estuário da ribeira de Bensafrim, também conhecida por rio de Lagos, ou sob a atual cidade de Lagos (7/140). No primeiro, foram recolhidos materiais de tipo ibero-púnico, designadamente lucernas (Viana et alii, 1953: Lám. IV), bem como materiais romanos alto-imperiais; e no segundo, foram identificadas diversas estruturas romanas associadas á exploração de recursos marinhos, com materiais de diferentes épocas, incluindo o Baixo-Império. Finalmente, em dragagens efetuadas no estuário do rio foram recolhidos materiais arqueológicos, dos quais os mais antigos remontam ao século I d.C.
Independentemente da exata localização da cidade de Lacobriga resulta evidente que também este estuário se encontrava povoado nas suas duas margens em época romana. Uma vez mais, regista-se a presenta de estruturas destinadas a transformação do pescado, tanto no subsolo de Lagos (7/140), como na vizinha praia da Senhora da Luz (7/141) (fig. 4).
O extremo Oeste do território algarvio, o Hiéron Akrotérion de Estrabão ou o Sacrum Promunturium dos autores latinos, embora fosse frequentado por motivos religiosos era inóspito e não possuía grandes núcleos populacionais, como refere o geógrafo grego (III, 1, 4). Não temos motivos para pensar que esta situação se tenha alterado durante o período do domínio romano.

O Povoamento Rural (fig. 5.)

A observação das diferentes «Cartas Arqueológicas do Algarve», desde o primeiro
esboço geral de Estácio da Veiga (1910), as recentes sínteses de Jorge Alarção (1988) e aos levantamentos promovidos pelo IPPAR (Passos, 1990 e Marques, 1992), passando pela de Maria Luísa Santos (1971-2) e pelas sectoriais de Helena Catarino (1988) e Varela Gomes e Tavares da Silva (1987), sugere a existência de um denso povoamento na época romana, disseminado por todo o território, com especial predileção pelo litoral e barrocal. Infelizmente, este amplo conhecimento dos pontos de povoamento não tem sido acompanhado de um esforço análogo de determinação das suas características e cronologias, pelo que nos vemos bastante limitados na sua interpretação. Como o presente estudo partiu das propostas específicas de Edmonson e Gorges, como atrás se referiu (0), importava, antes de mais, selecionar o conjunto de pontos que poderia ser enquadrado na classificação genérica de villae, nos moldes em que Gorges tipificou esta forma de povoamento (Gorges, 1979: ).

As Villae do Algarve

Por falta de melhores e mais seguros indicadores, optei por selecionar, de entre o conjunto de sítios arqueológicos com ocupação do período romano, todos aqueles onde se detetou a presença de mosaicos, fustes de colunas ou capitéis, indicadores da presenta em ambiente rural, de edifícios de carácter urbano. Foram excluídos os diversos locais cartografados que não apresentavam vestígios arquitetónicos relevantes. Este critério, naturalmente discutível, pareceu-me ser o único seguro, já que se me afigurava falaciosa a adoção de outros, designadamente o da presença de cerâmicas finas importadas. Se valorizasse este dado, estaria certamente a perpetuar vícios de recolha de informação e, eventualmente, a incluir nesta categoria sítios tão diversos, como necrópoles ou grandes povoados com capacidade para adquirir estes materiais, neste caso, facilitada pela proximidade do mar. Contudo, tenho consciência que terão ficado excluídos, por falta de melhor caracterização, alguns locais que poderão ter conhecido a implantação de villae, como por exemplo o sitio da Lezíria (8/264), nas proximidades de Baesuris, onde foi recolhido um abundante lote de cerâmicas finas (Armda/Dias, 1985).

Na cartografia das villae foram incluídas, ainda, duas outras realidades estreitamente relacionadas com o mundo rural; os vestígios de lagares e as barragens fig. 5).

No caso dos primeiros, infelizmente, só raras vezes está inequivocamente demonstrado o seu enquadramento no período romano, já que a maioria é documentada ou pela presença de pesos das prensas —na praia, junto a Loulé Velho (8/300) e em Aimadanin (594.2.1.)— ou pela presenta das estruturas escavadas na rocha —Vale do Marinho (7/102), Vidigal (7/98) e Fonte Velha (7/90)—, aparecidos, uns e as outras, junto de locais com ocupação romana. Quanto aos restantes, sem qualquer dúvida integrados em villae—D. Menga (8/314), Quinta de Marim (8/311), Milreu (8/304), Vale de Arrancada (7/114), Monte da Torre (7/103) e Abicada (7/107)—, desconhecemos a cronologia do seu funcionamento (fig. 5).

Quanto as barragens (fig. 5) (Quintela et alii, e Cardoso et alii, 1990), cuja associação a diferentes formas de povoamento parece, contudo, inquestionável, estão maioritariamente ligadas ao mundo rural: a do Alamo serve a villa do mesmo nome (8/225), a de S. Rita serviria a Quinta do Muro (8/282), a de Vale Tesnado o Cerro da Vila (8/298) e a da Fonte dos Mouros um dos centros do território de Cilpes (Cardoso et alii, 1990: 2.6.). As restantes, poderiam servir centros de produção de preparados de peixe: Armação de Pera (7/152) e a de Espiche  {idem: 2.7.), talvez o centro da Senhora da Luz (7/141); e a da Fonte Coberta (7/138) eventualmente a própria cidade de Lacobriga (Alarcao, 1988: 183) o que pressupõe uma localização da mesma na margem direita da ribeira de Bensafrim,   isto é, sob a atual Lagos.

A carta de distribuição apresentada defronta-se, todavia, com uma dificuldade de momento insuperável: a das cronologias de ocupação. A mera consulta da listagem do Anexo 3 esclarece cabalmente sobre a extensão do problema. De 36 sítios selecionados, dispomos de alguns indicadores cronológicos para 18, isto é, para metade, e somente na Quinta de Marim (8/311), Milreu (8/304), Cerro da Vila (8/298) e Abicada (7/107) se efetuaram extensas escavações no nosso sáculo, embora em nenhum dos casos se tenha verificado a sua publicação integral.

O esclarecimento desta situação é essencial para que se possa compreender como é frágil a leitura que aqui se apresenta, apesar do grande número de sítios considerado. Esta ausência de dados concretos, de elementos precisos de datação, para a maior parte dos casos, transforma esta carta num «palimpsesto» onde, provavelmente, se misturam momentos diversos de ocupação. Somente a título de exemplo, refira-se que incluí dois sítios como a villa da Senhora do Pilar (7/123), com um abundante lote de materiais do século I recolhidos a superfície, mas nada seguramente posterior, e a de Torrejáo Velho (596.3.8.), nas suas proximidades —não deve ser confundida com a sua homónima do concelho de Tavira (8/324)—, sobre a qual não possuímos nenhum indicador cronológico e que, por isso mesmo, pode ter começado a ser ocupada num momento em que a de Senhora do Pilar já fora abandonada…

Esclarecidas as limitações da presente abordagem, importa salientar algumas linhas de força que se podem considerar independentes de qualquer fator de ordem cronológica. Em primeiro lugar, resulta evidente a intenção de instalar estes estabelecimentos junto a solos de boa aptidão agrícola, particularmente os da Classe A, sendo notória a preferência pela plataforma litoral. A norma de relação entre solos das Classes A e B e a presença de vestígios de villae não se verifica apenas no caso do Monte da Torre (7/103). Parecem evidentes, também, as duas tendências enunciadas por J. G. Gorges (1990) para a sua localização, a saber, a proximidade dos centros urbanos —praticamente todas se localizam a uma distância inferior aos 20 km sugeridos pelo modelo de Van Thünen—, e a proximidade das principais vias, tanto as terrestres, visível pelo confronto com a proposta de J. Alarção (1988: 52 e 57-8), constante nas diversas cartas (fig. 3, 4 e 5), como a grande via fluvial que o Guadiana constituí neste particular, é notória a ocupação sistemática de pequenas manchas de solos agricultáveis, designadamente, em Alamo (8/255), Montinho das Laranjeiras (8/249) e Vale de Condes (Catarino, 1988: n- 3) aos quais haverá, provavelmente, que adicionar uma ocupação sob a atual Alcoutim (8/247) e outros núcleos de povoamento, que pontuam toda a margem direita deste rio (Alarcao, 1988: Folhas 8b e 8c). Desenquadrada destas duas tendências surge-nos apenas a villa de S. Margarida de Alte (7/80) claramente instalada no «barrocal», embora junto a solos das Classes A e

A sua localização pode ser simplesmente marginal, ou relacionar-se com algum ramal do sistema viário secundário, que estabeleceria a ligação entre o Algarve e a peneplanície alentejana, através da serra.

Pelas limitações já expostas, resulta fácil compreender como são escassas as possibilidades de, no estado atual dos conhecimentos, reconstituir o quadro da economia destas villae algarvias. No entanto, parece-me legítimo afirmar que a geografia da sua distribuição em nada difere da que verificamos para outras regiões da Lusitânia e somente pela valorizarão excessiva de alguns casos pontuais, claramente minoritários no panorama geral, se poderá justificar a tese de uma qualquer originalidade do povoamento rural desta região. A exploração dos recursos marinhos, sem dúvida uma importante atividade, assume um carácter  suficientemente diferenciado, tanto na implantação dos seus centros, como nas características que os mesmos possuem.

Como facilmente se nota, foram excluídas da presente lista (anexo 3) muitas das tradicionalmente chamadas «villae» algarvias, particularmente as do extremo  Oeste do território, Senhora da luz (7/141), Salema (7/131) ou Boca do Rio  (7/132). Tal exclusão justifica-se pelo facto de todas elas se implantarem em  áreas cujos solos não apresentam aptidões agrícolas. A desproporção entre a  pobreza dos solos envolventes e a exuberância das suas construções, aliada a presenta, em todas elas, de estruturas de cetariae, sugere uma opção de exploração de recursos marinhos que, na minha opinião, nada tem a ver com o mundo rural. No entanto, se resulta evidente, para mim, que seria abusivo classificá-las como villae, já não estou tão certo sobre a designarão que deveremos dar-lhes…

Não se nega a existência de uma complementaridade entre recursos agrários e recursos marinhos, contudo, este fenómeno deve ser entendido mais numa perspetiva regional, do que propriamente no âmbito de um mesmo sitio com as possíveis exceções da Quinta do Muro (8/282), Quinta de Marim (8/311), Cerro   da Vila (8/298) e Baralha 2 (594.4.6.), todos eles com vestígios de cetariae e implantados em zonas com boa aptidão agrícola.

Completando a paisagem rural algarvia, conhecem-se inúmeros aglomerados de menores dimensões, não enquadráveis, dentro do que se sabe, na categoria de villae, disseminados quer no litoral, quer no «barrocal» e, inclusivamente, na «serra», embora nos faltem informações precisas sobre esta última região, normalmente menos prospetada. Os dados de campo dos trabalhos de Victor S. Gonçalves e Helena Catarino demonstram, contudo, que esta última região não seria tão despovoada como tradicionalmente se supõe. Normalmente todos estes sítios estão, tal como as villae, implantados nas proximidades de pequenas manchas de solos das Classes A e B.

A Exploração dos Recursos Marinhos (fig. 4)

A região do Algarve teve na exploração dos recursos marinhos uma das suas mais importantes componentes económicas. De há longa data era sabida que no período romano tais recursos já eram amplamente explorados, sendo inclusivamente objeto de exportação. O registo arqueológico forneceu abundantes elementos aos investigadores, particularmente estruturas como cetariae, anzóis e fornos de ânforas (Santos, 1971-2; Alarcáo/Mayet, 1990). Por se tratar de uma região perfeitamente enquadrada na área mediterrânea peninsular, eventualmente relacionada com a cidade de Gades (Mantas, 199), e até dispormos de dados seguros, permanecerá de pé a hipótese de remontar a épocas pré-romanas o início da exploração deste tipo de recursos no litoral algarvio. No entanto, deve sublinhar-se que a informação disponível, como já foi referido (2.1), documenta sobretudo uma produção e exportação tardia, já do Baixo Imperio (v. anexos 1 e 2).

Ao longo do litoral encontram-se referenciados vinte e dois (22) locais onde se identificaram estruturas com cetariae, documentando de um modo inequívoco a enorme importância regional da exploração dos recursos marinhos. O mapa da sua distribuição merece alguns comentários. Em primeiro lugar, resulta estranha a sua ausência na foz do Guadiana e áreas adjacentes, ou seja, no território de Baesuris, tanto mais que se conhece nas proximidades daquele centro urbano uma olaria (8/292), que terá fabricado ânforas durante um extenso período de tempo, e que se encontra bem documentada a longa tradição suscitadas pelo assoreamento do estuário do Guadiana, atualmente agravadas pela proliferação de obras-públicas que, regra geral, não têm sido devidamente acompanhadas por arqueólogos.

Segue-se toda a extensão litoral hoje incluída na reserva natural da Ria Formosa, que envolve as antigás cidades de Balsa e Ossonoba. Aqui, embora sejam evidentes as grandes transformações ocorridas na orla costeira, conhecem-se diversos estabelecimentos com estruturas para transformar o pescado, quer nas proximidades imediatas das duas antigas cidades, quer nos seus arredores. Nesta zona encontramos também a maior concentrarão de fornos para o fabrico de ânforas até hoje identificados em terras algarvias. Pela sua implantação, parece evidente tratar-se de um bom exemplo daquilo que Edmonson definiu como produção de âmbito urbano, ou suburbano. Uma vez mais, as informações disponíveis não permitem determinar quando terá começado esta atividade. No entanto, os fornos minimamente conhecidos (8/318?, 8/*, 8/305 e 610.2.3) parecem ter laborado somente no Baixo Imperio, isto é, numa época não anterior aos inícios do século III e, fundamentalmente, no IV e, talvez, no V (v. Anexo 1).

Mais a Oeste encontramos um conjunto de três estabelecimentos, todos muito próximos entre si, nas imediações da atual vila de Quarteira, respetivamente, Loulé Velho *8/300), praia da Quarteira (8/299) e Cerro da Vila (8/298). Os dois primeiros, atualmente muito destruídos pela ação do mar, poderiam ter pertencido a um mesmo complexo de grandes dimensões, terão conhecido ocupações antigas, recolheram-se, tanto num como no outro, moedas de Carteia, embora os vestígios mais numerosos datem de época tardo-romana. O terceiro, somente com duas pequenas cetariae, corresponde a uma villa romana com uma ocupação que se poderá ter iniciado no séc. I ou II, embora se tenha prolongado até a época medieval. A sua localização, a cerca de 15 km de Ossonoba sugere que, também eles, pertenceriam a área de influencia imediata do antigo núcleo urbano.

Em todo a orla litoral que se estende desde Quarteira até a Foz do Arade regista-se um único estabelecimento com cetariae, o da praia de Armação de Pera (7/152). Esta rarefação de lugares utilizados para a implantação de estruturas deste tipo é compreensível, já que se trata de uma zona de arribas, com pequenas reentrâncias passíveis de utilização num regime de pesca artesanal, mas de dimensões modestas, ou seja, nada comparável como o que se verifica nos grandes centros de produção de preparados de peixe. Naturalmente, esta ausência de dados pode atribuir-se, em parte, a deficiências de prospeção, contudo, parece mais verosímil supor que a adversidade das condições geográficas justifique a sua ausência. O núcleo de Armação de Pera, uma vez mais, poderá associar-se ao conjunto de explorações da foz do Arade, já que dista da mesma apenas cerca de 12 km.

Na região compreendida entre o Arade e o rio de Lagos voltamos a encontrar uma concentração notória de estruturas consagradas á exploração dos recursos marinhos. Uma vez mais, parece significativa a associação entre estas e os centros urbanos, desde o núcleo de Ferragudo (7/147), o mais oriental, aos de Lagos (7/140) e Senhora da Luz (7/141). A concentração de outras formas de povoamento nesta mesma área parece também significativa. O facto de não conhecermos qualquer centro oleiro para produção de ânforas deverá dever-se somente aos acasos da prospeção, já que carece de fundamento a noticia de Beltran Lloris sobre uma produção de ânforas da Classe 19 (= Bel. lib) em Lagos (Beltrán Lloris, 1990: 224), e não parece credível que todos estes centros pudessem ser abastecidos pelas olarias da praia do Martinhal.

Finalmente, assume características peculiares a existência de uma concentração de estruturas com cetariae no extremo ocidental algarvio. A zona parece à partida pouco favorável a instalação deste tipo de equipamentos, já que, tal como a região  compreendida entre a Quarteira e a foz do Arade apresenta um litoral com arribas altas e pequenas reentrâncias, que correspondem as desembocaduras  de pequenas linhas de agua. Contudo, desde a praia do Burgau (7/143) até a do Beliche (7/159),   praticamente todas as reentrâncias apresentam estabelecimentos  deste tipo, inclusivamente, o pequeno ilhéu da Baleeira (7/l6l), em frente a praia do Martinhal (Gomes/Silva, 1987: 67-119)- Todo este conjunto parece especificamente orientado para a exploração em grande escala dos recursos marinhos, com o apoio de um importante núcleo oleiro de, pelo menos, quatro fornos, instalado na praia do Martinhal (7/l60). Esta atividade de produção e exportação de preparados de peixefuncionou aparentemente durante o século IV e V, visto que dispomos de um significativo terminus post quem, para a laboração do centro oleiro um fragmento de sigillata clara D, forma Hayes 6lA, encontrado sob a câmara de combustão do forno III, por sua vez selada pela entulheira de um dos outros fornos que continuou em laboração.

O conjunto de estruturas desta área corresponde precisamente a maior concentração de locais onde se supõe a existência de villae onde os preparados de peixe seriam explorados como complemento das atividades agrícolas. Contudo, como se referiu a inexistência de solos de aptidão agrícola na área torna pouco aceitável esta interpretação. Por outro lado, a suposta presença de villae é  deduzida da existência de equipamentos urbanos associados as cetariae, designadamente edifícios termais na Senhora da Luz (7/14) e Boca do Rio (7/132). Tal dedução não parece aceitável, já que a estreita relação entre termas e estabelecimentos para a exploração de preparados de peixe é bem conhecida em outros locais, designadamente na Ilha do Pessegueiro, Sines (7/34), na Comenda, Setúbal (5/318) e Troia, Orándola (5/320), para citar apenas alguns casos da Lusitânia.

2.4. A Economia do Algarve sob a Domínio Romano

Com os dados atualmente disponíveis não é fácil tentar esboçar as características gerais da economia do território do Algarve sob o domínio romano. Contudo,

parece-nos possível tragar um primeiro quadro hipotético que, naturalmente, terá de ser devidamente testado por futuras investigações.

Em primeiro lugar parece evidente que as formas de povoamento enquadráveis na designação genérica de villae escolhem para a sua implantação as áreas onde existem terrenos da Classe A, de maior aptidão agrícola e, somente em casos excecionais —Baralha 2 (594.4.6), Cerro da Vila (8/298), Quinta de Marim (8/311), Loulé Velho (8/300) e, talvez, nos estabelecimentos dos arredores de Balsa— se encontra documentada uma associação entre explorações agrárias e estruturas destinadas ao processamento do pescado. Deve salientar-se, porém, que o único caso minimamente conhecido, o do Cerro da Vila, apresenta somente dois pequenos tanques, provavelmente destinados somente a uma produção para consumo local. Nos outros casos, não existem garantias mínimas de uma real associação entre as eventuais villae e as cetariae. De qualquer modo, em qualquer dos casos citados, existem potencialidades efetivas de exploração de recursos diversificados. Refira-se, ainda, que o facto de se terem identificado vestígios de tanques com revestimento de opus signinum não autoriza a sua classificação  como cetariae, já que, por exemplo, os tanques da Abicada (7/107), pela sua localização não parecem destinados á produção de preparados de peixe, como tem sido sugerido.

A ausência de investigações sistemáticas impede-nos de avaliar com segurança o panorama da agricultura algarvia do período romano. Tendencialmente, seríamos levados a supor que a clássica tríade mediterrânea de cercais, azeite e vinho constituiria uma importante componente, sem esquecer, todavia, o peso que os hortícolas têm na alimentação e, no caso concreto do Algarve, a relevância que já poderiam ter os frutos, frescos ou secos.

Sobre os primeiros, estamos, à partida, fortemente limitados. Sobre a produção cerealífera, na época, nada sabemos. A existência de algumas estruturas de lagar, presumível ou seguramente romanos, parece indicar a produção de vinho e, eventualmente, de azeite. De entre estas estruturas, são seguramente romanos, os lagares de vinho de Abicada (7/107) (Viana et alii, 1953: 128-129), Vale da Arrancada (7/114) (Santos, 1972: 187-190), Mílreu (8/304), Quinta de Marim (8/311). Presumivelmente romanos e destinados á produção de azeite teriam sido os lagares de Loulé Velho (8/300), Dona Menga (8/314), Almada nim (594.2.1), Monte da Torre (7/103), todos eles identificados pela presenta de prensas (v. fig. 5).

Para lá destas informações, poderá ser pertinente o recurso a informações de períodos históricos mais recentes e o seu confronto com o registro arqueológico existente. Assim, resulta interessante verificar que a produtividade dos cercais no Algarve foi sempre extremadamente baixa, não faltando indicadores de privilégios para os importadores e menções a abastecimentos vindos do exterior, por não se conseguir obter localmente a quantidade necessária para prover as necessidades das populações (Marques, 1968: 145, Ribeiro, s/d: 84 e Balbi, 1822: 148).

Naturalmente, estes dados não autorizam a conclusão de que no período romano a produtividade das searas fosse insuficiente para as necessidades locais. No entanto, é de supor que as limitações pedológicas não permitissem um grande desafogo neste domínio.

A cultura da oliveira não se encontra amplamente disseminada, no Algarve (Ribeiro, 1979) e o azeite local é considerado de má qualidade desde há longa data, sendo a região tradicional importadora deste óleo vegetal (Balbi, 1822: 150 e Feio, 1983: 117).

Quando no século XIX se iniciou a nova era das conservas algarvias, uma vez mais, se recorrem a importação de azeite para a industria (Feio, 1986: 136). Embora não julgue lícito presumir pela importação de ânforas, que transportam determinado produto, a inexistência do mesmo no local de receção, já que outros fatores, como o consumo sumptuário ou a troca de ofertas, podem explicar estes intercâmbios, é interessante verificar que o registro arqueológico do Algarve apresenta diversos indícios de importação de azeite da Baetica e Norte de África no período romano em Torre de Aires (8/318), Quinta de Marim (8/311), Quinta do Lago (610.2.3), foz do Arade (Silva et alü, 1987), Cerro da Rocha Branca (7/112) (Gomes et alii, 1986) e Monte Moliáo (7/139). Pela abundancia e dispersão destas importações, bem como pelos dados conhecidos para outras épocas, sugere que, de facto, a região não seria particularmente rica neste produto.

Já o vinho parece ter tido uma diferente relevância. Ao contrario do que acontece com o azeite, o vinho algarvio é produto de há longa data celebrado e tradicionalmente exportado em outros períodos históricos (Balbi, 1822: 151, Ribeiro, s/d: 81 e ss. e Garcia, 1986: passim). O registro arqueológico das ânforas importadas, documenta a presença de contentores de vinho, provenientes da Península Itálica e da vizinha Beática, mas apenas para o período tardo-republicano e inícios do século I. Sublinhe-se, contudo, que não se conhecem vestígios de exportações do vinho algarvio para fora do seu território no período romano, já que todos os fornos de ânforas conhecidos parecem ter fabricado exclusivamente contentores para preparados piscícolas, com uma possível exceção, adiante referida (v. anexo 1).

Em contrapartida, a exploração de produtos hortícolas e frutos de pomar, as principais produções agrícolas locais, atestadas desde o período muçulmano (Coelho, 1972: 41, 55, 6l-2 e Ribeiro, s/d: passim e Garcia, 1986: passim) poderão mergulhar as suas raízes na organização de espago rural promovida pelos romanos.

De facto, se é difícil, á falta de dados arqueológicos determinar a extensão, ou mesmo a existência, de pomares, nesta época, mais interessante resulta verificar a existência de diversas barragens construídas no período romano em território algarvio (Quintela et alii, 1986 e Cardoso et alii, 1990). Aparecem regularmente distribuídas por todo o território (v. figura 5), desde o Alamo (8/255) até Espiche (Cardoso, et alii, 1990: 2.7.) e, se é certo que poderiam ter conhecido multiplas utilizações, desde o abastecimento de termas em âmbito rural, aos abastecimentos urbanos, forneciam, sem dúvida, importantes recursos para a agricultura de regadio.

No que diz respeito á exploração de frutos, não estamos melhor informados. Registe-se, porém, a presumida existência de uma produção algarvia de ânforas com fortes semelharas com a Classe 19 (= Beltran lib) cujo conteúdo se desconhece.

Como em outro local já se referiu (Fabião/Guerra, no prelo), é possível que estes contentores se destinassem ao transporte de conservas de frutos, designadamente azeitonas. No entanto, para não construir sobre base quase inexistentes, limito-me a sugerir a possibilidade de remontar ao período romano a exploração e exportação de conservas de frutos algarvios, hipótese a confirmar em futuras investigações.

Parece, portanto, aceitável supor que a paisagem rural algarvia no período  romano não teria sido multo diferente da existente em tempos medievais que note-se, subsistiu até aos nossos dias.

A economia algarvia do período romano, tinha na exploração dos recursos marinhos uma importante componente, aparentemente sem relação direta com o mundo rural. A implantação das estruturas destinadas a produção de preparados de peixe não sugere qualquer intenção de exploração complementar de recursos agrícolas, visto que não foram, na generalidade, e salvo os poucos casos citados, instalados em áreas com terrenos de aptidão agrícola acessíveis, nem tampouco há qualquer indicador preciso da associação entre aquela e estas atividades.

Pelas limitações do registro arqueológico disponível (v. anexo 2), não é possível estabelecer um quadro cronológico para o funcionamento dos centros de produção de preparados de peixe, multo menos, para os seus ritmos de laboração.

Como já se referiu, é possível que a exploração destes recursos remonte a tempos pré-romanos, como acontece na área de Gades, ou a uma época imediatamente posterior á conquista, como sucede em Baelo. No entanto, deve sublinhar- se que não existe qualquer indicador que autorize estas suposições. Em termos mais concretos, seria possível fazer remontar a um qualquer momento do século I d.C., já que alguns dos sítios arqueológicos listados forneceram materiais desta época (v. anexo 2), embora a sua produção não se destinasse a exportação, visto que apenas um dos fornos de ânforas conhecidos, o de Olhos de S. Bartolomeu (8/292), tenha fabricado contentores neste período. A maior parte deles estava seguramente em atividade no Baixo Imperio, prolongando-se a sua utilização pelo século V e, talvez, o VI.

Combinando os pontos dados seguros fornecidos por estes locais e outros dados arqueológicos do Algarve, com a informação obtida nos diferentes fornos que produziram ânforas (anexo 1), verifica-se que a sua quase totalidade se enquadra cronologicamente no Baixo Imperio. Somente o(s) forno(s) de Olhos de S.Bartolomeu (8/292), precisamente o(s) mais próximo(s) da Baetica, parecem) ter iniciado a sua laboração ainda no Alto Imperio o que, naturalmente, suscita a incómoda questão de saber se estaremos a tratar globalmente, como se de um processo unitário se tratasse, realidades, afinal, diferentes. Na impossibilidade de responder cabalmente a esta interrogação, resta-nos percorrer outros caminhos.

Uma vez mais, como as limitações já expostas quando se referiram as questões relativas as importações de ânforas olearias e vinícolas, é interessante verificar que o território algarvio recebeu nos séculos I e II d.C. contentores de preparados de peixe da Baetica —presentes em Balsa (materiais em curso de publicação), Quinta do Lago (materiais recolhidos por Ana Margarida Arruda), foz do Arade (Silva et alii, 1987), foz do rio de Lagos (Santos, 1971: 116-119 e fig. 39)— e da própria província da Lusitânia, provavelmente do vale do Sado – talvez um exemplar em Balsa, outro na Quinta do Lago (Arruda/Fabião, 1990: 202) e na foz do Arade {SILVA et alii, 1987: 210-21A^. Embora não saibamos ainda qual a extensão e significado do fenómeno, verifica-se também uma apreciável importação de contentores de preparados de peixe da Baetica no interior alentejano, notória em Vipasca (materiais depositados no MSGP), nos sítios romanos de Castro Verde (Madeira, 1986), na villa de S. Cucufate, Beja, e sua área envolvente, onde chegam também as produções do vale do Sado (Alarcado et alii, 1990: 252-254). Parece significativo, por outro lado, que a villa da Vidigueira tenham chegado, embora em pequena quantidade ânforas tardias do Algarve (Alarcáo et alii, 1990: 253).

Face a estes dados, afigura-se possível avançar uma primeira hipótese sobre a produção e exportação dos preparados de peixe no extremo meridional do atual território português. Numa primeira fase, eventualmente datável dos séculos I e II d.C., na época em que a exportação dos recursos marinhos da Baetica dominava os diferentes mercados do Imperio, o Algarve poderá ter começado a explorar os mesmos recursos, embora, aparentemente, não os exportasse, com a eventual exceção da zona do estuário do Guadiana. Esta exceção não deixa de ser interessante, já que poderá sugerir uma influencia mais marcada de modos de vida béticos, no extremo oriental do Algarve. Num momento datável do século III e, seguramente, continuado no IV e V, pelo menos, a região terá intensificado a produção e, talvez, só então iniciado a sua exportação em moldes significativos, provavelmente tirando partido do declínio dos centros da Baetica e Norte de África (Ponsich, 1988). Assim, e ao contrario do que supôs Vasco Mantas (1990: 199) o que afetou Baelo e outros sítios costeiros da atual Andaluzia —quer tenham sido as correrias mouriscas, um abalo sísmico em outro qualquer fenómeno—poderá ter dado origem a um período de particular prosperidade para o Algarve.

Uma vez mais, como todas as reservas que a precaridade da informação disponível impõe, parece interessante verificar que a época tardo-romana nos apresenta esta região com uma apreciável circulação e entesouramento monetário, que contrasta fortemente com o panorama oferecido por épocas anteriores conhecem-se 9 tesouros dos fins do séc. IV ou inícios do V e em Loulé foi recolhida uma das poucas moedas de um imperador do século V no atual território português (Pereira et alii, 191 i: Cartas 18 e 21). A continuidade do enquadramento nas redes de intercâmbios mediterrâneas está igualmente atestada pelas importações de cerâmicas finas, como a «sigillata» fócense {= late Roman O, documentada na Quinta de Marim (8/311), Loulé Velho (8/300) e Cerro da Vila (Maia, 1978: 300-302 e Est. III).

Infelizmente, no estado atual dos nossos conhecimentos, não se afigura possível determinar quando se terá operado a rutura da geografia social e económica lentamente forjada pelo presenta romana no território algarvio. Todavia, há suficientes indícios que apontam uma sobrevivência, pelo menos em alguns sectores, para lá da desagregação do Império.

Deixando de parte as cidades, já sucintamente tratadas (2.1.), é interessante verificar que todas as grandes villae escavadas neste século —Abicada (7/107), Cerro da Vila (8/298), Milreu (8/304)— documentam uma persistência da ocupação que ultrapassa «crises» e «invasões», até a época muçulmana. Outros pontos de povoamento do mundo rural apresentam situações análogas, com sítios romanos e muçulmanos sobrepondo-se ou ocupando espaços próximos, o que, neste último caso, demonstra, no mínimo, uma descontinuidade de ocupação, mas uma identidade de motivos para a instalação. Temos de reconhecer que a amostra disponível não é muito extensa. No entanto, parece notável a homogeneidade verificada em todas as situações conhecidas. A dificuldade em determinar a malha do povoamento para o período compreendido entre os sáculos V e VIII terá que ver, fundamentalmente, com o grande desconhecimento que ainda temos das realidades arqueológicas destas épocas.

Os grandes centros de produção de preparados de peixe oferecem um panorama radicalmente diferente, já que a norma é a do abandono definitivo. Este, torna-se particularmente notório nos núcleos do Sudoeste, não só porque também foi um deles, a Boca do Rio (7/132), objeto de escavações neste século, mas também porque constituíam o grande Pólo produtor/exportador do Baixo Império, fora de âmbito urbano. Foi certamente a rutura da ampla rede de intercâmbios mediterrâneos, onde estes produtos estariam envolvidos, ocorrida algures entre o século V e o VII, que precipitou a sua decadência irreversível.

Teriam um carácter marcadamente especializado, impossível de converter a outras atividades. Também esta diferença de destinos sublinha a clara demarcação entre núcleos rurais e centros de exploração de recursos marinhos.

Durante o período romano, o atual território do Algarve explorava intensivamente diferentes recursos que, por serem complementares, Ilhe garantiam uma prosperidade particular. Na costa, centros de exploração de recursos marinhos ombreavam com sumptuosas villae, instaladas em manchas de bons solos agrícolas.

Provavelmente os mesmos proprietários controlariam uns e outros; é admissível que a mão-de-obra mobilizada para umas e outras atividades fosse, em boa parte, constituída pelos mesmos homens. Contudo, esta complementaridade tinha um carácter mais regional e não exatamente nos mesmos sítios. O barrocal e a serra forneceriam outros tantos artigos complementares.

Este bem sucedido modelo de povoamento, articulava-se com as suas regiões próximas da Baetica e da Mauritania Tingitana, igualmente integradas na diócesis Hispaniarum. Este enquadramento foi quebrado somente no século XIII, quando o reino de Portugal estabeleceu fronteira no Guadiana, ao mesmo tempo em que as diferenças religiosas separaram definitivamente as duas margens deste «pré-Mediterrâneo».

GARUM NA LUSITANIA RURAL

Alguns Comentários sobre o povoamento romano do Algarve - Carlos Fabião
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